A multiplicidade de Pessoa

Coletânea apresenta uma variedade de temas, posicionamentos, atividades e pensamentos de diversas épocas da vida do poeta
Ilustração: Fernando Pessoa por Osvalter
23/04/2017

Fernando Pessoa é uma presença constante no imaginário português dos séculos 20 e 21. Reconhecido pela pluralidade da heteronímia, foi poeta, escritor, crítico literário, tradutor, correspondente e publicitário. Em vida, teve apenas uma obra publicada, Mensagem, lançada um ano antes da sua morte. Pessoa foi muitos poetas, deu-lhes nomes, datas de nascimento e morte, endereço de morada e trajetórias particulares.

Essa pluralidade sui generis de Pessoa se confirma na publicação Como Fernando Pessoa pode mudar a sua vida — primeiras lições. Organizado por Carlos Pittella e Jerónimo Pizarro, o livro compõe a Coleção Pessoa dirigida por Pizarro e que tem trazido ao público textos críticos, antologias dos heterônimos e do próprio Pessoa. A obra em particular é uma compilação de textos, imagens, curiosidades e informações resgatadas e selecionadas no espólio pessoano na Biblioteca Nacional de Portugal, de “papéis na Casa Fernando Pessoa, no arquivo Hubert Jennings na Brown University, na coleção particular da família do poeta e em outras bibliotecas e coleções espalhadas pelo mundo”.

A obra que já em sua epígrafe traz um fragmento do Livro do desassossego — “Assim como lavamos o corpo, deveríamos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa” — apresenta diversos desdobramentos da personalidade de Fernando Pessoa, apontando e confirmando mais uma vez a versatilidade do seu espírito. São quarenta e nove capítulos ou “lições” e mais de duzentas imagens de anotações, bilhetes, cartas, fotos, desenhos, mapas, caricaturas, traduções, poemas, listas (Pessoa adorava listas) recuperadas e colocadas à disposição do público, interessado na sua biografia.

“Fernando Pessoa foi, entre muitas coisas, um criador de paradoxos. ‘O mito é o nada que é o tudo’ — o famoso verso paradoxal que abre o poema ‘Ulisses’ do livro Mensagem — É apenas um exemplo, sendo difícil encontrar uma página escrita por Pessoa sem alguma contradição”, comentam os organizadores. Essa característica da identidade de Pessoa é confirmada através da recolha apresentada na obra: uma variedade de temas, posicionamentos, atividades e pensamentos de diversas épocas da vida do poeta. As páginas estão repletas de um Fernando Pessoa múltiplo em gostos e atividades.

Cada capítulo abrange uma ação diferente da biografia pessoana. Abordam-se temas como a própria ideia de organizar uma antologia, argumentar contra Hitler, o cálculo da própria concepção, ser testemunha de um falso suicídio, colecionar provérbios, desenhar e catalogar narizes, criar um péssimo slogan publicitário, ser um pássaro, reinventar o futebol, ser o segundo lugar num concurso, voltar-se contra acordos ortográficos, mentir sinceramente, xingar alguém e até mesmo pensar e elaborar jogos de tabuleiro.

Algumas das histórias da sua biografia já são conhecidas do público, como o testemunho do falso suicídio de Aleister Crowley em 1930. Em Como coadjuvar um suicídio, é contada a participação do poeta na encenação: o mago inglês forjara sua morte, supostamente jogando-se da Boca do Inferno, em Cascais, um “lugar emblemático de suicídios”. A história adquirira veracidade graças ao testemunho do amigo português. Há, ainda, o capítulo Como cantar a mulher do mago, dedicado à namorada de Aleister, Hanni Jaeger, que não escapou de versos sedutores de Pessoa em alusão à sua personalidade sensual — embora ela não falasse português e talvez nunca tenha tomado conhecimento do poema em sua intenção.

Provérbios
“Deus é bom, mas o Diabo também não é mau” é um dos provérbios populares colecionados e traduzidos por Pessoa. “Entre 1913 e 1914, o poeta cuidadosamente compilou e traduziu trezentos provérbios para o editor inglês Frank Palmer (…).” Apesar do trabalho cuidadoso de pesquisa e tradução de Pessoa, a publicação não saiu devido à Primeira Guerra Mundial. Apenas em 2010, Os provérbios portugueses seriam publicados em livro.

Das muitas facetas apresentadas por Carlos Pittella e Jerónimo Pizarro há algumas mesmo inusitadas e bastante curiosas, entre elas Pessoa criador de jogos. Em Como jogar War, é contada a ideia de Pessoa, em sua vertente inventiva, de criar o jogo Strategy (Estratégia), que está entre os materiais inéditos em coleção particular. O jogo que não fora patenteado teria sido um grande sucesso.

A inesperada predileção por interpretar narizes tem um capítulo só para si. Fernando Pessoa elaborava listas de projetos, entre dos quais constava On Noses e On the Nose. A ideia era catalogar e analisar os diferentes tipos de narizes de poetas e a relação com a sua obra poética. A questão é, da mesma forma, aplicável ao próprio autor da ideia: “Qual seria, pois o seu tipo de nariz? Teria Pessoa um nariz próprio para um poeta?”. A resposta teria sido elaborada pelo professor Jones, personagem de Pessoa, e está no capítulo Como interpretar narizes.

Até mesmo uma breve lição de como xingar alguém cabe na publicação. Em Como xingar , Álvaro de Camposé o fomentador de xingamentos. A ele cabiam as condições necessárias para a tarefa: “(…) Pessoa emprestava a pena ou a máquina de escrever ao seu companheiro de psiquismo Álvaro de Campos”, que, segundo os poemas mostrados, executava com mérito o intento de Pessoa.

Como não caber no Mosteiro dos Jerônimos é uma lição póstuma de que Pessoa não cabe em rótulos, sejam quais forem, sobre sua vida pessoal ou sua produção. Publicou mais livros depois de sua morte do que em vida, multiplicou-se sem se repetir em nenhum momento e seu próprio corpo manifestou excentricidade na homenagem do túmulo no Mosteiro junto a Camões, D. Sebastião (quer venha ou não) e Vasco da Gama.

Como Fernando Pessoa pode mudar a sua vida é uma obra incomum. Excepcional pelo material recolhido e o apuro nas informações e organização do conteúdo. Apresenta especificidades do poeta em sua vida particular, preferências, gostos e manias. Sem afastá-lo do imaginário do leitor, Carlos Pittella e Jerónimo Pizarro humanizam Pessoa, mostrando que também como um sujeito pertencente ao mundo das coisas e dos homens, ele desejou fazer e realizar tantas ideias, muitos planos e projetos. Reiteram-se mais uma vez, depois da leitura da obra, a genialidade e a singularidade do poeta português.

Como Fernando Pessoa pode mudar a sua vida
Carlos Pittella e Jerónimo Pizarro
Tinta-da-china
295 págs.
Carlos Pittella
É poeta, educador, viajante e pesquisador. Fez mestrado e doutorado sobre Fernando Pessoa na PUC-Rio. Atualmente, realiza pós-doutorado sobre o arquivo de Hubert Jennings na Brown University (EUA).
Gabriela Silva

Graduada em Letras, licenciatura plena em língua portuguesa, literaturas de língua portuguesa e Especialista em “Leitura: Teoria e Prática” pela Fapa; Especialista em Literatura Brasileira e Mestre em Teoria da Literatura pela PUC-RS. Doutora em Teoria da Literatura.

Rascunho