Višegrad é uma cidade curiosa: localizada na fronteira entre a Bósnia-Herzegovina e a Sérvia, tem um passado de Impérios, dominação e guerras e conta hoje com uma população de cerca de 21 mil habitantes. É também a cidade natal de um ganhador de um Nobel de Literatura em 1961 — o iugoslavo Ivo Andric — e de Saša Stanišić, um jovem e promissor escritor da literatura alemã contemporânea.
Stanišić nasceu em 1978 e durante sua infância e adolescência viu as tensões em seu país aumentarem, explodindo em uma guerra fratricida que fragmentou o país. Em 1992, foge com sua família para a Alemanha e se estabelece como refugiado em Heidelberg, sem saber uma palavra sequer de alemão. Stanišić posteriormente estuda Filologia do Alemão como Língua Estrangeira e Filologia Eslava na Universidade de Heidelberg. O autor tem, até o momento, três livros publicados: Wie der Soldat das Grammofon repariert, de 2006 (Como o soldado conserta o gramofone, Record), Vor dem Fest, de 2014 (Antes da festa, Editora Foz) e Fallensteller, lançado em maio de 2016, ainda sem tradução no Brasil. Em 2008, o autor ganhou o Prêmio Adalbert-von-Chamisso, destinado a autores estrangeiros que escrevem em língua alemã. Na ocasião, tinha lançado apenas o romance autobiográfico Como o soldado conserta o gramofone, uma história sobre a infância em uma idílica Višegrad, ameaçada pela sombra da guerra.
Estranha festa
Antes da festa, embora carregue algumas referências de sua autobiografia, abandona a autoficção para dar vida à pequena e curiosa Fürstenfelde: uma cidadezinha na região de Uckermark, no norte da Alemanha, fronteira com a Polônia, que celebra há 400 anos a Annenfest, ou Festa de Sant’Anna, apesar de ninguém saber o que se comemora e o porquê. A cidade é habitada por figuras bastante peculiares e é através delas que sua história é contada. E é também devido a seus poucos, porém apaixonados, moradores que a ela ainda existe. O livro relata os acontecimentos um dia e uma noite antes da Annenfest.
O romance é uma mistura de capítulos curtos, com estilos bastante variados, abarcando a fábula, o conto de fadas e a crônica. A personagem da raposa dá um tom de fábula a certos capítulos. Apesar de o animal não ser explicitamente antropomorfizado, apresenta características humanas: atribui qualidades (“Com o aroma dessa fêmea estão misturados na maior parte das vezes outros bem finos, a raposa gosta de sentir o cheiro deles: corante, e umbra, e cinábrio e resina. Agora há, além disso: o doce agudo de frutas fermentadas, potássio e magnésio de lágrimas. Muito bem. O perigo não cheira lágrimas.”), estabelece laços com seres de outras espécies (“A raposa conhece a fêmea [de humanos] desde que ela ainda era um filhote. Aprendeu que aquela fêmea não representa um perigo.”), bola estratégias (“Ela o deixou acreditar que foi esperteza dele e não seu próprio jogo e sua própria vontade.”).
O conto de fadas também tem seu lugar nessa dança: o capítulo O anel do caldeireiro. Trata-se do texto Der Ring des Kesselflickers, extraído do livro Die Rote Feuerkugel – Sagen aus der Uckermark, que reúne uma série de contos tradicionais da região de Uckermark. Stanišić não apenas transcreveu o texto em seu livro, mas o fez de forma a sinalizar que um dos personagens adulterou o conto. As páginas que abrigam essa história apresentam uma série de rasuras feitas a mão, que ocultam parcialmente o conteúdo original do conto.
Os textos que compõem o Arquivário merecem atenção extra: em formato de crônica, formam uma coleção de lendas e histórias que flertam com o absurdo e brincam com a história de Fürstenfelde. O alemão utilizado nessas passagens é antigo, datado do século 16, o que pode ser constatado já nas primeiras linhas de cada unidade (“Im Jar 1588, im Monat Maio”, por exemplo) e em palavras como “bey”, “zwey”, “auff”, hoje grafadas como “bei”, “zwei” e “auf”, respectivamente. Além disso, contempla também diferentes dizeres/falares, como o alemão mais contemporâneo, cheio de gírias e uma espécie de alemão-uzbeque, cheio de sotaque. Os capítulos e as histórias de cada personagem se entrelaçam como nos filmes mais famosos de Robert Altman, diretor americano conhecido por suas narrativas fragmentadas, sem um protagonista clássico.
Antes da festa é também um livro sobre memória, sobre preservação de uma comunidade que míngua dia após dia. Uma cidade limítrofe, em que prédios novos (“Neubauten”) compartilham o espaço com ruínas e coisas inacabadas, em que o concreto duela com o selvagem, em que os animais disputam posses com os moradores: a raposa, que os espreita — os conhece — e está atrás de ovos do galinheiro de Ditzsche, os ratos que dominam as construções locais. Em Fürstenfelde, o passado é tão presente quanto o próprio presente: a antiga divisão entre Alemanha Oriental e Ocidental está intrínseca nas pessoas e nos objetos.
Mas sério, o que ele haveria de querer roubar ali dentro? Aqueles troços da Alemanha Oriental? Todo mundo tem tralhas suficientes daqueles tempos em casa. Enquanto um secador de cabelo da Alemanha Oriental consegue secar os cabelos de alguém, aliás, a Alemanha Oriental não morreu.
As antigas oligarquias resistem através dos séculos e a figura que representa esse poder é Poppo von Blankenburg, um magnata das máquinas agrícolas que, segundo o Arquivário da cidade, é uma presença viva ao longo dos anos, tendo registros desde 1589 a 2011.
Problemas de tradução e revisão
A edição brasileira, traduzida por Marcelo Backes, apresenta alguns problemas. A tradução é um tanto quanto negligente, apagando as marcas de oralidade e de diferenciação do alemão, por exemplo, ignorando o alemão-uzbeque utilizado pelo personagem Trunov e as marcas de oralização nas falas de Lada e Johann. Além disso, ela é bastante literal, o que causa um certo estranhamento não-intencional em algumas partes do texto (“Nas ruas, em meio à noite, que nos torna visíveis, os postes de iluminação estão acesos.”).
A revisão é desleixada, ignorando erros de ortografia (“O povoado em cadeiras. A ordem dos acentos é um tema explosivo”) e até mesmo de digitação — o nome do personagen Ditzsche aparece, por vezes, grafado como “Dietzsche” e há um erro grosseiro em que o Salmo 31:15 aparece como Salmo 32:15. Ainda assim, o passeio à Fürstenfelde é prazeroso. Stanišić nos presenteia com um belo mosaico de paisagens e figuras, de contos e crônicas que dialogam com alguns episódios da história alemã, escritos com humor e leveza, mas também com uma certa dose de ironia. O Uckermark está aqui, sem dúvidas, bem representado.