Céu subterrâneo, de Paulo Rosenbaum, é um romance ambientado durante a maior parte da narrativa em Israel. O narrador, Adam Mondale, no início do primeiro capítulo, é surpreendido pela chegada inesperada de uma dupla de policiais ao apartamento onde está hospedado, em Jerusalém. Um deles entrega-lhe um papel e diz: “— Precisamos de seu passaporte, aí explica que ele será retido temporariamente”. Neste momento ainda nada sabemos sobre Mondale, nem mesmo o que este psicólogo brasileiro faz em Israel, temos conhecimento apenas de que se trata de um estrangeiro e que seu único documento, o passaporte que, como o próprio nome indica, lhe permitiria entrar e sair do país, não mais se encontra em seu poder. No final do primeiro capítulo, em forma de flashback, começamos a ser informados sobre a história do personagem e, pouco a pouco, dos motivos de sua viagem a Israel.
A compreensão da narrativa pode transitar por várias vias, e a exiguidade de uma resenha não permite trilhar todos esses caminhos. Num primeiro momento, deparamo-nos com um personagem judeu, mas alguém que não se sente ligado ao judaísmo, trata-se de um deslocado do meio religioso, no máximo um judeu cultural. Em segundo, este homem, Adam Mondale, é um ser em constante mutação. Ele exonera-se do cargo de diretor de uma conceituada universidade brasileira decidindo deixar tudo para trás e parte, quase como um nômade, para Israel. O que ele busca? Pouco a pouco vamos descobrindo, e é bom que o leitor acompanhe o percurso e as descobertas deste personagem, ora em conflito consigo mesmo, ora com o mundo. Mesmo em território judeu, desde sua chegada ele é um estrangeiro, isto é, mostra-se avesso à integração a qualquer tipo de grupo de judeus. O quê, na verdade, ele descobre? Que todos à sua volta são, até certo ponto, estrangeiros, como o motorista de táxi que o transporta. São judeus iraquianos, marroquinos, iemenitas e russos. Então, ele pergunta: “— E os motoristas israelenses?”. Eis a resposta da boca de um deles: “— Desde a fundação de Israel, milhões de judeus foram expulsos e exilados, a maioria de países árabes. Para nós, e para os russos, restou dirigir, mas não reclamo…”.
Duas palavras do texto acima são conhecidas do povo judeu. A primeira delas é exílio. No percurso por Jerusalém, Tel Aviv e Hebron, o que mais Mondale descobre são personagens exilados, tenham eles consciência disso ou não. Caso não sejam exilados dos países de origem, são exilados devido à condição que os encerra. Israel surge como uma Babel distorcida, onde a religião apresenta-se como uma espécie de língua universal a tentar estabelecer sentido entre todos. Mas ela, a religião, seria suficiente para esta missão? Nem tanto, o que se observa são personagens “desfilhados”, como afirma Berta Waldman no prólogo quando se refere a Mondale. Mas não há apenas ele. No seu périplo para tentar desvendar o mistério da Makhpelá (gruta onde estariam enterrados os patriarcas), ele depara-se com gente semelhante a ele, como Michel Haas, diretor do Museu Rockfeller, Amy (famosa escritora de livros juvenis), e até mesmo Amos Oz, com quem o narrador conversa ao telefone, numa pretenciosa entrevista sobre literatura. De tudo isso, transparece a característica escorregadia da condição do que é ser judeu.
A segunda palavra é dirigir. Porque a maior parte dos judeus sempre está dirigindo suas orações a Deus. Além disso, o ato de ser judeu compete em ter sempre algum tipo de direção, ou direcionamento. A própria volta a Israel estaria nesta linha de interpretação. No entanto, quem garante que neste entendimento encontra-se a solução dos problemas? O que resta a Mondale é uma espécie de melancolia. Mas mesmo assim ele tem uma direção a seguir. Guiado por uma imagem, uma deformação de um negativo de fotografia, Adam está em busca de um elo perdido.
Realidade virtual
Neste ponto cabe um parêntese. A realidade virtual também se mostra presente no livro. Tendo em vista o que este narrador procura em Israel, esta realidade não estaria distante das revelações religiosas. No Museu Rockfeller há a descrição minuciosa de um engenho capaz de trazer luz e desvendar os mais obscuros mistérios relativos ao universo da fotografia e da geração de imagens. Operando um aparelho conhecido por poucos, o diretor do museu revela a Adam não apenas o alto nível de segredo de todo aquele maquinário, mas também como o equipamento funciona, presenciando os dois a fabulosa imagem criada a partir do negativo levado por Mondale, o que o faz acreditar na revelação de um mistério referente aos primórdios da humanidade. A cena perdura por toda a noite e boa parte da madrugada.
Paulo Rosenbaum foi contemplado com uma bolsa para viajar a Israel e escrever um romance, no que ele é muito bem-sucedido. Ele mescla na narrativa o mistério inerente à religião, envolve em sua história personagens históricos e célebres, como Moshe Dayan, Golda Meir, o já citado Amos Oz, e até mesmo militares que teriam participado de uma fracassada tentativa de expedição científica à gruta de Makhpelá. A questão palestina e o terrorismo também não ficam de fora da trama.
A narrativa permite discussão sobre literatura, assunto caro a muitos autores contemporâneos. Adam, além de ser um psicólogo especialista em comportamento animal, também revive o desejo de voltar a ser poeta, como já o havia tentado na juventude, sobretudo, toma esta decisão após aborrecer-se durante muitos anos no ambiente acadêmico de sua universidade. Mas ele encontra-se dividido, ao mesmo tempo que é um escritor, também é um homem que parte à terra prometida com o objetivo de revelar um mistério relacionado ao que está escrito nos livros sagrados, como na própria Torá. Assim, como a linguagem da poesia caracteriza-se pela polifonia e pela plurissignificação, os signos religiosos procurados por Mondale também se deslocam, construindo diversos arcabouços semânticos. Ainda no universo dos personagens de Rosenbaum envolvidos na exploração da gruta, todos se mostram mudados após o evento.
Pode-se, para finalizar, levantar-se a seguinte questão: o que levaria a literatura ter nacionalidade? Bastaria o idioma em que os textos foram escritos para dizer que se trata de literatura brasileira, portuguesa, francesa, hebraica, etc.? Há muita discussão sobre esse ponto, o resultado apresenta cada vez mais dúvidas, questões desdobram-se sobre questões. É certo afirmar, no entanto, que Céu subterrâneo destaca-se por certificar que muitos escritores brasileiros fazem parte de uma literatura que poderíamos chamar de mundial, literatura que ultrapassa as fronteiras de cada nação. Alguns poderiam insinuar que se trata de literatura judaica. Neste caso, seríamos todos judeus.