Com 32 anos de diferença entre as publicações, tanto o conto O papel de parede amarelo, da americana Charlotte Perkins Gilman, como o livro Ifigênia, da venezuelana Teresa de la Parra, dão voz a personagens femininas que vivem um forte desacordo entre o que pensam e a maneira com que precisam viver. Os dois livros apresentam também alguns paralelos com as histórias das escritoras, paralelos que mostram que a opressão feminina não estava apenas na ficção.
Mesmo que em situações diferentes — a protagonista de la Parra começa a notar as contradições e forma seu pensamento entre elas, enquanto a personagem de Gilman já é uma adulta que sofre psicologicamente o dano acumulado durante sua vida — as duas mostram a maneira com que as mulheres viviam e os sacrifícios que fizeram por uma sociedade que sequer as ouvia.
O papel de parede amarelo
O conto, escrito por Charlotte Perkins Gilman no final do século 19, demorou para ser aceito: vários editores diziam que o conto era muito triste ou que carecia de valores morais. Depois de várias tentativas, foi publicado em 1892 na New England Magazine, mas começou a ficar mais conhecido depois que foi selecionado para antologias e outros livros.
O papel de parede amarelo é a história de uma mulher, contada por ela mesma em uma espécie de diário. Ela vive uma fadiga nervosa, uma doença dos nervos nunca especificada na narrativa. Seu marido médico resolve levá-la para repousar em uma casa de campo, onde ela fica isolada de seu círculo social e da sua vida normal. Ali, deve repousar e esvaziar sua mente completamente para se curar da sua situação.
Mas, apesar desse diagnóstico do marido, ela parece desejar justamente o contrário — anseia por uma ocupação, por um algo onde possa depositar suas energias e pensamentos. Aliás, a própria casa e o quarto a deixam desconfortável, e ela preferia estar em outro lugar. O marido, porém, insiste — esse é o melhor (ou único) tratamento para ela que, submissa, aceita.
O tratamento patriarcal que ela recebe chega até a piorar a situação, já que ela se sente culpada por não melhorar. Encerrada em seu quarto, encontra dois meios de escape para seus sentimentos: a escrita furtiva e clandestina em uma espécie de diário e a decifração do padrão do estranho papel amarelo que cobre as paredes de seu quarto, onde acaba por depositar toda sua atenção e energia.
Seus sentimentos mais íntimos começam a ficar cada vez mais presentes enquanto ela encontra nos desenhos abstratos sua leitura de mundo. Todos os sentimentos com os quais ela não sabia lidar — nem mesmo nomear — começam a ficar evidentes conforme ela lê o papel de parede e começa a interagir com ele.
O texto é curto mas muito forte para narrar o colapso mental de uma mulher que não é compreendida pelo seu tempo. A escrita de Gilman segue um tom crescente, entrando cada vez mais na loucura da personagem — se no começo ela está fragilizada e confusa, no final está completamente entregue à contemplação do papel.
“A postura da narradora é tudo, e de fato é muito complexa, uma vez que, em última análise, ela é louca; e, no entanto, ao longo de seu declínio para a loucura, mostra-se em muitos aspectos mais sensível do que aqueles que a cercam e a tolhem”, diz Elaine R. Hedges no posfácio incluído na edição da José Olympio.
Ifigênia
Na mitologia grega, Ifigênia é filha de Agamemnon e Clitemnestra. A menina foi sacrificada para que os soldados gregos pudessem prosseguir para a guerra de Tróia. A evocação feita já no título do livro de Teresa de la Parra, publicado pela primeira vez em 1924, aponta uma das principais questões do livro: mostrar como a vida de várias meninas era adaptada para se encaixar em uma sociedade patriarcal.
O livro é narrado por Maria Eugênia — que nasceu na Venezuela, mas se muda, ainda criança e órfã de mãe, com seu pai para Paris. Ela estuda durante muitos anos em um colégio de freiras, onde é poupada “do mundo”, até que seu pai morre e a família decide que ela deve voltar para Caracas.
Entre a morte do seu pai e data da viagem de volta, Maria Eugênia passa alguns meses em Paris, conhecendo a cidade que antes não era aberta para ela. Nesse momento, se apaixona pela moda e pela maquiagem, além de desenvolver uma certa liberdade de pensamento e de ir e vir.
Quando finalmente volta e reencontra membros da sua família, descobre que as fazendas de seu pai não foram deixadas para ela, e sim tomadas por um de seus tios. Assim, é deixada sem nenhuma herança, casa ou bem que possa lhe garantir sustento para os próximos anos. Além disso, descobre que morar com a avó será uma barreira a sua recém-formada independência — ela não pode nem andar sozinha nas ruas. A única “saída” para sua situação é o casamento.
Inicialmente, a jovem tenta se impor a isso: opina fortemente sobre a situação e aponta as situações com as quais não concorda. Usa também roupas, maquiagens e cortes de cabelo ousados para o período e que muitas vezes chocam as outras pessoas. Porém, com o tempo e depois de passar por algumas decepções, começa a se acostumar com seu estado de vida, ficando mais apática e descrente.
Construído por meio de narrativas pessoais — uma longa carta e passagens de um diário — o leitor acompanha a vida de Maria Eugênia de acordo com seus pontos de vista e seus sentimentos. A opressão fica clara — a jovem não deve se manifestar, não deve ter gostos e opiniões; deve apenas se tornar uma boa esposa.
Ifigênia é sobretudo uma história de amadurecimento. Acompanhamos a formação de ideias e opiniões de uma jovem que precisa conciliar suas vontades com o que a sociedade espera e aceita dela, em um momento em que esses aspectos não poderiam estar mais distantes.
O livro é também uma crônica da mudança do tempo — o anacronismo de certas estruturas e instituições começa a ficar mais e mais evidente conforme o século 20 avança. Os comportamentos mudam, mas os pioneiros sofrem para se encaixar em uma sociedade que ainda não está pronta para eles.
Vozes clandestinas
Uma característica muito interessante une os dois livros — as vozes femininas só encontraram seu espaço em textos clandestinos. Os diários e cartas escritos furtivamente servem como um desabafo, como um espaço de liberdade em um meio opressor que se nega a ouvir as vozes das mulheres.
Inicialmente, Maria Eugênia até tenta encontrar consolo com sua amiga Cristina e escreve uma longa carta narrando os acontecimentos frustrantes da sua nova vida e seus sentimentos em relação a eles. Mas se frustra até com isso: a resposta é muito aquém de sua expectativa e demonstra pouca empatia ou compaixão com seu estado. O diário é então a maneira que usa para encontrar sua voz em um meio que lhe parece hostil.
Já a protagonista não nomeada de O papel de parede amarelo encontra nos papéis uma maneira de dizer tudo aquilo que o marido não quer ouvir — a sua discordância com o tratamento, sua vontade de ver pessoas e fazer coisas, a maneira com que começa a depositar sua energia no papel de parede.
Com exceção da carta presente no início de Ifigênia, os textos dos dois livros são privados como gênero e não assumem a existência de nenhum leitor. E são nesses espaços secretos, que não deveriam ser lidos por ninguém, que essas duas mulheres, em suas situações distintas, conseguem dizer tudo aquilo que não conseguem assumir ou dizer em voz alta. Elas só são capazes de ter uma voz quando acreditam que não serão ouvidas.
Nesse caso, a relação entre literatura e vida real não poderia ser maior. Em um mundo em que o movimento feminista começa a surgir, a busca por uma voz feminina na literatura reflete a mesma clandestinidade que o pensamento feminino tinha. E a missão é cumprida: tanto as autoras como suas protagonistas conseguem passar sua mensagem.