Dois anos, oito meses e 28 noites tem sua origem nas lendas do Oriente, o título é uma referência ao clássico As mil e uma noites. Salman Rushdie une História, mitologia, aventura, o maravilhoso, o fantástico, além disso acrescenta uma quantidade significativa de sentimento — amor para ser mais exato. Junte a isso uma série de acontecimentos inusitados. Por exemplo, o jardineiro que percebe que ao andar seus pés não tocam o chão; um autor de histórias em quadrinhos se depara ao acordar com uma determinada criatura muito parecida com uma das suas personagens; um bebê abandonado na prefeitura identifica a corrupção com sua mera presença; uma mulher sensual é a esperança no combate a determinadas forças que se colocam muito além da imaginação. O cenário é Nova York, ou o que sobrou da metrópole após uma tempestade, tempo futuro, personagem principal: o estranhamento.
Mas, voltemos, partimos em direção ao começo de tudo. Século 12. O filósofo Ibn Rushd, que fora juiz de Sevilha, mais tarde em Córdoba, sua terra natal, foi médico pessoal do califa Abu Yusuf Yaqub, tinha ideias pouco convencionais, liberais, e por esse motivo caiu em desgraça. Seu castigo: isolamento na aldeia de Lucena, próxima a sua cidade de origem, porém repleta de judeus que deviam renegar isso visto que tinham se convertido, por meio da força, ao islã.
Ibn Rushd, mais um oprimido, sentiu-se entre os seus. Certo dia aparece a sua frente uma moça, aparentando dezesseis anos, Dúnia.
Ibn era um filósofo, racionalista, e jamais imaginaria que Dúnia fosse um ser sobrenatural, uma djínia, ou djim feminina. Em certos períodos era permitido que tais criaturas visitassem o mundo dos homens.
E Dúnia tornou-se a governanta da casa e amante do filósofo. Fascinada pelo amor, embora no mundo dos djins não exista tal sentimento, apaixonou-se por Ibn Rushd. Nos dois anos, oito meses e 28 noites ela engravidou três vezes e a cada parto jogou para o mundo no mínimo sete criaturas. Mas restam dúvidas, dúvidas cercam dois desses eventos, os rebentos teriam sido onze e, no outro parto, dezenove. Todos, porém, apresentavam uma particularidade: ausência dos lóbulos auriculares.
Ibn era extremamente introvertido, circunspecto demais para perceber que Dúnia tinha poucos traços, todos insuficientes para caracterizá-la como um ser humano. Ele preocupava-se com o que transmitiria aos filhos, temia que fossem feito ele, sensível, perspicaz e loquaz. Isso, costumava dizer implicava
emocionar-se demais, ver as coisas com excessiva clareza e falar com demasiada liberdade. É estar vulnerável ao mundo quando o mundo se julga invulnerável, entender sua mutabilidade quando ele se acredita imutável, perceber antes dos outros o que se aproxima, saber que a barbárie futura está demolindo as portas do presente enquanto os outros se apegam ao passado vazio e decadente. Se nossos filhos tiverem sorte, Dúnia, só herdarão suas orelhas, mas por infelicidade, como são inegavelmente meus, é provável que pensem em excesso cedo demais, e ouçam coisas em demasia antes da hora, inclusive coisas proibidas de serem pensadas ou ouvidas.
Poderes sobrenaturais
Passam-se dias, meses, anos, séculos. Oito séculos para ser preciso. O mundo está repleto de descendentes de Dúnia e Ibn Rushd. A ausência do lóbulo na orelha é o sinal identificador. Aparentemente de fácil identificação, o dito sinal foge ao conhecimento inclusive de seus portadores, assim como certos poderes sobrenaturais.
Salman Rushdie concebeu uma história magnífica, sim ele soube aproveitar muito bem a sua fonte, capaz de prender o leitor, permitir a catarse, conceder momentos vários de indispensável reflexão.
Breve pausa: falamos de dois mundos — o do filósofo e o dos djins, de onde vem Dúnia. Feita a lembrança, sigamos. Ou melhor, recuemos um pouco. As fronteiras entre esses dois mundos tornam a se abrir, a partir daí coisas estranhas têm seu início. Entre elas, o jardineiro cujos pés não tocam o chão, a cada dia se vê mais perto das nuvens; é nesse momento que o bebê identificador de corruptos é abandonado na prefeitura. Mas isso não é tudo. Chegam ao mundo dos homens quatro djins das trevas decididos a “botar fogo no circo”. Não amam tampouco odeiam os humanos, simplesmente os desprezam e vieram em busca de diversão tão somente.
Dois anos, oito meses e 28 noites é uma homenagem, ao mesmo tempo uma apropriação, ou se preferir, condescendente leitor, uma releitura futurística dos contos de As mil e uma noites. Quase fábula filosófica, narra o embate entre ciência e religião onde todos perdem e a intolerância esboça um esgar vencedor. Personagens em meio a catástrofes descobrem que nem mesmo a lei da gravidade é inquestionável, que a infância puríssima pode ser cruel com a corrupção concedendo-lhe pústulas, que aquilo que mata, raios, também pode iludir a morte e conceder a eternidade, que além do nosso mundo pode existir outro e a interação caótica será inevitável, ao mesmo tempo, desse universo tempestuoso, também pode brotar o amor eterno como o de Ibn Rushd e Dúnia.
Salman Rushdie concebeu uma história magnífica, sim ele soube aproveitar muito bem a sua fonte, capaz de prender o leitor, permitir a catarse, conceder momentos vários de indispensável reflexão. Uma delas se me permite, paciente leitor, diz respeito aos frutos do amor incondicional. O amor de Dúnia e Ibn frutificou de maneira esplendorosa, no entanto, os descendentes de tão nobre sentimento primaram pela bizarrice. E agora!
Mas tem outro aspecto que me parece extremamente interessante — é o fato de ler e lembrar de Gabriel García Márquez, por inúmeros motivos, mesmo assim num tom abaixo dos motivos que fazem lembrar de Milan Kundera. O olhar de Kundera sobre a República Tcheca e o de Rushdie sobre o oriente e a fé religiosa, as vidas comuns na ótica de Kundera tentando abandonar o mundo raso por onde são obrigadas a carregar suas mazelas e as vidas estranhas, bizarras de Dois anos, oito meses e 28 dias, em busca de um viés da suposta normalidade a lhes legitimar. Ironia, sátira, muita emoção, o amor e seus desvios. O livro de Rushdie desperta a vontade de reler e O livro do riso e do esquecimento e A insustentável leveza do ser.