Em 2000, Menalton Braff surpreendeu o meio literário ao ganhar o prêmio Jabuti de Livro do Ano com os contos de À sombra do cipreste. Pela primeira vez seu nome aparecia na capa de um livro. Antes, publicara duas obras sob o pseudônimo de Salvador dos Passos. “Menalton Braff parecia nome de autor estrangeiro”, disse à época. Era o início da longa e consistente carreira deste escritor nascido em Taquara (RS), em 1938, e que há muitos anos vive na pequena Serrana, interior paulista. Sua obra é composta por romances, contos e literatura infantojuvenil. Destacam-se A muralha de Adriano (2008), A coleira no pescoço (2006), Que enchente me carrega? (2003). Seu livro mais recente é O peso da gravata (Primavera Editorial).
• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Meu pai tinha em sua biblioteca o Tratado de versificação, de Olavo Bilac e Guimarães Passos. Mal tinha aprendido a ler, comecei a tentar a decifração do que significava métrica, rima, estrofe. Gostava de encher páginas de meus cadernos com pequenos poemas, alguns que eu copiava, outros que escrevia. Era uma brincadeira que me dava prazer. Logo depois de ter passado pelo Monteiro Lobato, comecei a ler romances, Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar, um pouco depois o Machado de Assis. Só no Ensino Médio me deparei com gente muito parecida comigo em romances do Erico Verissimo, então fui mordido pela prosa, pensando que era preciso botar no papel muita coisa vivida.
• Quais são suas manias e obsessões literárias?
A busca permanente da adequação entre os planos da expressão e do conteúdo. O modo de estruturação de um texto, a linguagem empregada, a escolha da técnica narrativa mais apropriada.
• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Textos literários e eventualmente textos metaliterários. A leitura sobretudo dos clássicos, mas também dos contemporâneos, principalmente dos escritores mais representativos de nossa época.
• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Michel Temer, qual seria?
Recomendaria a leitura do Hamlet: ser ou não ser, eis a questão.
• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Silêncio no entorno, temperatura amena, os elementos externos; os internos, o sentimento de que as próximas cinquenta horas poderão ser dedicadas à escrita, sem qualquer preocupação com assuntos domésticos.
• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Uma boa iluminação. O restante não pesa. Ruído, conversa ao lado, movimento, nada disso me incomoda.
• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Ultimamente, tenho trabalhado quase só com romance. E no caso do romance, considero um dia de trabalho produtivo aquele em que progrido cerca de quinhentas palavras. Às vezes, no dia seguinte descubro que o progresso não foi o que esperava e mando tudo para o lixo. Mas isso não importa, o exercício da escrita não se perde.
• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Uma construção inusitada, uma combinação inesperada, ou seja, qualquer coisa que eu sinta como invenção, dizer o que nunca foi dito (impossível?) de um modo que nunca foi antes utilizado.
• Qual o maior inimigo de um escritor?
A zona de conforto. O escritor que descobre um modo de se expressar e não sai mais do lugar, entrou na ratoeira, está morrendo sem sentir. Conheço escritor também que lê muito pouco, alegando que não quer sofrer influência. Tem muita gente inventando a roda e se satisfaz com isso. E geralmente já existe roda mais bem construída.
• O que mais lhe incomoda no meio literário?
O que me incomoda, principalmente, é a falsa consciência da maioria dos grupos de que só o que sai do grupo é literatura. Há uma tendência muito grande ao corporativismo, recusando qualquer coisa que não seja espelho. Ora, acredito na diversidade, e apesar de um modo um tanto ingênuo, a Geração de 22 implodiu a ideia de Escola, de estética comum, ou estética de época. Claro que existe o zeitgeist penetrando o modo de cada um ver o mundo, nem por isso homogeneizando a produção de uma época. Felizmente, porque isso nos enriquece.
• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Pra citar um mais antigo, cito o Domício da Gama, mas esta história de cânone é muito complicada: público leitor, crítica universitária, resenhistas de periódicos, instituições governamentais, materiais didáticos, enfim, por que alguém sobrevive e outros devem morrer não chega a ser um mistério, mas é difícil de se descobrir. Outro autor é o Geraldo Ferraz, com sua literatura extremamente moderna.
• Um livro imprescindível e um descartável.
Imprescindível é o Ulisses, de James Joyce, por seu grau de invenção tanto no micro quanto no macro; descartáveis são os livros de autoajuda.
• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Dizer tudo, sem deixar brechas por onde o leitor possa penetrar sozinho, me parece um defeito que compromete um livro. É preciso que o leitor colabore na formação do sentido do texto.
• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Prefiro o plural: racismo, intolerância de qualquer natureza (religiosa, política, genérica, etc.). Não acredito em neutralidade e a palavra sempre diz alguma coisa, mas é preciso evitar que o texto literário extrapole sua função estética, mesmo sabendo-se que o mundo não é cor-de-rosa.
• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
Uma notícia de jornal. Um bêbado subiu em um poste e lá de cima gritou que iria voar. Jogou-se no ar e quebrou-se na calçada. A história me impressionou muito e passei alguns dias incomodado com aquilo, tentando imaginar o que poderia levar um homem a buscar seu fim daquela maneira.
• Quando a inspiração não vem…
Não interrompo os exercícios. Fico sentado olhando para o computador e ele olhando pra mim. E isso por algum tempo, até descobrir que nossas ligações estão momentaneamente interrompidas. Então desisto e vou ler ou cuidar de outros assuntos.
• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
O Moacyr Scliar, por sua elegância, seu cavalheirismo e generosidade. Tenho certeza de que teríamos assunto para passar uma manhã inteira à mesa.
• O que é um bom leitor?
É aquele que completa as lacunas deixadas de propósito no texto, percebe as intenções, mesmo as mais sutis, que o autor apenas sugere. O bom leitor, ainda, aceita mais de um significado do que lê e não se fecha na impressão causada pela leitura.
• O que te dá medo?
Que o Fukuyama tenha razão e a humanidade tenha perdido a noção de utopia e per secula seculorum nada mudará, e seremos todos infelizes para sempre.
• O que te faz feliz?
Cenas de bondade explícita, como afirmação de que a humanidade é viável, e que nem tudo está perdido.
• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
Certeza nenhuma. E as dúvidas são muitas. Minhas concepções estéticas são corretas? Meu pensamento, minha visão de mundo podem ser proclamados?
• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Minha maior preocupação é com a linguagem. Geralmente quando me ponho a escrever, o assunto, a história estão mais ou menos desenvolvidos na mente. Transformar isso em linguagem é que preocupa. 0
• A literatura tem alguma obrigação?
Não acredito em obrigação. A literatura não é para, ela é. Mas também não aceito que ela seja só entretenimento. Ela tem um papel na sociedade, que não é uma obrigação, mas é muito importante: a literatura é gerada no campo social, apesar do ponto de vista individual do escritor. A literatura ajuda a formar a identidade de um povo.
• Qual o limite da ficção?
Não há limites para a ficção. Mas ela não é tão livre como possa parecer. Quando se lança mão de elementos existentes, empíricos, não se deve afirmar dados errados. Se falo, como o Gabo, em um velho muito velho de cabelos e barba brancos que vem voando pelo espaço, isso pode ter uma coerência interna, é verossímil. Se o velho vai pousar na cidade de Curitiba, às margens do rio Amazonas, então a ficção ultrapassa os limites em que deveria manter-se.
• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Isso me lembra um verso do Bertolt Brecht: Triste do povo que precisa de líderes. Eu tenho a impressão de que não preciso mais.
• O que você espera da eternidade?
Aí já se entra pela metafísica. A eternidade não é uma coisa além de nosso pensamento. Portanto não espero nada dela, pois ela é tão múltipla como a humanidade.