A nuvem de borboletas

Entrevista com Samanta Schweblin, autora de "Distância de resgate"
Samanta Schweblin, autora de “Distância de resgate”
23/04/2017

Conheci Samanta Schweblin no dia da notícia em que havia sido nomeada finalista no Premio Hispanoamericano de Cuento Gabriel García Márquez 2016 com o livro Siete casas vacías. Samanta acabava de chegar a Nova York de uma viagem por algumas universidades americanas e em breve retornaria a Berlim, onde vive na vizinhança de Kreuzberg e oferece oficinas de escrita em espanhol duas vezes por semana. Naquela noite, comparecemos a um tributo em homenagem ao escritor Enrique Vila-Matas em conversa com Eduardo Lago. A livraria no Soho efervescia com a presença de alguns dos autores ibero-americanos que têm inovado no campo literário através das cambalhotas ousadas que dão na palavra “gênero”. E é isso aí: o gênero precisa ser ultrapassado, esquecido, desafiado para que a criatividade, o humor e a improvisação borrifem oxigênio nas páginas. Samanta, que estudou Cinema em vez de ter optado por uma formação acadêmica em Letras, sentava-se na plateia calmamente. Ninguém diria que ali se encontrava uma escritora especializada na arte da narrativa curta com precisão cirúrgica e profundo foco visual. Ninguém diria que há meninas a comerem pássaros, meninos de almas transmigradas, fetos como amêndoas. Nos livros de Samanta, estampa-se o retrato da família contemporânea, vez por outra atacada por uma nuvem de borboletas na saída da escola ou surpreendida pela visita do Papai Noel. Entretanto, Samanta mantém os registros no limiar do fantástico, do terror e do insólito, retendo-os no chão sobre o qual o leitor pisa. O voo da leitura é real e preso por um fio como o que prende um balão de festa até atingir a “distância do resgate”. Na novela curta de título homônimo, este fio cobre a zona de segurança entre a mãe e o filho, um cordão umbilical que permanece invisível e poderá arrebentar numa espécie de metamorfose. No conjunto da obra de Samanta, o fio pode estar no pacto que vê entre escritor e o leitor ou, então, no laço entre criador e criação numa miríade caleidoscópica de alternativas de conexões entre humanos e humanos ou humanos e os outros animais.

Nascida em Buenos Aires, em 1978, Samanta Schweblin já recebeu diversos prêmios, como o Casa de Las Américas (Cuba) e o Juan Rulfo (França). Agora, está entre os indicados para a edição 2017 do prêmio internacional Man Booker, concedido ao melhor livro de ficção traduzido para o inglês. Ela concorre com Distância de resgate, traduzido como Fever dream por Megan McDowell. Além disso, Samanta foi incluída em 2010 pela revista Granta entre os 22 melhores escritores da língua espanhola da nova geração.

• Como iniciou o seu percurso artístico?
Quando eu era pequena, levávamos um diário onde anotávamos tudo o que fazíamos. Isso foi o primeiro que escrevi. Eu tinha uns sete anos. Meu avô era Alfredo de Vicenzo, um grande artista plástico e gravurista. Íamos aos museus, ao teatro, ao cinema, visitávamos os seus amigos, que eram todos personagens incríveis. Ele gostava de me assustar, me colocar à prova. Queria me treinar para algo que chamava de “a sobrevivência do artista” (quer dizer, aprender a viver sem dinheiro e a olhar tudo com muita atenção), e isso incluía roubar relógios antigos na feira de Dorrego, viajar sem bilhete nos trens, atravessar até a ilha de Maciel de barco e várias histórias e anedotas insólitas. No diário, depois da entrada de cada dia, escolhíamos a estrofe de algum poema das nossas grandes heroínas, Alfonsina Storni e Gabriela Mistral, e transcrevíamos como conclusão do dia. A paixão do meu avô pelo que fazia me fascinava, o seu compromisso com o que ficasse gravado e todo o drama que, segundo ele, decorria de dedicar-se à arte. Eu invejava essa entrega, sentia que era algo extraordinário que eu perdia.

• O que prefere: surpresa ou suspense?
Suspense, sem sombra de dúvida! A surpresa pode ser perigosa se for lida como algo arbitrário ou voluntarioso. Um final pode ser inesperado, mas tem que se ter a sensação de que, apesar de não se esperar, toda a trama conduz de alguma forma a esta possibilidade. Além disso, a surpresa pode nos fazer saltar em um momento de susto, porém o suspense tem essa graça divina de nos manter em suspenso por longos períodos, absortos e entregues à trama de modo absoluto. É um véu delicado, embora poderoso. E para mim, o material mais puro da ficção. Sem suspense não há o pacto da leitura. A este pacto, refiro-me à entrega que há da parte do leitor no tempo exigido por uma leitura. A promessa de que, uma vez que o leitor atravesse uma história, obterá algo novo e será recompensado. O leitor atingirá uma leitura que encontra uma boa razão para ter sido feita.

• Passível de variadas interpretações e enriquecido por nuances, clausuras e suspense, o seu romance Distância de Resgate traz à tona a questão dos agrotóxicos na cadeia produtiva alimentícia e os danos que provoca. Animais e humanos são envenenados e têm as suas vidas ameaçadas. O que é mais perigoso: o medo ou o veneno?
O veneno. O medo poderia, ao menos, nos despertar como consumidores. Enquanto escrevia esta história, passei por um grande dilema moral, como autora. Era a primeira vez em que se falava sobre isso numa obra literária e eu me perguntava se podia me dar ao luxo de escrever histórias sem nomear os culpados, sem nomear marcas, empresas, casos? Entretanto, a história, o seu tom, o seu ritmo, o modo como se sucediam as ações, tornavam impossível esta intervenção mais política. Sem embargo, com o tempo, me dei conta de que o medo provocado pelo livro leva muitas pessoas a interiorizarem o tema, a cuidarem de si, do que pode passar a todos se não se começa a consumir de um modo mais consciente.

Um livro sempre pode ser melhor. Entretanto, por sorte, publica-se: isso elimina o peso de continuar corrigindo eternamente.

• Com as mudanças climáticas desnorteando as nossas noções de tempo e espaço, constatamos a tendência a uma literatura que virá a protagonizar o meio ambiente enquanto os personagens se tornarão secundários?

A não ser nos textos muito experimentais, não creio que os personagens cheguem a passar a um segundo plano. No entanto, sim, parece ver-se uma certa consciência do meio ambiente que começa a infiltrar-se também na nossa literatura. Afinal, a literatura nos tem servido como um espaço de antecipação, como um cenário no qual é possível pensar e entender as nossas piores previsões, medir seu impacto, prepararmo-nos. E, no melhor dos casos, exercitar uma consciência que nos ajude a mudar as coisas.

• Há possibilidade de resgate após uma ruptura?
Suponho que sim, mas não será um processo simples e dependerá da disposição de ambas as partes. Em muitos casos, não basta querer resgatar, também o outro tem que estar aberto à ajuda.

• No conto Conservas do livro Pássaros na boca, um feto regride ao estado de uma pequena amêndoa. Há uma clara rejeição por parte da protagonista com relação à gravidez. Esta reação advém do medo da maternidade, como rompimento da distância de resgate, ou seja, a criação de um novo núcleo familiar representaria uma espécie de metamorfose?
Quem sabe, sim. A protagonista quer uma família, porém não agora. E não pode tampouco conectar com o seu bebê, não sente o fio da “distância do resgate”. Contudo, algo muda no final, quando ela pode tocar com a sua língua o peso desse novo ser que é a sua filha, o laço se cria no fim, por isso dói-lhe a decisão de postergar porque, no fim, é capaz de sentir a sua filha.

Sem suspense não há o pacto da leitura. A este pacto, refiro-me à entrega que há da parte do leitor no tempo exigido por uma leitura.

• Nas suas narrativas, o leitor costuma entrar e sair de ambientes fechados e confrontar o espaço exterior. Seriam as duas consciências uma só, a vida temporal e a eterna, por exemplo, da qual passamos de uma para a outra?
Gosto do movimento. O movimento põe em ação coisas que assim se tornam mais visíveis. Um detalhe que pode ser importante para a história, por exemplo: posso escrever “as mãos dele tremiam”. Entretanto, se digo “entrelaçou as mãos para que não tremessem”, consigo que o leitor tenha uma participação muito mais ativa na história porque a ação o obrigará a imaginar estas mãos como são e como se entrelaçam exatamente. Quem sabe não sejam estas as duas faces do movimento: a oportunidade de fazer com que parte da história aconteça no papel e parte, na cabeça do leitor.

• Emparedamos a intimidade?
Às vezes. A literatura foi isso para mim, na minha adolescência, exatamente isso: um muro para a minha intimidade. Eu era muito tímida, só a ideia de socializar me aterrorizava. Contudo, tanto os meus professores como os meus pais, como os meus próprios companheiros de classe insistiam, queriam que eu participasse e a insistência por eles me envergonhava ainda mais, como se houvesse algo de elementar que eu fosse incapaz de fazer, era algo até humilhante para mim. Mas se abria um livro, respeitava-se este espaço de solidão, não me incomodavam porque estava lendo. Às vezes, eu sequer lia, apenas abria os livros e escutava o que se passava ao meu redor, porém me sentia segura: o muro estava erguido.

• No filme O medo devora a alma, dirigido por Rainer Fassbinder, em 1974, o tema é recorrente e atual: o medo do outro, o estrangeiro. Como a sua vivencia em Berlim moldou a sua percepção sobre a crise dos refugiados na Europa?
A minha situação e a dos refugiados são evidentemente muito diferentes entre si. Estou em Berlim por escolha própria e posso voltar para casa quando desejar. A situação dos refugiados está cada vez mais difícil aqui na Alemanha. Em Berlim, quase não temos contato com os refugiados, muitos estão isolados, mas ainda assim há gente que tenta ajudá-los. Muitas pessoas se solidarizam, doam horas de trabalho ou abrem até mesmo as portas das suas casas. E também há gente enfurecida, que acredita de verdade que estes refugiados podem roubar os seus postos de trabalho ou aumentar a violência da cidade. Pode se enxergar as duas faces continuamente.

• A escrita é a resistência de Sherazade às ordens do rei?
Claro que sim. Não sei se a leitura implica isso para mim a nível do consciente. Mas acredito sim que como seres humanos, escrever e, sobretudo, lermos a nós mesmos, é uma forma muito sensata de resistência. Lermos a nós mesmos significa entendermo-nos melhor, é pensarmo-nos desde o lugar do outro. Tudo o que nos isola, falha na nossa comunicação e nos distancia nos dias de hoje (os meios de informação fraudulentos, as redes sociais, determinadas políticas sociais e econômicas), pode voltar a nos aproximar da literatura.

A literatura nos tem servido como um espaço de antecipação, como um cenário no qual é possível pensar e entender as nossas piores previsões, medir seu impacto, prepararmo-nos.

• Como você se aproxima dos seus personagens?
Preciso escutar a voz deles. O modo como falam me dá pistas muito claras do que pensam, o que querem, pelo que passaram. Às vezes, uma história não me permite fazê-los falar, é o narrador que se aproxima deles, porém ainda assim geralmente são narradores que caminham muito próximos deles. Conheço a nuca, o pescoço e o cabelo de todos os meus personagens, caminho tão perto deles que quase posso vê-los pensar.

• Os seus personagens se encerram em um conto ou continuam a acompanhá-la depois?
Sinto que, terminada a história dos personagens, cumpri o meu dever de acompanha-los até um lugar novo, até um entendimento ou situação final, que os modifica, para o bem ou para o mal, que os desafia a algo que antes não havia logrado enfrentar. Havendo atravessado este limiar, ficamos mutuamente liberados.

• Tarkovski, horrorizado pelos gêneros, rótulos e marcas, defendia que a profundidade e o significado do trabalho despontassem de uma motivação interior. Qual seria a sua?
Para mim a escrita consiste sempre numa cura pessoal. Por detrás de cada história, há uma pergunta, uma curiosidade, algo novo que necessito entender. Podia pensar-se na literatura como uma desculpa para atravessar estes espaços, para experimentar-se e entender-se um pouco melhor.

• Para que haja uma nova criação literária, deve haver destruição ou, pelo menos, um conflito entre os gêneros? Os seus contos apresentam esta característica “híbrida”.
O mais interessante geralmente acontece nos espaços onde estes grandes continentes (vamos chamá-los de gêneros, etiquetas, temas) se encontram. De modo que acredito que estas formas híbridas podem acabar sendo bem atraentes.

• Em Os pássaros, dirigido por Alfred Hitchcock, as aves têm o poder de atacar as pessoas, destruí-las até. Já no seu conto Pássaros na boca do livro homônimo ocorre justamente o contrário, a protagonista, uma menina, se alimenta de passarinhos. Você considera que os animais estão predispostos ao sacrifício? E as pessoas? Humanos e animais sofrem em igual medida?
Não sei se em igual medida, mas ambos sofrem, evidentemente. Seria inútil classificar a intensidade do sofrimento. Seria inútil fazer isso inclusive entre os seres humanos. Cada um luta com o seu sofrimento e a dor de cada um está feita a sua medida. O que não deixa que, pensar no limite e tentar marcar até onde é aceitável o sofrimento do outro, não deixa de ser uma pergunta interessante. Acredito que Pássaros na boca tenta apresentar a arbitrariedade com que às vezes concebemos estes limites. Aceitamos, por exemplo, que no Oriente as pessoas se alimentem de bichos do mar com vida, mas se ao invés de um peixe vivo alguém come um pássaro vivo, então isso nos parece um escândalo.

• O romance permanece inacabado? E um conto? Existe uma linguagem para o fim?
Pode ser. Para mim, está sempre inacabado no sentido de que, ao me afastar de algo já publicado, mudo a minha maneira de pensar este livro em particular. Acredito que se voltasse a escrevê-lo já não tomaria as mesmas decisões, um livro sempre pode ser melhor. Entretanto, por sorte, publica-se: isso elimina o peso de continuar corrigindo eternamente.

Conheço a nuca, o pescoço e o cabelo de todos os meus personagens, caminho tão perto deles que quase posso vê-los pensar.

• Se você produzisse um filme, seria em preto e branco ou em cores?
Depende do que trata o filme. A princípio, eu escolheria o registro mais contemporâneo possível. Acredito que, a não ser que haja no próprio registro algum propósito estético, o melhor que pode se passar é que não incomode no sentido de que não esteja constantemente dizendo ao espectador: “estou aqui, sou um filme e você é um espectador”. A melhor das hipóteses é que o registro seja invisível e o espectador esqueça até tal ponto que sinta que, se estender o braço, poderá verdadeiramente tocar no que está sendo contado.

• Qual o impacto do cinema no seu trabalho?
Imagino que os estúdios de cinema acrescentaram muito a minha formação. No momento em que tive que eleger uma carreira, entre Letras e Cinema, decidi-me pelo segundo e creio que foi uma boa decisão. Sinto que aprendi muito mais sobre como se conta uma história assistindo a dezenas de filmes por semana, escrevendo roteiros e, sobretudo, editando noites inteiras. O que teria aprendido em uma carreira unicamente teórica, como era na época a carreira de Letras na Argentina? Às vezes, você podia passar horas discutindo quem era melhor para a história, se cortar uma cena no minuto e meio ou no minuto e quarenta segundos. Você podia entender por que, às vezes, as melhores cenas ficavam de fora, ou em que momentos, embora não houvesse nada importante para se mostrar, a história necessitava silêncio, um espaço no qual o espectador pudesse respirar. São processos que têm muito a ver com a cozinha literária. Sim, o cinema me ensinou muito.

Distância de resgate
Samanta Schweblin
Trad.: Ivone Benedetti
Record
143 págs.
Katia Bandeira de Mello Gerlach

Mestre em Direito Internacional pelas Universidades de Londres e Nova York. Professora e escritora, Colisões particular(res) bestiais (Editora Oitoemeio, 2015) é o seu terceiro livro de contos.

Rascunho