Inusitadas experiências

"Os passos em volta", de Herberto Helder, é composto por narrativas repletas de humanidade, de pensamentos sobre a existência
Herberto Helder, autor de “Os passos em volta”
10/11/2016

Há muito se discute sobre o conto e o poder de significação. Ernest Hemingway tornou-se conhecido, não só pela sua literatura, mas também pela ideia do iceberg. Nela, o escritor fala que na escrita dos contos se deveria “obter o máximo do mínimo, como podar linguagem, como multiplicar intensidades e como dizer só a verdade de uma forma que permitisse dizer mais do que a verdade”. E essa é a essencial característica do conto, a densidade que se constrói na narrativa, através de alegorias, símbolos, personagens e diálogos que vão além do que ali se encontra descrito.

Esta descrição da potencialidade do conto é uma boa forma de definir as narrativas que integram Os passos em volta, de Herberto Helder. A obra é uma boa oportunidade de leitores encontrarem uma literatura marcada tanto pela excelência quanto pela densidade de seus significados.

Helberto Helder nasceu em Funchal, em 1930, e faleceu em Cascais, em 2015. Era conhecido sobretudo pela poesia. Escreveu além de Os passos em volta, publicado pela primeira vez em 1963, outros dois romances.

A escrita poética permanece de certo modo na construção dos contos de Os passos em volta. São vinte e três contos que apontam temas diversos e diferentes formas de narrar e organizar as narrativas. Herberto Helder conta-nos em sua ficção, além de destinos de personagens aleatórios, sobre a vertigem da existência, as constantes dicotomias: vida e morte, memória e presença, descoberta e aprendizagem.

Somos apresentados a personagens que vivem em seus cotidianos ou nos contam sobre seu passado, sobre sua vida, as mais inusitadas experiências, repletas de sentidos únicos e ao mesmo tempo abrangentes em múltiplos aspectos. Loucura, medo, impotência frente aos destinos e a impossibilidade da mudança, arte, fazer poético, escolhas involuntárias por determinado caminho, amor e subserviência, amor e necessidade, são as explorações do humano oferecidas ao leitor.

O fazer literário aparece em determinados contos na figura do poeta, que experiencia e que procura retirar da vida os elementos para a construção do que pretende realizar. É o que acontece em Estilo, narrativa que inicia o livro e que fala justamente da procura do poeta pelo seu estilo, sua forma de escrever poesia, sua conversa com o mundo. Também em Poeta obscuro a natureza anímica do poeta é a substância do conto, que traz o cotidiano, a natureza dos dias, o pensar-se a si mesmo como elementos de organização ou ordenação do poeta em sua escrita. Vida e obra de um poeta é uma narrativa que fala da fantasia, da realidade e da permanência de um poeta, concretizada apenas com a sua morte.

Preencher a ausência
A morte e a necessidade da memória e da construção de um imaginário capaz de preencher a ausência da materialidade do corpo vão aparecer em alguns contos. Um exemplo é Equação, em que a iminente morte da avó, sobre a cama, resignadamente esperando o fim, e a presença de uma foto mostrando a juventude que lhe cobria a alma e os dias são o incômodo ao narrador que percebe por meio da imagem e da própria avó o significado de envelhecimento e morte.

O amor e as contrariedades do sentimento amoroso, a necessidade do outro, o afastamento e os fantasmas que habitam as relações entre as pessoas alinham-se em diversos contos. Duas pessoas, conto que relata a ambiguidade de uma relação entre um homem mais velho e uma prostituta jovem, alterna por meio de seus narradores a ambivalência de suas necessidades e a compaixão que ambos sentem um pelo outro. Constroem seu compartilhamento amoroso, sexual, sobre o medo da solidão e do esquecimento. Entram Hamlet e sua inegável melancolia e loucura (calculada) e Bach com suas sonoridades reflexivas.

Teorema conta a história recorrente no imaginário português de Inês de Castro e Dom Pedro. A morte trágica de Inês e o castigo a seus executores é no conto de Herberto Helder representada por Coelho, figura de Pêro Coelho, um dos três assassinos. O coração arrancado pelas costas do executor é devorado em praça pública, num banquete de vingança. A tétrica história é verídica segundo atestam os livros sobre o tema. Na releitura do autor, é um teorema, um processo lógico e circular: uma vez que o amor de Inês lhe fora tirado pela morte, sem piedade, por seus algozes, é o coração que lhe deve ser arrancado de seus peitos, pelas costas, para que a vingança se exerça da mesma forma.

A animalidade do homem é lembrada em Cães, marinheiros. A história de um cão e uma cadela que acabam por ter um marinheiro como animal de estimação. Assim como os homens discutem o destino de seus animais domésticos e a forma como devem viver e ou educados, o cão e a cadela discutem a relação do marinheiro com o mar e como ele irá sobreviver à ausência das marés.

Os passos em volta trata-se de um livro de percepções, mais que um livro de contos. Partindo da ideia da circularidade e retornando ao início desse texto, Herberto Helder compõe narrativas repletas de humanidade, de pensamentos sobre a existência, o refletir a existência. Autor significativo da literatura portuguesa, trazia em sua obra diversas leituras da experiência humana. Pretendia libertar a poesia de suas fronteiras comuns. A poética herbertiana é um universo de intensidades de palavras e significados. Suas narrativas não esgotam possibilidades alegóricas e metafóricas: viajantes em busca de novas ideias e lugares, amores vingados, imigrantes que encontram no amor a resolução para o medo, crianças que dão choques, animais que adotam humanos de estimação, outros animais exóticos, corações arrancados pelas costas, touradas e o sentido da vida e de um possível Deus, a efemeridade dos dias, das coisas, das pessoas. São histórias sobre o que de fato nos constrói e se ergue durante a circular vida que vivemos.

Os passos em volta
Herberto Helder
Tinta-da-China
176 págs.
Herberto Helder
Nasceu no Funchal, em 1930, e faleceu em 2015 em Cascais (Portugal). Foi colaborador de diversos periódicos e jornais. Também trabalhou como diretor literário da editora Estampa. Viajou por diversos países e foi correspondente da revista Notícias em África. Recusou o Prêmio Pessoa em 1994.
Gabriela Silva

Graduada em Letras, licenciatura plena em língua portuguesa, literaturas de língua portuguesa e Especialista em “Leitura: Teoria e Prática” pela Fapa; Especialista em Literatura Brasileira e Mestre em Teoria da Literatura pela PUC-RS. Doutora em Teoria da Literatura.

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