Considerações sobre o fato de o fazer literário continuar em alta e outras reflexões acerca da prosa de ficção são o eixo condutor de Mutações da literatura no século XXI, de Leyla Perrone-Moisés. Dividido em duas partes, Mutações literárias e culturais e A narrativa contemporânea, o livro busca avaliar a literatura feita entre a década de 1990 e a virada para o século 21, ainda que, salienta a autora, “falar da literatura de seu próprio tempo [seja] um risco” aos críticos e historiadores de literatura.
Na primeira parte composta de seis artigos, sobressaem os que abordam o suposto fim da literatura, a tentativa de compreensão do papel da crítica literária na contemporaneidade e o dilema em que se transformou o ensino de literatura.
Para sobreviver à sua presumida morte, de acordo com Leyla Perrone-Moisés, houve uma adaptação da literatura à espetacularização das últimas décadas, obrigando o escritor a sair do silêncio do espaço de escrita para divulgar sua obra nos eventos literários. Ou seja, o escritor midiatizou-se a fim de sobreviver aos novos tempos.
Apesar da permanente morte anunciada da literatura, muitas obras são lançadas diariamente. Basta olhar nas livrarias o grande número de títulos, a maioria em prosa. Não está em discussão a qualidade dessas produções, já que boa parte pertence a obras de entretenimento em oposição à chamada alta literatura. Ademais, tem havido incentivos — bolsas, concursos, etc. — para a produção literária, sem contar que a internet tem sido um bom meio de divulgação para quem não dispõe de um editor ou não pode bancar um livro do próprio bolso.
Noutro ensaio desta primeira parte, Perrone-Moisés observa que, embora desprestigiada, “a crítica literária ainda existe”. Quando surgiu nas páginas dos jornais do século 19, ela foi considerada um “gênero respeitado e temido”. Atualmente, ocupa alguns jornais e revistas de grande circulação e classifica-se em três categorias: a crítica universitária, a jornalística e a dos blogs.
Divulgada em revistas acadêmicas e colóquios, restrita ao público acadêmico, a crítica universitária não efetua “juízos de valor”. Pauta-se em análises minuciosas de procedimentos usados por escritores do passado. A função de anunciar publicações de livros, resumindo-os e emitindo sobre eles concisos juízos de valor tem sido competência da crítica jornalística. Dinâmica e judicativa como a jornalística, a crítica dos blogs carece, na sua maioria, de sólida fundamentação teórica. Dentre as três, a crítica acadêmica e a jornalística são as mais respeitadas. Ambas diferenciam-se pela linguagem empregada e pelo público a que se destina.
Outra discussão relevante relaciona-se ao descrédito do ensino de literatura. Numa época em que a tecnologia e a globalização econômica dão as cartas, a literatura passou a ser um produto “com pouco valor mercadológico”. Consequentemente, o professor de literatura tornou-se uma profissão de pouca importância no mercado. Nas planilhas de custo da educação, literatura é dispensável. Importa preparar os alunos para o mundo do trabalho. Mesmo nas universidades, a disciplina de literatura é tida como supérflua e desprovida do espírito lucrativo dos cursos voltados às ciências e tecnologias.
Na contramão da sociedade contemporânea que busca reduzir tudo à esfera da lucratividade e do utilitarismo, a ensaísta defende, entre outros benefícios, que conhecer e estudar a literatura significa pertencimento à sociedade letrada, recebimento de um legado cultural e capacitação para o exercício da imaginação.
Narrativa contemporânea
Composta de oito ensaios, a segunda parte de Mutações da literatura no século XXI efetua algumas reflexões acerca da narrativa contemporânea. Embora todos sejam relevantes, privilegiam-se aqui os textos que abordam a inclinação de alguns romances em tornar renomados escritores personagens de seus enredos; o sucesso da chamada autoficção; e a chamada ficção pós-utópica ou distópica.
Observa a ensaísta que uma das tendências atuais tem sido a publicação de romances cujos protagonistas são escritores do passado, tais como Kafka, Pessoa, Virginia Woolf, Dostoiévski, Rimbaud, Verlaine, Baudelaire, Machado, entre outros célebres autores já mortos.
Algumas justificativas sobre a profusão de obras desse tipo estão em Os escritores como personagens de ficção e Espectros da modernidade literária. Estes textos evidenciam que os autores escolhidos para figurarem como personagens são aqueles que escreveram entre “as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX” e que gozam de grande consideração do público e da crítica.
Em A autoficção e os limites do eu, a temática versa sobre a ficção autoficcional, um tipo de narrativa que corresponde ao individualismo e ao egocentrismo dos tempos atuais. Esclarece-se que a “Autoficção pertence a uma longa e respeitável tradição”, enumerando Montaigne, Rousseau e Thomas de Quincey entre as figuras respeitáveis que a praticaram num passado distante. Na década de 1980, Alain Robbe-Grillet, Marguerite Duras, Nathalie Serraute e outros escritores do noveau roman francês renderam-se a esse tipo de narrativa.
Conforme a apreciação da ensaísta, a obra de Karl Ove Knausgård exemplifica, atualmente, a literatura de autoficção de prestígio internacional: “Em 3 mil páginas, divididas em seis volumes, o escritor narra os acontecimentos de sua existência cotidiana, presente e passada, de modo não cronológico”. Além disso, o escritor norueguês expõe suas fraquezas e dúvidas em relação a seu valor como escritor e como homem.
O fato de não existir nas narrativas uma fala “de um eu vaidoso e autocomplacente” e de haver um narrador “atento e receptivo, tanto às outras personagens de seu relato quanto ao mundo em geral, às paisagens, aos climas, aos objetos” são alguns dos méritos da autoficção de Knausgård, distinguindo sua obra de tantas outras de estilo demasiadamente narcisista.
Inspirando-se numa reflexão de Haroldo de Campos, que caracteriza a poesia contemporânea de “pós-utópica”, Leyla Perrone-Moisés estende tal definição a um tipo de narrativa intitulada ficção pós-utópica ou distópica, “que representa ou imagina a sociedade de modo calamitoso, e não apenas crítico, como a maioria dos romances realistas atuais”. Entre os escritores analisados, estão os franceses Michel Houellebecq e Antoine Volodine, o angolano Gonçalo M. Tavares e os brasileiros Ricardo Lísias e Bernardo Carvalho.
Para a ensaísta, os romances de Houellebecq “mostram a realidade contemporânea de maneira totalmente disfórica”. Na obra de Volodine assinala que “O universo do escritor é um mundo arrasador, que concentra todas as frustrações e os medos da humanidade atual diante de um futuro incerto”. Análoga percepção faz de Gonçalo M. Tavares, cujos romances apresentam uma “visão do homem […] objetivamente negativa”. No caso de Lísias e Carvalho, ela constata que nenhum dos dois escreve sobre elementos ideológicos e políticos como os escritores acima arrolados. O trabalho de ambos liga-se diretamente à linguagem, sobretudo às “linguagens estereotipadas que se manifestam na mídia, no mundo corporativo e na fala de seus adeptos”.
Em suma, é possível afirmar que Mutações da literatura no século XXI apresenta um painel bastante amplo sobre o andamento da produção literária, da crítica e do ensino de literatura entre 1990 e os primeiros anos deste novo século.
A ênfase dos ensaios contidos neste volume recai sobre a produção romanesca de escritores de diferentes procedências. O principal critério na escolha dos autores foi a “representatividade internacional, atestada pela tradução de suas obras em numerosos idiomas e pelo consenso de críticos atuantes em vários países”.
O comentário na contracapa é lapidar: “a alta literatura permanece essencial como instância de representação e crítica da realidade”. Nesse sentido, os ensaios presentes neste livro permitem a Leyla Perrone-Moysés estabelecer entre a prosa ficcional bem-elaborada um diálogo profícuo com filósofos, linguistas e, é óbvio, estudiosos da literatura.