Certas obras têm o dom de exasperar o leitor moderno, não por uma pretensa ousadia ou agressividade formal: elas se apresentam a nós com uma forma simples, acessível até, mas com uma riqueza realmente infinita; nos exasperam, contudo, porque estamos imersos numa época cujo fluxo de informação é igualmente vasto, mas não nos detemos a considerar tantos dados; a natureza já nada tem a nos oferecer em termos de reflexão; pedimos, ou exigimos, em tudo — os livros inclusos — a objetividade, o pragmatismo.
Nesse contexto, o efeito que dez anos de existência de um dos titãs da literatura, consubstanciados num livro, é espantoso. É tal a impressão que Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida: 1823-1832, de Johann Peter Eckermann, nos causa. O livro, em suas pouco mais de setecentas páginas, possui tantas ideias, sensações e intuições sobre a existência e a arte que sufoca o leitor e, igualmente, o absorve totalmente.
Diálogos
Eckermann, autor da obra, nasceu em 1791, em Winsen, na Alemanha. De origem campesina, modesta, desperta desde cedo o amor à arte, esboçando em cópia uma gravura sobre a mesa da choça onde residia. Desde então, uma sucessão de acontecimentos fortuitos o desviam de um destino obscuro, muito em função de seus dotes artísticos e intelectuais, além da dedicação. Mas o ponto de virada ocorre em 1823 quando envia suas Contribuições à poesia à maior figura literária do país naquela época — e dos anos subsequentes: Johann Wolfgang Von Goethe.
Tem início uma genuína amizade, mas sob as bases de uma relação discípulo/mestre, que se traduz na obra em registros circunstanciais, narrados por Eckermann, de visitas que este faz a Goethe. São relatos ora breves, ora extensos, de diálogos sobre a arte, as ciências naturais e a vida, num estilo despojado e absorvente, em que o leitor subitamente se torna um conviva, junto a Schlegel, Humboldt, Hegel, Zelter, entre outras figuras ilustres da época.
A respeito desses diálogos é possível questionar sua autenticidade, ainda mais considerando a época e suas limitações quanto à forma de registro, além de que Eckermann confessa lançar mão de métodos um tanto temerários, como deixar que o tempo transcorra sobre fatos a fim de despojá-los do que é de pouca monta.
Ainda assim, considerando o testemunho de pessoas íntimas de Goethe, o entrelaçar de registros e missivas da época e, por fim, confiando na devoção de um admirador por seu ídolo, não sobram muitas dúvidas a respeito da obra, não obstante o próprio autor nos chamar a atenção para a subjetividade presente nela:
Mas estou longe de acreditar que a interioridade total de Goethe esteja retratada aqui (…) E assim como em cada circunstância e para cada pessoa ele era um homem diferente, também no meu caso particular posso dizer (…): Este é o meu Goethe.
O escopo da obra
Obviamente, o eixo do livro é essa pedra angular da cultura alemã, e o recorte temporal dele permite ao leitor conhecer um Goethe, dos diversos existentes ao longo de uma existência octogenária. Eckermann nos pinta uma figura serena, quase estoica, embora com um vigor incomum à idade; culto mas generoso, compreensivo mas implacável com o pedantismo, o radicalismo e a desordem social, elementos estes à mercê de sua verve irônica, porém leve. Em síntese, uma figura complexa e nuançada.
Um dos grandes prazeres da obra é ler os escrutínios de Goethe sobre seus contemporâneos, irmãos de profissão.
A esse respeito, sintetiza assim a figura de Lord Byron:
Mas foi bem-sucedido em tudo que produziu, e podemos de fato dizer que nele a inspiração tomou o lugar da reflexão (…) E tudo quanto vinha daquele ser humano, especialmente do coração, era excelente. Produzia suas obras como as mulheres belas crianças; não pensam no que fazem e nem sabem como o fazem.
Vê-se como Goethe podia reconhecer os méritos sem abrir mão do rigor, mesmo quando o tópico era uma de suas obsessões, como também o foram Shakespeare, Napoleão, Claude Lourain, etc.
Eis Voltaire sob seu juízo:
Muitos possuem bastante engenho e grandes conhecimentos, mas (…) quando se trata de conquistar a admiração das massas míopes (…) não mostram nem pudor nem temor, nada é sagrado para eles.
Interessante aqui, como em outras passagens, o grande papel que a moral desempenha para Goethe:
Se um poeta possuir uma alma tão elevada quanto à de Sófocles, o efeito por ele provocado será sempre moral.
Embora não se deva tomar como moralismo, o termo parece se associar ao equilíbrio, um valor caro a esse “filho da natureza”, como o chamou Thomas Mann acertadamente, porque em Goethe a natureza é a ordem da existência.
A relação entre o artista e a ordem natural é, sem dúvida, expressiva. Seu classicismo e incursões pelas ciências naturais adquirem, sobre esse viés, uma conotação simbólica. É assim que o inatismo, ainda que no âmbito da estética, é admitido pelo poeta:
Jamais se conseguirá fazer de um poeta algo diferente daquilo a que a natureza o predestinou. Se quiserem obrigá-lo a ser outro, vocês o destruirão.
No campo das ciências naturais, onde Goethe se aventurou com paixão, sua atração pela natureza é ainda mais notória, embora décadas de dedicação não elidiram o equívoco: sua teoria das cores, que polemiza com à de Newton, e dão ao autor a crença de ser “o único a conhecer a verdade”, reputando-a sua maior contribuição para a humanidade, hoje é apenas uma curiosa reflexão sobre os fenômenos de tonalidade, já em seu tempo desdenhada por especialistas. É interessante notar que boa parte de sentimentos como ressentimento, sensação de mérito ignorado e orgulho esteja ligada a esse esforço malogrado. A leve menção a um equívoco lhe causava contrariedade, suscitando inclusive no livro uma rara divergência entre Goethe e Eckermann.
Essa “tirania” velada, imposta pela figura titânica de Goethe, manifesta-se também na relação entre ambos, embora não no campo das ideias, onde vigora uma plena simbiose intelectiva. Mas por conta desta mesma, Eckermann tarda sua iniciação literária, empenhado na organização das obras do mestre, de que fora incumbido, e em seu livro sua própria figura cede espaço à exuberância mental de Goethe.
O livro, em suas pouco mais de setecentas páginas, possui tantas ideias, sensações e intuições sobre a existência e a arte que sufoca o leitor e, igualmente, o absorve totalmente.
Goethe e a modernidade
Ao empreender uma longa jornada por três volumes de um minucioso trabalho de rememoração, imergindo numa mente em que confluem todas as vertentes da tradição ocidental (em uma época cujos predicados permitiram-lhe encontrar seu lugar e gozar ainda em vida do prestígio devido), o leitor talvez se pergunte por que Goethe e sua sabedoria têm tão pouco espaço entre os leitores de hoje.
A esse respeito é reveladora sua afirmação, em 1828, a um estupefato Eckermann (numa involuntária ironia):
Minhas obras jamais serão populares (…) Elas não foram escritas para as massas e sim para pessoas que desejam e buscam algo semelhante.
Eis a epígrafe máxima de toda obra goetheana, e por conta da qual Harold Bloom, em seu livro Gênio, alcunha seu autor de “brutalmente elitista”. É, por certo, uma frase forte, mas de uma autoclarividência que os anos só ratificaram; sua premissa torna-se dolorosa numa era de infinita informação e pouca sabedoria, mas os leitores (e em especial os escritores modernos) certamente encontrarão nessa obra (em edição e tradução primorosas da Unesp) uma via alternativa, como na própria obra de Goethe.
Conversações com Goethe é, em suma, um livro essencial, de cuja leitura o intelecto sai mais enriquecido.