Há dois aspectos interessantes que podem ser lembrados a respeito da literatura (e também da arte de modo geral) em O princípio de ver histórias em todo lugar, de Leonardo Villa-Forte. O primeiro o indica uma das epígrafes do próprio livro: “[…] quando estamos sozinhos não podemos ter certeza de que, por exemplo, não enlouquecemos. Já em dois — é diferente”. (Witold Gombrowicz). O segundo é a respeito de A noite americana, de François Truffaut, filme que aborda o ato de fazer cinema, isto é, um metacinema. Nele, um dos atores apaixona-se pela atriz principal e, após os dois viverem um caso passageiro durante as filmagens, deseja abandonar o set porque não é correspondido. O diretor (o próprio Truffaut, aqui como ator), usa todos os argumentos para tentar convencê-lo de que aquela ação não vale a pena. Quando, diante da teimosia do rapaz, se vê vencido, usa como último argumento: “para nós, acima de qualquer coisa, está o cinema”. O romance de Villa-Forte transita entre esses dois polos, a via de Gombrowicz, escritor polonês que se refugiou do nazismo na Argentina, e do cineasta francês, que acabou por se tornar um grande mestre do cinema contemporâneo.
Villa-Forte inicia seu romance apresentando um personagem que se vê em extrema solidão. “Eu não queria que a viagem dela fosse boa. Tudo o que eu desejava, com as forças que me restavam, era que fosse uma viagem infeliz.” Trata-se da namorada do rapaz, que parte para a Alemanha para ficar por lá três meses a trabalho. Mas logo notamos que a causa da viagem vai um pouco além disso. Devido ao relacionamento desgastado, o que resta à mulher é querer partir, até mesmo sem se despedir. Ele, incapaz de suportar a solidão, tem uma brilhante ideia, inaugura uma oficina de escrita criativa.
A ideia não é má, e acaba por impor algumas questões. O que é uma oficina deste tipo? Qual o objetivo da pessoa que a dirige? Por que tantas oficinas no mundo de hoje? As reuniões transformam o livro num romance de personagens e de metaliteratura. O narrador, em primeira pessoa, traça o perfil e o comportamento de Luiz, Carina, Thomas, Roberto e Felipa. Leonardo Villa-Forte nos dá até mesmo o método utilizado na oficina, atribuindo ao narrador a invenção de autores que servirão de base teórica, logicamente autores inexistentes. Das reuniões, uma vez na semana a princípio na casa do “professor”, saem a trama, envolvendo a observação da personalidade de cada participante, os textos que cada um apresenta e até mesmo o lar dos personagens e seus familiares, quando resolvem levar a oficina em rodízio à casa de cada um deles.
Psicanálise às avessas
Algo interessante, que também pode ser levantado como questionamento, é que o professor começa a deduzir a vida de cada um dos participantes da oficina por meio do que eles escrevem. Análises precipitadas e plenas de equívocos, apresentando uma espécie de psicanálise às avessas. A narrativa é desenvolvida em trinta e quatro capítulos, fazendo parte deles os textos dos integrantes do grupo. São estes Ligações interrompidas, Diga seu nome e aguarde a sua vez, Circunferência e quadrado, Desonra contagiosa, No seu quarto, Querido, Raciocínio sobre o melhor lugar para se sentar e uma conclusão anexa, A partida e Monólogo a dois. Tal atitude confere maior verossimilhança ao romance. Dentre os textos, talvez os melhores sejam Diga seu nome e aguarde sua vez, por seus ares kafkianos; depois Desonra contagiosa, conto desagradável, que acaba por nos revelar a fraude do professor. Ele se deixa impressionar pela história e atribui à família do autor certa estranheza, desconfiando de que o enredo do conto aconteceu entre eles. Como afirma Carola Saavedra na apresentação do romance: “O protagonista é antes de tudo um leitor, talvez um mau leitor, que confunde autor e personagem, que julga sem conhecer a matéria, que não é capaz de sair de si mesmo e olhar para o outro”.
Ponto a mais a ser observado é a verdadeira profissão deste “professor”. Ele trabalha numa agência de publicidade, jamais tendo sido um autor ou professor. No final somos surpreendidos e descobrimos como surgiu a narrativa que ele nos apresenta.
O princípio de ver histórias… parte de uma ideia original, que é a de transformar uma oficina de literatura num romance, com todos os meandros percorridos por seus personagens, as intrigas surgidas entre eles e o desejo de um professor que não está nem aí para a literatura. Ele quer mesmo é escapar da solidão e superar uma situação de rejeição afetiva. Talvez um modo de não enlouquecer.
É interessante que, num universo onde se multiplicam tais oficinas, elas acabam por se tornar quase uma seita. Basta a habilidade de convencimento exercida por quem a ministra. E o que não falta são candidatos a escritores.
A história apresenta certa pungência, como um passeio do narrador pela zona sul carioca, uma ida ao teatro e sua tentativa de conquista a uma das integrantes da oficina. Talvez ação sedutora do autor foi a criação de uma espécie de véu que cobre a verdadeira vida de cada personagem, predominando apenas sugestões no lugar de destinos traçados.
O que se pode criticar no livro, talvez pelo caminho inverso, é que ao banalizar uma oficina de escrita criativa pode-se estar denunciando a futilidade de muitas delas, revelando que num país de poucos leitores ganha-se mais dinheiro ministrando-se oficinas do que vendendo livros. Mas a atitude também não deixa de ser útil. O talento é necessário ao bom autor, mas o maior de todos os mestres é a leitura, sobretudo ler literatura.
Outro ponto que a leitura deste livro revela é a falta de um grande romance na literatura brasileira contemporânea. Quando vemos livros como O mapa e o território, de Michel Houellebecq ou Au revoir lá haut, de Pierre Lemaitre, percebemos que não nos faltariam assuntos para criarmos obras de maior envergadura e de conteúdos que se relacionassem com a nossa cultura. Na existência de nosso país, o trágico manifesta-se da mesma forma como em qualquer parte do mundo, mas para captá-lo e transformá-lo em literatura não serão suficientes oficinas de criação literária. Mais uma vez, apontamos à leitura de literatura.
Voltando a Gombrowicz, a literatura pode ser uma maneira de não se estar só, de não enlouquecer. E isto, o narrador consegue. Da mesma forma, como em Truffau de A noite americana. Para nós, apesar de todas as fraudes, a literatura está acima de tudo. Que diga ainda o narrador, porque é ele quem acaba por se tornar o escritor.