Comecei a me fazer essa pergunta há um bom tempo, mas agora ela se tornou uma indagação ainda mais urgente, uma pergunta agônica que pode até nos calar — se houver coragem para entender que talvez estejamos escrevendo para ninguém.
Os poetas não precisarão participar dessa rodada do desencanto, pois eles já escrevem para um vazio que não é só o das grandes livrarias grosseiras, com suas girândolas de livros de ocasião com capas brilhantes como catarro em parede. Os poetas, como que abençoados por Deus ou pelo Diabo, estão escrevendo para leitores tão escassos (há muitíssimo tempo), que se tornaram monges trapistas da literatura, escrevendo em monastérios transformados nos palácios da mente que os libertam de escrever para quem já não possui o código da Poesia, a tábua de decifração (e salvação) do verso que foi carne, no Princípio, etc.
Enfim, os poetas estão libertados pelo silêncio que os cerca — enquanto aqui se convocam, sim, principalmente os praticantes da ficção, nesta hora “vigésima quinta” acima de tudo morna na prosa de Pindorama “amansada” por obra e graça, em parte, de editoras voltadas, nos últimos anos, quase exclusivamente para aquilo que passou a se entender como sucessos.
A palavra de toque é exatamente essa, na muito citada “sociedade do espetáculo”. Mais do que nunca pautada pela busca do Su — a qualquer preço —, essa sociedade fez erigir a oitava maravilha, a pirâmide truncada da visibilidade (?) como vago ápice do milagre midiático que está no lugar da antiga relação mágico-religiosa, naquele mundo regido pelo Eu em harmonia com a idade do Mito.
Passada — há muito tempo — a remota antiguidade disso, vivemos no Ocidente hegemônico que cultua o ser dividido tal e qual o Visconde de Italo Calvino. Ou seja, no Ocidente-montanha de individualismo exacerbado que pariu o rato do “sub-eu” mitômano em consonância com os desregramentos da Era dos minutos de celebridade: quinze, dez, cinco (estão diminuindo, é claro), banhados em falso ouro de 14 quilates do sarcófago no centro do “mal-estar na cultura”.
Enquanto dura, o amor desses minitempos de [falta] de copos de cólera, mais e mais praticamos a adoração doentia daquilo que o falso “eu” possa fazer vender mais e mais, conseguindo que seja rapidamente consumido de maneira a ser substituído, em seguida, por mais — e imediatos — “sucessos” midiáticos enfileirados pela mão e a nova luva: o artista e a indústria cultural, estranhamente apertados num pacto pop que só poderia, mesmo, acabaram assim: mal.
A literatura está doente de vários males, aprisionada nas unhas do mercado ou ralo de fossa que estamos chamando de arte (não só no mundo das letras). Narcotizante, a “indústria que recupera tudo” (G. Deleuze) não poderia dispensar o que resta do universo da narrativa em livro, e então, enfia suas garras no pescoço dos autores que talvez queiram ser asfixiados, de boa vontade, na banheira de ouro baixo do mausoléu em forma de piscina erigido para o romance, antes de mais nada.
“Piscina”
Essa palavrinha azul — como o FaceBOOK — já estava contida numa entrevista que dei à revista Bravo! (#10, julho de 1998), quando me referi àquela medida flaubertiana que faltou, na formação da nossa literatura (apesar de Machado), quando urgia largar a canoa-modelo José de Alencar (que Ariano Vilar Suassuna considerava “mais importante do que Joyce”, nem mais nem menos). De Alencar até a Pedra do Reino — passando pelo hercúleo esforço do próprio Machado, de Dyonélio idem, de Cornélio Penna e de Lúcio Cardoso (para, digamos, nos dotarem daquelas virtualidades psicológicas que, na América, saltaram do regionalismo de Frank Harris para as profundidades abismais de Faulkner) — nós estamos caindo, agora, na tardia armadilha de aproximar a narrativa, numa ponta, de um documentarismo mais velho do que o velhíssimo naturalismo à la Zola (a medida, onde ficou a medida — que nós, de fato, nunca tivemos?), preparados para imitar, emular e copiar a política dos Políticas (Adam Thirlwell, etc.) e outros editados internacionais de um Luiz Schwarz ou algum outro “gênio local” do negócio, capaz de pôr a perder romances como o Adeus a uma ideia, de Franz Paul Trannin da Matta Heilborn.
[Conheço essa historinha do “Adeus” do Francis, via Wagner Carelli, que foi grande amigo de FPTMH; fico de contar, quando não estiver tão puto com a sombra de uma sombra debaixo das telhas da chamada prosa vã…]
Por que não parar para pensar um pouco? Por que não se deter a fim de olhar na direção (anos 60/70) daquele possível ensaio de pós-medida de uma ficção brasileira — não “pós-moderna” — deixada num ponto qualquer, a certa altura, por um Osman Lins, um João Antonio, um Caio Fernando Abreu?
Longe dos liames do “firme leme” que une o trabalho de três artistas tão diferentes, nós estamos optando por chapéus de dois bicos de rendas enfiados até o pescoço cingido por coleiras impostas pelos diretores-editoriais, que sabem muito bem o que passaram a querer dos seus editados: mais $uce$$o, não importa com que diabo de porcaria vendável.
Estamos muito longe do tempo de Luciana Villas-Boas tomando um avião para viajar em busca de “bons autores” (sic), a fim de “melhorar o padrão da Record”. Foi o que ela me disse, aqui no Recife, quando chegou para contratar três livros meus, com adiantamento de direitos autorais, etc. (e os três foram pontualmente lançados em 1999 e 2000).
Quase vinte anos se passaram. Desde então, vêm sendo desligados os ponteirinhos de bússolas da qualidade, ora apontando para trás, ora para frente (qualquer frente), nos descaminhos da narrativa voltada para o realismo servil — por sobre anacrônico — ou para uma decantação do fundo do umbigo da “literatura” autoficcional do tipo blog travestido para Prêmio São Paulo.
Quem sabe, não adiante chorar — ou, pior, choramingar — sobre o leite derramado, buarquianamente falando. Cada sociedade tem, afinal, a literatura que merece, e o rebento eterno do engano será, sempre, mais equívoco sobre a suposta excelência de uma ficção que se quer “em bom momento”, quando apenas a Poesia — a feliz abandonada — se obriga à depuração, aqui e ali, relegada à oficial indiferença editorial e também das Flips, Flops, Flups e Jabutis & Jabás da vida.
Por outras palavras, digamos que, caso o mais que talentoso Caio Fernando ainda fosse vivo — e o gaúcho de Santiago (1948-1996) não estaria assim tão velho, aos 69 anos —, provavelmente se encontraria sem lugar na literatura brasuca de agora, voando acima da cabeça dos brasileiros que ainda se importam com sua sombra no chão: é uma nave? É um camelo? É um tijolo de vidro voando sem direção?
E estamos escrevendo — a pergunta que só chega agora — PARA QUEM?…
>>> Conclui na próxima edição.