Em carne viva

"A loucura dos outros" questiona a superficialidade da moral que rege o mundo e os papéis desiguais conferidos a homens e mulheres
Nara Vidal, autora de “A loucura dos outros”
27/03/2017

Não nos cansamos de classificar as pessoas com base no filtro moral que as convenções sociais nos fornecem. Em nosso catálogo superficial de julgamentos, não cabem nuances, meios termos, porque, claro, uma dualidade rígida nos afasta da miséria humana que concerne a todos nós. Nos contos de A loucura dos outros, Nara Vidal não tem medo de mexer nestas feridas. As 22 histórias descascam o desespero por completo, ao ponto de deixá-lo à mostra, em carne viva. Não por acaso, sua leitura é uma experiência dolorosa — e catártica.

E o que mais choca não são os desvios dos loucos. São as margens de cada contexto de loucura. É o tempo que arrasta o ser humano rumo à velhice e ao seu próprio fim; é o desafio de viver na corda bamba de patamares inatingíveis de sanidade; é a mulher entediada, a perdida, a passiva ou mesmo a fugitiva, que nunca couberam nas estruturas de sobrevivência que lhes foram outorgadas.

Tocando em tabus e temas sensíveis, como adultério, os contos se pautam em experiências de mulheres que passam longe do velho padrão perfeito da boa moça ou do estigma cruel da meretriz. Ao tomar como pano de fundo uma sociedade machista em que a mulher é pecado quando não é santidade (e vice-versa), a autora apresenta personagens femininas reais e humanas, evidenciando a fragilidade dos padrões estabelecidos quase sempre para prendê-las e podá-las.

Trabalhando esse contraste, Nara Vidal constrói vinte e duas personagens que rompem com a casca amarga que lhes foi dada como limite. Cada uma intitula um conto. Entre elas, está Adriana, que odeia o homem com quem está casada há mais de 20 anos. O casamento duradouro que a tradição levanta como um dos principais trunfos que uma mulher pode obter (vide contos de fadas e comédias românticas) é, para a personagem, um verdadeiro fardo.

Por falar em trunfo (e fardo), o livro também toca em outro ponto extremamente cobrado das mulheres: a maternidade. Uma mulher bem-sucedida é aquela que é uma boa mãe, dizem as convenções. Mas Flávia não queria crianças e se sente condenada à gestação. Mesmo tendo três filhos, a personagem que dá nome ao décimo sétimo conto é uma verdadeira afronta à idealização da maternidade. Em Débora, esse efeito se repete.

Amanda está entre as personagens mais interessantes. Apesar de sofrer com a angústia de ter um marido desrespeitoso, agressivo e cruel, prefere se manter presa a ele a permitir que seu lar se desintegre. O conto narrado pela protagonista mostra uma mulher resignada frente a inúmeros abusos, mas extremamente forte e decidida a cumprir com o difícil papel que cabe à boa esposa: o de conservar um casamento, ainda que à base de salmoura.

Essa menção à culpabilização da mulher também aparece no conto Vanessa, narrado por um homem que não se contenta com o fato de a esposa ter engordado, envelhecido e mudado com o tempo. Para ele, o vigor do casamento havia se perdido porque Vanessa estava velha e não era a mesma de quando se casaram. Esse tipo de discurso é bastante comum ainda hoje. Tange à mulher conservar sua beleza e viço para manter seu casamento vivo e seu marido satisfeito e longe do tédio. O que quase nunca se pondera é que mulheres também se entediam e homens também ganham rugas e vícios. E é por isso que Vanessa vai embora de casa. Uma louca ingrata que abandona seu lar sabe-se-lá-por-quê, na visão do narrador. 

A escrita
Definitivamente, a institucionalidade tal qual se estabelece hoje não está a favor das mulheres. E as personagens de Nara Vidal conseguem mostrar esta realidade. Mas não é só isso que os contos colocam em xeque. Com uma linguagem delicada e carregada de poesia, o livro questiona aspectos que extrapolam recortes de gênero, como a insatisfação com a vida, o medo da morte, a insuficiência dos padrões sociais, o tempo, o tédio e a velhice.

Boa parte dos contos é narrativa psicológica com considerações e questionamentos duros e perturbadores que perpassam aqueles assuntos que todo mundo prefere sempre deixar para depois. A loucura dos outros tem uma escrita sincera e corajosa. Sobretudo, nos contos escritos em primeira pessoa, nos quais os narradores-personagens não temem o que vão dizer, nem as dores nas quais vão tocar, mesmo que isso lhes machuque.

Questões abstratas e extremamente complexas ganham corpo a partir de uma linguagem concisa distribuída em períodos curtos e certeiros, repleta de alegorias e metáforas que se convergem em uma lupa eficaz o suficiente para nos escancarar verdades, dilemas e questionamentos.

Um ritmo acelerado e encharcado de desespero, narradores bem definidos e de perfis muito distintos carregam o mesmo tom melancólico e questionador em textos densos e cheios de aforismos de tirar o fôlego com descrições bem feitas da alma humana.

Estas características não apenas ajudam a fomentar uma unidade entre os contos, como também nos dão a dimensão das peculiaridades do estilo de Nara Vidal, que em seu segundo livro de contos já apresenta uma voz bastante particular.

Outro ponto do trabalho que merece ser mencionado é a fantasia. No primeiro e no último conto, a autora flerta com o fantástico, por meio de personagens como a mulher que perde a cabeça por amor ou as que uivam para a lua em desespero. Nestas histórias, experiências incomuns servem para evidenciar a intensidade de sentimentos extremos dos quais a moralidade por si só não dá conta.

Representatividade
Apesar de nem todos os contos serem narrados por mulheres, todas as histórias captam com sensibilidade realidades e aflições pertinentes à maioria delas. Submetidas a uma mesma linha social, aos mesmos parâmetros, às mesmas exigências, cada personagem reage a esse contexto de maneira distinta, seja subvertendo relacionamentos vazios e sem amor construídos sobre papeis pré-definidos, seja obedecendo ao que se pede. De uma forma ou de outra, a briga não sai barata e cada heroína tem seu mérito ao enfrentar a vida como bem entende, como pode, como consegue.

Por séculos, as mulheres foram retratadas pela literatura com base em tipologias e clichês. Na medida em que elas foram ampliando o alcance de suas vozes, ocupando o cânone, bem como outros espaços públicos de fala, personagens femininas puderam ser lidas e entendidas para além da mocinha ingênua, da musa sedutora, da prostituta-tentação, da esposa cruel ou submissa — e por aí vai.

Em A loucura dos outros, as protagonistas aparecem assim: humanas, reais. E esta humanização das mulheres mostra o quão desumano são os padrões inventados para tolhê-las. Em um mundo em que o universal ainda se prende ao masculino, dar voz e vez ao outro — ao segundo sexo, por tantas vezes associado a comportamentos histéricos, frágeis ou perversos — é uma maneira justa de mostrar que a loucura alheia, vista bem de perto, não é tão loucura. Nem tão alheia assim.

A loucura dos outros
Nara Vidal
Reformatório
132 págs.
Nara Vidal
Nasceu em Guarani (MG) e se formou em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Já escreveu vários livros para crianças e recebeu o Prêmio Brazilian Press Awards por seu trabalho com literatura infantil. A loucura dos outros é seu segundo livro de contos. Mora na Inglaterra desde 2001.
Lívia Inácio

É jornalista e já trabalhou em jornal, revista, TV e assessoria de imprensa. Publicou um livro de contos infantis e coordenou um projeto de incentivo à leitura para crianças durante três anos. Natural de Franca (SP). Mantém o blog Rodapé, na Gazeta do Povo, onde escreve sobre literatura.

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