Em 1878, aos 28 anos, Robert Louis Stevenson empreendeu durante doze dias uma fascinante viagem pelas Cevenas, cadeia montanhosa situada ao sul da França. Era começo do inverno e a região começava a ficar gelada e inóspita.
A jornada parece ocupar lugar decisivo em sua vida e foi feita alguns anos antes de o autor escocês publicar as obras clássicas da literatura fantástica e de aventura que o consagraram: O estranho caso de Dr. Jekyll e Sr. Hyde (1886) e A ilha do tesouro (1883).
As impressões da viagem estão registradas em um diário publicado em 1879 e que chega ao Brasil em edição especial da Carambaia. Stevenson viajou acompanhado de uma burrinha comprada por 65 francos e um copo de conhaque, a quem deu o nome de Modestine.
Eu precisava era de algo barato e pequeno e robusto, de temperamento impassível e sereno. E todos esses requisitos apontavam para um burrinho. (…)
Havia na malandra algo de gracioso e nobre, uma elegância puritana, que atiçou o meu gosto de imediato.
O ritmo da travessia é ditado pelo humor da burrinha, que às vezes empaca e outras decide sozinha a direção a seguir, dona de uma teimosia implacável:
Um pouco depois do vilarejo, Modestine, tomada pelo demônio, voltou o coração para um desvio e recusou-se positivamente a sair de lá. Deitei ao chão todos os embrulhos e, envergonha-me dizer, bati duas vezes na cara da pobre pecadora. Dava pena vê-la levantar a cabeça e fechar os olhos, como se esperasse um novo golpe.
Carregando quase cem quilos de bagagem — e, entre os apetrechos, um saco de dormir que desperta a curiosidade dos habitantes da região — a burrinha faz o autor abandonar sua índole pacifista e o leva a padecer de uma permanente crise de consciência por conta daquele “labor ignóbil” (O som dos meus próprios golpes me enojava) e por conta também da resignação ilimitada do animal diante do sofrimento que lhe é imposto.
No momento seguinte, já estava espetando Modestine para que seguíssemos adiante, guiando-a como um barco desgovernado em mar aberto. No caminho, ela avançou obstinada por si só, de vento em popa, mas bastava chegar à relva ou às urzes e a bruta perdia a cabeça. A tendência que os viajantes têm de andar em círculos tinha se desenvolvido nela a um nível de paixão, e precisei usar toda a força para mantê-la em linha reta através de um único campo.
O relato é escrito com ironia sutil e com apurado senso de observação, esquadrinhando os hábitos e crenças dos camponeses com que o viajante vai se deparando durante a travessia.
Mas as pessoas da estalagem, em nove a cada dez casos, mostram-se amigáveis e atenciosas. Assim que você cruza a porta, deixa de ser um estranho; e, embora esses camponeses sejam rudes e ameaçadores na estrada, mostram traços de boa criação quando você partilha da lareira deles.
Dormindo ao ar livre, em albergues e até mesmo em um mosteiro trapista, Stevenson vai tomando contato com vilarejos históricos esquecidos pelo tempo e que foram palco da revolta protestante dos camisards, que eclodiu em 1702 e deixou milhares de mortos.
À medida que a narrativa avança, fica evidente a simpatia de Stevenson pelos vilarejos protestantes. O ambiente católico dos vilarejos visitados no começo da jornada, quase sempre triste e sombrio, vai sendo aos poucos substituído por um cenário luminoso. Nascido em uma família calvinista, Stevenson vê com bons olhos a resistência dos cevenenses. Veja-se, por exemplo, a caracterização que faz da religiosidade dos camponeses:
Você pode cavalgar em trote duro sobre uma religião por um século e o atrito apenas a deixa mais viva. A Irlanda ainda é católica; as Cevenas ainda são protestantes. Não é um punhado de documentos legais nem os cascos e as coronhas de um regimento montado que podem mudar uma vírgula dos pensamentos de um lavrador. A gente rústica e trabalhadora não tem muitas ideias, mas as que tem são plantas robustas, prosperam e florescem na perseguição.
Mas a obra não se reveste apenas de valor histórico e sociológico. O livro é pontuado de belíssimas descrições da paisagem natural (Um vapor lânguido e levemente prateado fazia as vezes da Via Láctea) e por caracterizações curiosas dos personagens (um dos monges entrou, um sujeitinho marrom, tão vivaz quanto um grilo). Trata-se de um relato de viagem escrito sob a forma de breves ensaios, com grande densidade literária.
O escritor e jornalista francês Gilles Lapouge (que assina o posfácio) considera que a burrinha ocupa lugar central na narrativa:
Este livro é o relato nostálgico, divertido e arrependido de uma paixão desfeita. Ele relata, simultaneamente, duas viagens: o périplo pelas Cevenas propriamente dito e, enovelado no interior desse percurso, mais secreto, invisível, discreto, como que redobrado nos meandros da primeira narrativa, um percurso sentimental para contar que as geografias do amor são tão rudes quanto os caminhos escarpados das montanhas cevenenses.
Já o crítico literário Alcir Pécora, em artigo recente, considera que o papel da burrinha foi superestimado pelo francês: o que ocuparia lugar central no livro é a questão religiosa. Segundo sua análise, Stevenson teria escrito o relato entre outros motivos para defender a diversidade de crenças e a tolerância religiosa e no centro da narrativa estaria, demarcada geograficamente, a passagem de uma região católica para a região protestante onde, dois séculos antes, teve lugar a revolta dos camisards, camponeses calvinistas que se insurgiram contra Luís XIV devido à revogação do Edito de Nantes, que lhes garantia a liberdade de culto desde 1598. O ato do monarca ordenava a destruição de igrejas huguenotes e o fechamento de escolas protestantes na França, obrigando os refratários à conversão forçada ao catolicismo e sujeitando-os a uma perseguição que durou mais de vinte anos.
Essa sem dúvida é uma interessante moldura do livro, sobretudo a maneira como Stevenson caracteriza o sectarismo presente entre alguns católicos e párocos de aldeia que encontra pelo percurso, mas esta é apenas uma das facetas da obra. Parece evidente o papel de destaque conferido à burrinha, apesar do tom de distanciamento que vemos no início:
Disseram-me, quando comecei, e eu estava pronto para crer, que em poucos dias viria a amar Modestine como se ela fosse um cão. Passaram-se três dias, tivemos algumas desventuras juntos e o meu coração ainda estava frio como uma pedra com relação à minha besta de carga. Era até agradável ao olhar, mas também tinha dado provas de uma estupidez fatal, redimida deveras pela paciência, mas agravada por lampejos de leviandade triste e equivocada.
Conforme avança a narrativa, há uma fusão entre os dois (Modestine e eu subimos pelo curso do Rio Allier), como se se tratasse de duas sombras que caminham juntas. Desse modo, de forma sutil, uma espécie de afeição mútua surge entre eles, demonstrada de forma lapidar quando da despedida da burrinha ao final da travessia.
Uma palavra sobre o projeto gráfico do livro, que inclui um mapa do trajeto e procura reproduzir na disposição do texto a sinuosidade da cadeia montanhosa francesa, assinalando para o leitor a chegada aos vilarejos. A capa simula a pelagem de um burro, as letras aplicadas como se fossem marcas de ferro sobre o couro do animal. Esse projeto aproxima os leitores da experiência narrada e recria o universo visual do percurso: o leitor percorre as páginas do livro como se estivesse a atravessar trilhas, desvios, subidas, descidas, estreitos e planícies.
Assim, como que no lombo de um burro, tomamos contato com uma obra que exalta a simplicidade, o contato com a natureza e o isolamento em relação aos tentáculos da então nascente civilização industrial e que em muitos aspectos se equipara a Walden ou A vida nos bosques, clássico escrito por Henry David Thoreau.
Misto de aventura e peregrinação, a jornada de Stevenson celebra a lentidão, o acaso e o abandono do que é supérfluo, em perfeito contraste com o turismo frenético, burocrático e consumista dos dias atuais.
Resta dizer que a popularidade do livro fez surgir na França uma associação que desde 1978 se empenha em preservar um caminho que refaz os passos do autor e por meio do qual caminhantes de todas as partes redescobrem o prazer da caminhada pela caminhada, em meio a uma paisagem ainda muito semelhante à que Stevenson percorreu com sua pobre e obstinada burrinha.