A vigésima quinta hora (final)

O rosto de Hitler era uma máscara de sangue
23/04/2017

No seu romance — que virou filme igualmente bem-sucedido do mesmo ponto de vista que qualifica os best-sellers —, o padre da Igreja Ortodoxa e escritor Constantin Virgil Gheorghiu explica assim a “vigésima quinta hora” que estou associando, aqui, a todos os estertores da boa vontade entre os homens:

Pessoalmente, acredito que morreremos nos grilhões dos escravos técnicos. Meu romance acompanhará esse epílogo.

Qual será o título?

A 25ª Hora disse Traian. O momento em que toda tentativa de renovação é inútil. Nem o advento de um Messias resolveria alguma coisa. Não é sequer a última hora: é uma hora depois da última hora. O tempo preciso da sociedade ocidental. É a hora atual. Exatamente agora.

E prossigo com a “hora depois da última hora” vivida em 1945, cujo eco vai se prolongando na “sociedade técnica” que Gheorghiu denunciava em termos menos precisos do que Pasolini com seu dedo friulano apontado (como uma arma) para os “fascismos da sociedade de consumo de massa” que nos asfixiam não só pela garganta. É um raconto histórico, que torno preciso para recortar mais vivamente o passado que não morreu (e que ameaça retornar a qualquer hora):

Paul Scott Rankine, correspondente da agência Reuteurs em São Francisco, havia sido designado para cobrir as negociações preliminares para a fundação das Nações Unidas (a informação é de Cornelius Ryan), quando a sorte o colocou em contato com Jack Winocour, chefe do British Information Services.

Era 29 de abril de 1945, e o inglês acabara de ouvir do ministro do Exterior da Inglaterra, Anthony Eden, uma informação extremamente importante: o Reichsführer SS Heinrich Himmler havia encaminhado, secretamente, proposta de rendição aos “aliados ocidentais” (russos excluídos). Irradiado por Rankine, o “furo” foi transmitido para o mundo inteiro e chegou às profundezas do bunker. Hitler estava em conferência com os generais Karl Weidling, Hans Kreb, Wilhelm Burgdorfe e o ministro da Propaganda, Goebbels, quando o assistente deste, Dr. Werner Naumann, chegou com a notícia — ouvida de uma rádio de Estocolmo — de que Himmler “iniciara negociações com o Alto Comando Anglo-Americano”. O general Weidling descreveu: “O Führer vacilou, com a face desfeita. Ele olhou longamente para Goebbels, incapaz de uma reação, como eu o via, pela primeira vez. Afinal, engrolou algumas palavras, que ninguém pôde compreender, tão baixa era a sua voz. Parecia estupefato. Creio que foi só nesse momento que ele teve a nítida impressão da derrota”.

A atenta secretária Gertrude completou o quadro: “Ele estava pálido, os olhos esbugalhados, literalmente arrasado, como quem houvesse perdido tudo”.

Hitler estava se sentindo acabado, porém ainda não estava inerte. Deu ordens para executar o SS Gruppenführer Hermann Feigelen (oficial de ligação entre ele e Himmler), recém-capturado, em roupas civis, não muito longe do abrigo onde Hitler também decidiu contrair bodas in extremis com Eva Braun. Detalhe: Feigelen era casado com a irmã de Eva, que não moveu um dedo para tentar comutar a sentença da corte marcial sumária que condenou o cunhado.

Na manhã seguinte, Hitler ditou seu testamento pessoal e político a Martin Bormann, entregando o governo nas mãos do Almirante Doenitz (presidente) e de Joseph Goebbels (chanceler). O casamento com Eva Braun foi uma cerimônia rápida — segundo a secretária de Hitler —, após a qual “o Führer e sua esposa passaram uma hora sentados com o Dr. Goebbels, o Dr. Naumann, os generais Krebs e Burgdorf e o Coronel-Aviador Nicolaus von Below”.

“Depois de receber mais uma notícia sinistra (sobre o cadáver de Benito Mussolini estar sendo exibido nas ruas de Milão, junto com o de Clareta Petacci)” — conta Gertrude — “Hitler se despediu de todos. Na manhã seguinte, quando chegaram notícias de tanques russos a menos de uma milha da cidade, ele decidiu que havia chegado o momento, eu entendi, ao nos dizer: ‘Isso já foi longe demais’. O fim do almoço (espaguete com molho de tomate) trouxe novas despedidas, nas quais Gertrude afirma ter ganhado o casaco de peles de Eva Braun, como presente da esposa de Hitler. O casal se encaminhou para os seus aposentos particulares”.

Quem conta agora é o Coronel Otto Günsche, que ficou postado na saleta que dava para o apartamento do casal: “Foi a coisa mais difícil que eu fiz em minha vida. Fiquei esperando para ouvir o tiro, desde que eles entraram. Por volta das três horas da manhã, apareceu Frau Magda Goebbels, desesperada, pedindo para ver o Fürher de qualquer jeito.

Sem conseguir dissuadi-la, bati naquela porta fechada há horas. Ele abriu, afinal, muito contrariado. Não vi Eva Braun — que devia estar no banheiro, pois ouvi o som de água correndo. O Fürher disse que não iria receber mais ninguém na vida, e pediu que eu me retirasse. Cinco ou seis minutos depois, ouvi um tiro lá dentro”.

“O Fürher está morto”
Foi Martin Bormann o primeiro a entrar, logo em seguida. Depois, teria entrado Linge, o mordomo de Hitler, que estivera sentado numa cadeira. Este contou que Eva Braun estava deitada no sofá, tendo tirado os sapatos (emparelhados cuidadosamente, ao lado do móvel). Estava com um vestido azul, de gola branca e mangas compridas. O ambiente cheirava a cianureto.

O rosto de Hitler era uma máscara de sangue. Havia um revólver Walter PPK no chão, segundo os que descrevem a cena do duplo suicídio — com Martim Bormann saindo, apressadamente, para avisar aos que se encontravam lá fora: “O Fürher está morto”.

Não havia tempo para demoras, segundo narram esses “historiadores” improvisados (ou mentirosos bem ensaiados). Os dois cadáveres teriam sido envolvidos em lençóis e levados para uma depressão no terreno fora do bunker, “perto de uma máquina de misturar cimento”, detalhou Erich Kempa, chofer de Hitler. Segundo ele, gasolina foi logo despejada sobre os corpos, para dar início a uma cremação amadorística. E logo o cheiro de carne queimada teria sido levado pelo vento para dentro do abrigo, como se fosse “o enjoativo aroma de bacon fritado num bar de segunda” (as palavras são de Kempa, talvez para agradar aos interrogadores russos, que a transcreveram sem comentários).

O resto é conhecido. Enquanto Joseph Goebbels e sua mulher seguiam o exemplo de Hitler e Eva Braun (depois de eliminarem os três filhos), os astutos generais e oficiais do III Reich cuidavam de si mesmos, “desaparecendo” como Martim Bormann ou sendo presos em covardes fardas tomadas de meros soldados, etc.

E Traudl Junge? O que fez a secretária pessoal de Hitler na hora vigésima quinta e ainda depois, sempre afirmando que nunca ouvira a palavra “judeu” pronunciada no círculo íntimo do Fürher (o que jamais foi acreditado pelo escritório de Simon Wiesenthal, o caçador de nazistas)? Ela se deu relativamente bem: ficou presa apenas por seis meses e morreu, aos 81 anos, num hospital de Munique, no dia 10 de fevereiro de 2002. Ainda descrevia Hitler apenas como um homem mais velho, agradável e “que nunca esquecia de desejar boa noite, ao final do expediente”…

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho