Aos 78 anos, José Clemente Pozenato continua produzindo com sua polivalência característica. É romancista, poeta, professor e também tradutor. 2016 marcou a passagem de 20 anos desde que O quatrilho, filme baseado em seu romance homônimo, concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Pozenato aparece na cena final do longa: ele é o fotógrafo que registra a família Gardone. Na cena, Pozenato surge rapidamente com o mesmo sorriso de Monalisa que exibe no dia a dia, um sorriso de quem escuta mais do que fala. O escritor é reservado, mas pessoas próximas também o consideram espirituoso. Pozenato tem cerca de 30 livros publicados e foi professor por mais de 50 anos. Na Universidade de Caxias do Sul (UCS), coordenou o Mestrado em Letras, Cultura e Regionalidade. Nascido em São Francisco de Paula, em uma região marcada pela cultura campeira, Pozenato se mudou jovem para Caxias do Sul, na serra gaúcha. Na nova cidade, se deparou com a cultura da imigração italiana que inspirou diversas de suas obras. “Toda minha obra de ficção poderia ser resumida numa frase: a luta do indivíduo com as instituições”, conta nesta entrevista concedida por e-mail.
O quatrilho não foi sua única obra adaptada às telas com sucesso. O caso do martelo (1985) foi adaptado em um especial pela Globo em 1993. Pozenato tem consciência de que suas obras são naturalmente cinematográficas. “Se quero ter leitores, preciso dar a eles uma narrativa visual. Como Machado, que fazia cenas que eram um flash fotográfico”, afirma. Para o autor, é inegável que tanto o cinema como a televisão colaboraram para que seus livros chegassem a novos leitores. Porém, quando questionado sobre o espaço restrito ocupado por escritores gaúchos na literatura, dominada pelo eixo Rio-São Paulo, Pozenato admite que “nunca foi muito competente para entender as regras do mercado”.
Se 2016 marcou os 20 anos da indicação ao Oscar, 2017 marca os 50 anos da publicação da coletânea de poesias Matrícula (1967), ao lado dos poetas Jayme Paviani, Oscar Bertholdo, Ary Trentin e Delmino Gritti. Esta foi, portanto, sua estreia como escritor. Críticos como Donaldo Schüler consideram o grupo como um marco poético do Rio Grande do Sul. Pozenato conta que se dedicou por mais de vinte anos a fazer e a publicar poesia. “Um exercício que considero ter sido fundamental para me familiarizar com as palavras, para conviver com elas, para não brigar com elas.”
Seu trabalho mais recente é a união da poesia com o ofício de tradutor. Porém, não caracteriza a atividade exatamente como um trabalho, mas como um “prazer”. Pozenato tem traduzido diferentes poetas italianos. Em 2015, sua tradução de O cancioneiro, de Francesco Petrarca (1304-1374), foi finalista do Prêmio Jabuti. “Se eu fosse contar todas as vezes em que ‘quase’ recebi um prêmio literário, daria outra entrevista. Mas me consolo com Fernando Pessoa, que ‘quase’ foi premiado com seu livro de poemas Mensagem: e ninguém se lembra de quem foi o vencedor…”, diz. Pozenato acaba de traduzir Guido Cavalcanti (1255-1300) e está traduzindo Giacomo da Lentini (1210-1260), considerado o inventor do soneto, e Guido Guinizzelli (1230-1276), “que Dante apontou como pai do stil nuovo”.
Mesmo envolvido com a poesia, Pozenato não deixa os romances de lado. Para ele, citando Milan Kundera, “há coisas que só o romance consegue dizer”. O autor tem o projeto de uma obra de ficção sobre o meio acadêmico e seus jogos de poder. Porém, “abandonou” uma ideia de romance sobre a política brasileira. “Com Mensalão e depois a Lava Jato me dei conta de que a ficção não conseguiria ir tão longe em inventividade. Fui vencido pela concorrência do mundo real!”, diz.
Durante mais de vinte anos me dediquei a fazer poesia e a publicar poesia. Um exercício que considero ter sido fundamental para me familiarizar com as palavras, para conviver com elas, para não brigar com elas.
• Qual texto o senhor considera sua primeira escrita literária e por quê?
Desde menino eu sentia o embalo das palavras. Sabia de cor versos de João de Deus, Gonçalves Dias, Castro Alves, Olavo Bilac: Criança! Não verás nenhum país como este! Olha que céu, que mar, que rios! Minhas redações no ginásio buscavam já o que eu imaginava serem palavras bonitas. “Nuvens plúmbeas cobriam o céu”, escrevi uma vez. E o professor, que já tinha ultrapassado o gosto parnasiano só fez este comentário: “Não fica melhor escrever ‘nuvens de chumbo pesavam no céu’?” Aí descobri o poeta Murilo Mendes, num livro chamado Poesia liberdade, onde li este verso inesquecível: “Sentamo-nos à mesa servida por um braço de mar”. Descobri então que com palavras dá para mudar o mundo. Li Manuel Bandeira e descobri que um gato fazendo pipi no jardim também dava poesia! Depois descobri Rilke, Paul Claudel, T. S. Eliot, Ezra Pound. E durante mais de vinte anos me dediquei a fazer poesia e a publicar poesia. Um exercício que considero ter sido fundamental para me familiarizar com as palavras, para conviver com elas, para não brigar com elas.
• O senhor é autor de romance, novela e contos, mas também escreve poesia. Qual a importância do Grupo Matrícula para a sua obra poética?
Nós, do chamado Grupo Matrícula, líamos todos esses poetas. A gente queria uma poesia para fazer refletir, não como enfeite literário. Quando saiu a coletânea Matrícula, em 1967, fomos saudados, com crítica elogiosa, por Guilhermino César e Manoelito de Ornellas em Porto Alegre, e por ninguém menos que Nelson Werneck Sodré no Rio.
• Os brasileiros leem pouca poesia?
Os brasileiros deviam, sim, ler mais poesia. Também os escritores, para avaliarem melhor o peso de cada palavra.
• A novela O caso do martelo é bastante contemporânea em sua temática se considerarmos que histórias de investigação criminal são frequentemente transformadas em filmes e seriados de televisão, assim como foi sua obra, na década de 1980. No livro, durante parte significativa da narrativa um personagem é descrito como homossexual, fato chocante em uma colônia italiana conservadora, do interior de Caxias, onde se desenrola a história. Em O quatrilho há traições entre os casais… O senhor considera que há transgressão social na sua obra?
Toda minha obra de ficção poderia ser resumida numa frase: a luta do indivíduo com as instituições. Que instituições? Todas, e a chamada moralidade pública é uma delas, talvez a mais tirana de todas. No romance O quatrilho ponho um personagem, o padre Giobbe, com a função de explicar ao leitor como funcionam os diversos planos da moralidade: a pública, a individual, claramente assumida quando diverge da pública, e a hipócrita, em que alguém finge seguir a moralidade pública e faz outra coisa por baixo dos panos.
• O que motivou o senhor a escrever O quatrilho? Já sabia que seria uma trilogia, seguida por A Cocanha e A Babilônia? Como define esse projeto literário?
Desde o início tive o projeto de escrever uma trilogia sobre três gerações da imigração italiana no Rio Grande do Sul: a dos que atravessaram o oceano (A cocanha), a dos primeiros nascidos aqui num período de conflito entre a economia familiar de subsistência e a de acumulação de capital (O quatrilho), e a terceira no período dos nacionalismos (A Babilônia); esta última geração sentiu-se perdida, porque a pátria de origem dos avós estava lá atrás, esquecida, e a pátria em que nasceram a proibiu até de falar a língua aprendida no berço: um “tempo partido”, como definiu Drummond num poema que uso como epígrafe do romance. O principal motivo de encarar esse projeto foi o de perceber, como professor de literatura, que essa experiência humana, com suas peculiaridades, não havia sido ainda levada para a literatura brasileira. Já a minha literatura policial não tem como foco a investigação criminalística, mas a investigação do ambiente cultural em que acontece o crime. O crime é apenas um truque para prender o leitor atento ao que o investigador vai descobrindo. Pode ver que nenhuma de minhas novelas policiais termina em prisão ou em processo… Em O caso do martelo quero mostrar uma comunidade rural permeada por valores urbanos e ao mesmo tempo querendo se proteger deles. Em O caso do loteamento clandestino, o ambiente é dos migrantes rurais que vão para a cidade grande, onde descobrem que mentir é a arma mais eficaz de que dispõem para sobreviver. Em O caso do e-mail, o foco está na geração jovem obcecada pela internet. Em O caso da caçada de perdiz, que põe em cena uma tradição cultural forte no Sul, eu quis demonstrar uma frase que vi na parede da casa de um professor na Alemanha, também ele caçador: “Caçar não é matar, é outra coisa”. Não por acaso ponho a frase na boca de um personagem.
• Como o senhor avalia as adaptações de sua obra para o cinema e televisão? Enxergou uma obra diferente da sua, como relatam alguns escritores, ou conseguiu ver fidelidade ao texto? Em 2016 foram 20 anos de O quatrilho no Oscar. O senhor acha que o filme deveria ter levado a estatueta?
O fato de eu ter obras vertidas para o cinema e a televisão (até mesmo uma história infantil, Pisca-tudo, teve essa sorte) deve-se a um fator: elas oferecem ao leitor uma representação visual bem definida das cenas. Um dos editores de O quatrilho, Charles Kiefer, chegou a profetizar no dia mesmo do lançamento da obra: “esse teu romance vai virar filme, ele já é cinematográfico”. E isso não é por acaso: escrevo com a consciência de que o leitor está acostumado a “ler” histórias no cinema e na televisão. Se quero ter leitores, preciso dar a eles uma narrativa visual. Como Machado, que fazia cenas que eram um flash fotográfico. Leiam o início do Quincas Borba, por exemplo. Meus diálogos também buscam a precisão, a força dos diálogos de cinema. Daniel Filho, na época em que produziu O caso do martelo na Globo, chegou a me dizer: “Se você fosse para Hollywood, ia ser contratado como dialoguista”. É claro que, mesmo assim, na transposição da narrativa literária para o cinema e a televisão, são necessários ajustes, principalmente de tempo. No caso da televisão, também ajustes de “espetáculo”, para fazer o espectador ir para a sala. Como sei disso, nunca me incomodei. Pelo contrário: tanto o cinema como a televisão fizeram aumentar o número de leitores de minhas obras. Mesmo que O quatrilho não tenha ganho o Oscar… Mas a simples indicação já é um prêmio.
Os brasileiros deviam, sim, ler mais poesia. Também os escritores, para avaliarem melhor o peso de cada palavra.
• Atualmente, o senhor está trabalhando como tradutor. Como foi a experiência de traduzir o cancioneiro de Petrarca? Por que o senhor escolheu o poeta? Quais foram as maiores dificuldades e recompensas?
Traduzir poesia sempre foi um prazer. Descobri que a tradução é uma forma de ler o poema na aparência e também nas entranhas. Nas gavetas tenho traduções de Pound, de Elliot, de Appolinaire, de Giacomo Leopardi, de Cesare Pavese, e por aí vai. Petrarca foi um caso especial. Sempre achei que a poesia dele foi submergida, na crítica literária, injustamente, pela poesia de Dante Alighieri. E esse é um sentimento que acredito seja comum aos poetas do Ocidente: vejo na poesia ocidental marcas indeléveis de Petrarca, e não de Dante. Comecei traduzindo dois ou três sonetos — parodiados por Camões — para mostrar aos alunos de literatura que Petrarca era mais poeta, no plano do sensível e no plano do intelectual. Segui traduzindo outros sonetos que mostrei ao amigo e poeta Armindo Trevisan, que me intimou a traduzir todo o Petrarca. Estava com o trabalho bem avançado quando saiu em Portugal a tradução de Vasco Graça Moura. Confrontei minha tradução com a dele, concluí que a minha era mais “petrarquiana”, e segui adiante. Mais uma vez fui favorecido pelo destino. A Ateliê tinha programado publicar Petrarca e estava, inclusive, com as ilustrações de Ênio Squeff já prontas. “Sua tradução chegou na hora certa”, me disse o editor.
• Sua tradução de Petrarca foi finalista do Prêmio Jabuti (2015). O que o senhor pensa sobre premiações literárias?
Se eu fosse contar todas as vezes em que “quase” recebi um prêmio literário, daria outra entrevista. Mas me consolo com Fernando Pessoa, que “quase” foi premiado com Mensagem: e ninguém se lembra de quem foi o vencedor… Li um livro de Josué de Castro na minha adolescência, chamado Geopolítica da fome, e desde aí descobri que todo o tipo de fome tem uma “geopolítica”. Também a fome de premiação literária tem geopolítica…
• Em quais traduções o senhor está trabalhando agora? Qual sua motivação?
Em que traduções trabalho? Como disse, traduzir não é um trabalho, mas um prazer. Acabei de traduzir Guido Cavalcanti, e agora estou com outros dois poetas do “duecento” em fase final: o siciliano Giacomo, ou Jacopo Lentini, tido como inventor do soneto, e Guido Guinizzelli, que Dante apontou como pai do “stil nuovo”. Penso que seria muito bom para a poesia, e para a cultura literária brasileira, publicar esses três juntos, até para entender melhor a poesia de Petrarca.
• Quais são suas leituras no momento e quais te marcaram mais no passado? Quais são escritores ou obras preferidas, brasileiros e estrangeiros?
Sobre minhas leituras marcantes, na ficção narrativa, aponto três: Machado de Assis, Clarice Lispector e Mario Vargas Llosa. O primeiro me ensinou a ver nas frestas da sociedade, a Clarice a ver nas frestas das personagens, e Vargas Llosa me ensinou que a mesma história pode ter mais de um ponto de vista, e que é importante mostrar isso. Dos contemporâneos, aprecio muito a obra de Rubem Fonseca. Levou a ficção brasileira para o labirinto da grande metrópole.
• O senhor chegou a trabalhar em um projeto de romance que abordaria uma personagem do meio político. Por que o livro não foi adiante?
Sim, tive a ideia de escrever um romance sobre política no Brasil. Mas com o Mensalão e depois a Lava Jato me dei conta de que a ficção não conseguiria ir tão longe em inventividade. Fui vencido pela concorrência do mundo real! Mas o eixo da minha visão do mundo político brasileiro talvez me leve a retomar o projeto. Ele se baseia numa observação do antropólogo Roberto DaMatta: dizer que o político no Brasil é corrupto é dizer meia verdade; a verdade completa é que o político no Brasil é corrupto porque o povo é corrupto. Enquanto isso não for percebido, a corrupção, iniciada com a administração de Tomé de Souza, não vai ter fim. Machado de Assis já abordou esse tema no poema herói-cômico O Almada.
• O senhor atuou no meio acadêmico por muitos anos. As relações de poder em uma universidade chegaram a ser cogitadas como tema de alguma obra de ficção?
Tenho sim um projeto de romance sobre o meio universitário. Tem o título provisório de A mesa diretora. Mas ainda está na prancheta…
• O senhor tem lido novos autores brasileiros e estrangeiros? Se sim, o que pode destacar, de positivo ou negativo. O que acha do cenário literário atual?
A lista de autores que ando lendo é muito grande, vai do Japão à Turquia e à Espanha. Como ensinou Milan Kundera, há coisas que só o romance consegue dizer. Já a poesia contemporânea não me atrai, virou fotografia selfie, ao invés de abrir janelas para o mundo.
• O Brasil é um país continental com diferenças culturais e, consequentemente, com múltiplos sistemas literários. É comum que autores do Rio Grande do Sul sejam rotulados pelo gentílico. O senhor acredita que existe uma barreira aos autores fora do eixo Rio-São Paulo?
Uma coisa é produzir literatura e outra coisa é entrar no mercado. Nunca fui muito competente para entender as regras do mercado. É verdade que existe uma distância entre centro e periferia: Guilhermino Cesar já dizia isso em suas aulas. Em compensação, dizia ele, é na periferia que surgem as novidades.
Toda minha obra de ficção poderia ser resumida numa frase: a luta do indivíduo com as instituições. Que instituições? Todas, e a chamada moralidade pública é uma delas, talvez a mais tirana de todas.
• Se pudesse encontrar qualquer escritor — vivo ou morto —, qual seria e o que perguntaria?
Se eu encontrasse Machado de Assis, faria esta pergunta: a internet vai acabar com o livro? Mas acho que já sei a resposta que ele daria. Seria a mesma que deu para outra pergunta de sua época: o jornal vai acabar com o livro? A resposta que ele deu foi esta: pode o jornal não acabar com o livro, mas vai obrigar a mudar o modo de escrever. E mudou de fato. Como a fotografia mudou, como o telégrafo mudou, como o cinema e depois o rádio mudaram. Como certamente a internet está mudando a escrita, ainda não sei bem em que direção.