A volta do incendiário

Para comemorar o centenário de Campos de Carvalho, a novela "A lua vem da Ásia" ganha edição de luxo
Ilustração: Fábio Abreu
31/12/2016

1.
2016 é o ano do centenário do escritor Campos de Carvalho, nascido a 1º de novembro de 1916 e morto a 10 de abril de 1998. Seu livro mais emblemático, A lua vem da Ásia (1956), também faz aniversário, completando sessenta anos. São dois bons motivos para reverenciar sua memória, via de regra obscurecida. A Autêntica, atenta às datas, recoloca nas livrarias A lua vem da Ásia, agora em sua sétima edição brasileira. Ao que parece, fará também a publicação futura dos outros títulos do autor e de um volume especial com textos dispersos, alguns inéditos, fortuna crítica e coletânea de entrevistas. Caso se confirme, será um esforço a se louvar.

Entre 1956 e 1964, Campos de Carvalho publicou quatro títulos sui generisA lua vem da Ásia (1956), Vaca de nariz sutil (1961), A chuva imóvel (1963) e O púcaro búlgaro (1964) —, que, apesar do vozerio, ou também por causa dele, movimentaram a literatura brasileira de então. Com espírito de enfant terrible e uma militância de ideias algo incendiária, mas longe de ser gratuita ou ingênua, o escritor mobilizou um fiel público de admiradores. Todavia, sua permanência no cenário da literatura não foi duradoura. Tão logo publicou O púcaro búlgaro, novela humorística sem concorrentes em nossas letras, abandonou a literatura e se recolheu a um inexplicável silêncio. Como disse Borges a respeito dos vinte e cinco anos de silêncio do poeta argentino Enrique Banchs, “caso estranho e mais admirável: o daquele homem que, de posse ilimitada de mestria, desdenha seu exercício e prefere a inação, o silêncio”. Voltou a ser objeto de alguma atenção somente em 1995, com a publicação de uma Obra reunida. Tinha quase oitenta anos, a saúde comprometida, mas pôde ainda escolher o que seria publicado. Permitiu somente os quatro títulos prediletos e aqui citados.

2.
Novela ou romance (o autor preferia a primeira designação), A lua vem da Ásia é obra alheia aos padrões que vigoravam contemporaneamente ao seu aparecimento. Era “um livro estranho” e os jornais não tiveram reservas em rotulá-lo “o livro louco”. Alguma crítica de jornal falou em “obra de filiação surrealista”. Outras, da pena dos mais otimistas, elegeram-na pioneira de uma renovação da prosa brasileira. Homero Silveira, crítico do Para Todos, escreveu em junho de 1957: “Nesta água morna que é a literatura brasileira, uma das mais medrosas do mundo, em que quase nada se escreve que possa produzir escândalo, por inata deficiência da grande maioria de nossos escritores, todos bons rapazes e excelentes funcionários públicos, tem o ar de um impacto gelado o livro de Campos de Carvalho”.

Provida de soluções inusitadas, amparada no nonsense e no humor desabrido e delirante, A lua vem da Ásia é o solilóquio de um personagem que se encontra em um estranho hotel — “Eu poderia, bem sei, perguntar ao criado ou à criada que me servem todos os dias, ou mesmo ao próprio gerente do hotel, ou ainda à sua jovem esposa tão louçã e já tão vesga, o tempo exato em que aqui me encontro e o mês e o ano em que porventura estamos vivendo nesta fria noite de chuva”. Daí procede a matéria com a qual o protagonista provê o diário que enforma a narrativa. O tal hotel é um claustro burlesco, os funcionários se assemelham a sentinelas risíveis, o maître ministra sopas e banhos aos hóspedes, o gerente é um aficionado por disciplina e horários, a esposa aplica furibundas injeções de um “soro da juventude” aos que encontra pela frente. Para “evitar ladrões”, grades cercam o edifício. Ao diário, o narrador passa tudo o que lhe dá na veneta. “Aos dezesseis anos matei meu professor de Lógica. Invocando a legítima defesa — e qual defesa seria mais legítima? — logrei ser absolvido por 5 votos contra 2, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris”, anota logo de saída, num fragmento muitíssimo conhecido, até por quem nunca leu Campos de Carvalho.

A certa altura, o narrador informa que não há hotel algum e sim um “campo de concentração”. Claro, o leitor já intuiu que é um hospício e que está às voltas com as estrepolias de um alienado. Não precisará de muitas páginas para concluir que esse truão, apesar de louco, é muito mais lúcido do que todos os que se julgam sóbrios e assim são reconhecidos.

A ideia de que haja mais loucos fora do hospício do que dentro é um motivo bastante conhecido da literatura. Campos de Carvalho soube recompô-la competentemente. Daí que o livro supere sem muitos acidentes o risco da reelaboração de um motivo consagrado, o que se dá, em boa medida, pelas soluções de linguagem que o autor garimpou. Em boa medida, o conflito que nutre a novela se ancora mais no campo verbal que na invenção, embora esta pareça sobressair àquele. Foi a escolha retórica de deixar falar o desarrazoado que acabou tendo um peso decisivo para o bom andamento do texto e isto faz de A lua vem da Ásia uma aventura mais nos domínios da linguagem que nos labirintos da loucura. A propósito, todos os livros do escritor, humorísticos ou não, ofertam essa primeira pessoa transbordante e desparafusada dando curso às narrativas.

Mas não significa dizer que a invenção não seja também um recurso poderoso do livro. Trato aqui da invenção (inventio) não apenas no sentido de hábil manejo da imaginação, mas principalmente como evocação da memória; daquela memória que plasma a grande tradição. E, sob essa visada, não há dúvida de que o permanente diálogo com os arquivos da alta tradição seja um dos traços mais notáveis na obra do escritor. Em irretocável ensaio, a professora Vilma Arêas não perdeu de vista esse detalhe e escreveu:

De modo distraído seus pesadelos podem ser lidos talvez como puro nonsense, desde a confissão de que assassinara seu professor de Lógica, na primeira linha de A lua vem da Ásia. Mas em breve nos damos conta de que a distorção das imagens e a fantasia desatada estão presas a um universo múltiplo de referências históricas, literárias e filosóficas.

O herói de A lua vem da Ásia reafirma plenamente o pressuposto. Em muitas cenas que protagoniza estão decalcadas passagens do Maldoror de Lautréamont, inspirações da mitologia clássica e dos filósofos antigos, cenas “de Jacques Callot, com seus supliciados, seus santos, seus enforcados, seus ladrões, seus mascarados de feira”, como também afirmou Vilma Arêas. Andarilho que é, sua tipologia vem de Rabelais, Cervantes, Voltaire (e também do nosso Mário de Andrade), para citar, de forma muito imediata, a genealogia daqueles heróis que viveram em constante deslocamento pela vida, em ato ou imaginação, e em permanente confronto com a ordem, inclusive a geográfica e a cronológica. De Paris a Cochabamba, de Varsóvia ao Marrocos, da Etiópia à Alemanha, em todos os lugares ele se encontra e, em todos eles, será um estrangeiro em desacordo com o meio e com a realidade que o oprime, mas que ele desafia e desordena. Na Igreja de Santa Úrsula, por exemplo, acaba preso depois de um êxtase nudista. Na Bolívia será coveiro. Na Abissínia, governador de Harrar por doze meses. Em algum país da América Central participa de “duas revoluções num só dia”. Isso sem falar nas surpreendentes metamorfoses que dão azo a deliciosos momentos de transgressão — “ocorreu-me a aventura mais surpreendente que pode acontecer a um homem vivo ou morto, e que procurarei resumir em três linhas. Foi o caso que um dia despertei transformado em mulher e, nessa qualidade, fui pouco depois recrutado para o harém do sultão de Marrocos, onde servi como pude durante um ano e quatorze dias”. As metamorfoses, como sabemos, também são parte preciosa da tradição e Tirésias é um bom exemplo.

Traço excelente de sua personalidade virá do que chamarei de sua vontade imperativa; da ânsia de intervir na estrutura das coisas, sobretudo nas que são, por definição, inamovíveis. Isto permite identificar duas questões de fundo bastante importantes: 1ª) a utopia como elemento chave da obra; 2ª) o propósito de reelaboração do discurso utopista com base no anarquismo. Creio que se trate de elementos decisivos. Em Campos de Carvalho, é provável que o louvor do estado de espírito utópico supere todos os outros interesses e, ao dotar seus personagens com uma pronunciada vontade de desordenar, o escritor oferta, em essência, o anarquismo utopista como pilar de sua literatura. O púcaro búlgaro, seu último livro, é exemplo terminado desse propósito já fartamente presente em A lua vem da Ásia. A meu ver, isto chancela a convicção anarquista do escritor.

Muitos já disseram que Campos de Carvalho é um “escritor anarquista”. O epíteto é procedente, embora quase sempre venha como índice apenas adjetival. O significado, em si, da nomeação parece nunca sair da superfície. As consequências dessa identidade são muitas vezes deixadas de lado, quem sabe se pela intenção de lê-lo fora da perspectiva historicizante e política. De minha parte, creio que as leituras que o despolitizam (que despolitizam a voz do anarquista em sua obra) não trazem vantagem alguma. Alguém poderia dizer que o próprio escritor se dizia contrário à arte militante. Eu responderia que isto são outros quinhentos e que a potência de negação que dimana de livros como A lua vem da Ásia é um fato e não é algo que venha ao sabor da casualidade. Há uma inclinação a conduzi-la; e isto é suficiente para pôr em dúvida estereótipos como o do “escritor que escreve sem pensar” (porque é surrealista) quanto a costumeira recusa em admitir que sua obra atenda a condicionantes.

A distração e a graça, por elas mesmas, não são o cerne de A lua vem da Ásia nem de O púcaro búlgaro, obras em que mais se fazem presentes. Pelo riso delirante, o que o autor almeja é anarquizar o que está dado pela realidade, desejando nulificar toda ordem existente. Penso aqui em Karl Mannheim e suas considerações sobre a utopia nos anarquistas. Não obstante as reservas, admitia que os anarquistas tinham assimilado muito melhor a essência do estado de espírito utópico, cuja práxis está na revolta contra toda ordem existente.

O que Campos de Carvalho pretendeu, com urgência angustiante e totalmente sem reservas, foi expor essa revolta. Ao escancarar a hipocrisia reinante na família, a trapaça das religiões, as fraudes das instituições, a pândega dos de cima, elegeu alvo muito bem demarcado. Conseguiu resultados surpreendentes, ainda que deslizando pelo terreno perigoso de uma necessidade incoercível de falar (talvez, e em certos momentos, isto o faça prisioneiro de alguma falta de medida). Impossível não lembrar, por exemplo, a passagem de A lua vem da Ásia em que o narrador-personagem se encontra em uma festa de bacanas:

eu não me contive e bradei com todas as forças dos meus pulmões algumas duras verdades que, mais cedo ou mais tarde, teria mesmo que lançar no rosto de toda aquela gente reunida em torno de mim (…) Algo assim neste estilo, se não me falha a memória: “Nem parece que todos vós tendes intestinos e, na ponta desses intestinos, um lamentável cu, exatamente igual ao que têm vosso açougueiro, vosso chofer, vosso camareiro, vossos cachorros e vossos cavalos de raça. Vosso cu é a melhor arma que tendes para afugentar os maus pensamentos, que são aqueles que vos afastam da simplicidade humana”.

Mas é possível que o artifício da tagarelice indique exatamente um oposto, que é o estar proibido de dizer (sem que, todavia, se esteja proibido de pensar). Esta é a base que sustenta o jogo retórico proveniente do binômio opressão versus revolta em A lua vem da Ásia, e que coincide com o que Camus propõe sua concepção a respeito da injunção de causas que produzem o espírito de combate no “homem revoltado” — inclusive referindo-se à possibilidade da morte voluntária como solução, tamanho é o desacerto com a ordem que impera. Não é à toa que o herói da novela de A lua vem da Ásia opta pelo suicídio como saída consciente.

3.
Os críticos que escreveram sobre A lua vem da Ásia fizeram-no a partir de 1957. Analistas de primeira hora como Antonio Olinto, Homero Silveira, Roberto Simões, nomes hoje desaparecidos na voragem do tempo, saíram logo em defesa da novidade, afirmando que o autor estava apto a figurar na primeira linha dos novos ficcionistas locais. Mas o entusiasmo e os elogios não eram unânimes. Vozes contrárias, como as de Wilson Martins e Adonias Filho, por exemplo, reverberavam em altíssono, tanto quanto os achaques de moralismo disfarçados de crítica literária e conduzidos por nomes como Assis Brasil. Junte-se a isto a persistência dos remoques (a “fama de louco” do escritor), própria de um jornalismo cultural que vicejava mais a vida literária que propriamente a literatura. Daí, certamente, a convicção de que o autor tenha sido vítima de perseguições, tese da qual Jorge Amado, grande entusiasta de sua obra, foi signatário senão artífice.

A “crítica canônica”, por assim dizer, que podia fazer a diferença por meio de prospecção responsável, nunca quis ocupar-se de Campos de Carvalho; nem contemporaneamente ao aparecimento de seus livros, nem alhures. Dentre os nomes consagrados, o único a tomá-lo como objeto de alguma reflexão foi Sérgio Milliet, que publicou na primeira edição do suplemento literário Tribuna dos Livros (da Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda) um artigo sobre A lua vem da Ásia em fevereiro de 1957. Quanto a isto, há um episódio que vale contar. Em edição anterior àquela que trouxe a crítica de Milliet, os leitores da Tribuna foram informados da novidade vindoura de um suplemento literário. No informe, vinham depoimentos de editores, críticos, livreiros e escritores, todos, claro, elogiosos. Ao final, como corolário dos rapapés, um veredicto de Milliet: “Por fim, opina Sérgio Milliet, escritor e diretor da Biblioteca Municipal de São Paulo: —‘É uma novidade boa: para o leitor, para o editor e, ainda, para o escritor’. E já anuncia também: vai colaborar no suplemento. O artigo inicial será sobre livro escrito por um louco (Campos de Carvalho)”.

A julgar pela antecipação, o suplemento seria bom para todos, menos para Campos de Carvalho. Duas semanas depois, o artigo de Milliet sobre A lua vem da Ásia confirmaria o mau presságio.

Mas a obra de Campos de Carvalho, aos trancos e barrancos, sobreviveu. Alternando períodos de ostracismo e de maior ou menor interesse, chega aos nossos dias com o poderoso gesto que dela dimana: ter ousado ser diferente num momento em que ser diferente era tão mais difícil. Poderia também dizer que nessa diferença reside o compromisso ético-estético de uma literatura profundamente questionadora e profundamente humanista, o que não é pouco. Quem a ler com atenção saberá encontrar seus melhores predicados.

A lua vem da Ásia
Campos de Carvalho
Autêntica
174 págs.
Noel Arantes

É doutor em literatura e professor universitário.

Rascunho