23.11.1994
Ontem no palácio Presidencial, o presidente do Paraguai, Juan Carlos Wasmosy, reuniu uns 30 ou 40 escritores deste “Encuentro de Escritores Latino-americanos” para um jantar. Prédio com casas baixas sobre colunas — estilo colonial — tudo pintado de branco. Mesas postas no gramado. Todos sem gravata e paletó, como o presidente. Ele alegre, informal. Engenheiro dinâmico, deu de seu bolso 60 mil dos 100 mil dólares para o Encuentro.
Convidam-me para agradecer a recepção em nome dos escritores. Janto ao lado do poeta uruguaio Washington Benavides, de Tomás de Mattos — autor do best seller Barnabé, Barnabé — e do jovem poeta Rafael Courtoisie. (Faço o discurso oficial de agradecimento pelos escritores). Vitor Castelli chama um assessor do presidente e conversamos sobre planos para o desenvolvimento de uma política cultural com o Paraguai. Aproveito e falo com o presidente sobre o acervo relativo à Guerra do Paraguai que existe na Fundação Biblioteca Nacional e nestes dias estamos fazendo um seminário sobre aquela infausta guerra. (Foi lisonjeiro que tivessem me convidado para falar. Falei em português, por razões político-culturais e por respeito à língua alheia).
É uma sensação estranha, quase surrealista estar aqui neste palácio de onde Stroessner paralisava a história de seu país. Mais estranho ainda lembrar meu tempo de estudante metido em lutas contra ditadores, e agora ali, na toca do ex-lobo.
Nesses dias, sintomaticamente, ameaça de golpe aqui: três militares foram presos pelo presidente porque deitaram falação. Uns dizem que o golpe é inevitável. Outros que o panorama já não é tão simples. Esse é primeiro congresso de escritores realizado nesses quase quarenta anos desde que Strossner em 1954 tomou o poder.
O presidente fez um discurso emocionado agradecendo a minha fala e referindo-se à amizade com o Brasil, etc. Solicitaram-me que batalhasse por uma nova “Missão cultural brasileira”. Isto seria importante para nós que vivemos de olho na França e Estados Unidos, sem mirarmos nossos vizinhos. Se Fernando Henrique quisesse, poderíamos fazer grandes coisas. Acho que essa minha itinerância pelos países latino-americanos recentemente tem me ensinado algo, às vezes, me sinto meio um embaixador itinerante.
Me hospedei com Marina na casa do embaixador Alberto da Costa e Silva e sua esposa Verinha. Estivemos juntos várias vezes na Colômbia, onde ele foi também embaixador. A casa é ampla, parece um museu de esculturas africanas, lembrança do tempo em que passaram na Nigéria e no Benin. Só que a África entrou na vida dele avassaladoramente. Ouvimos dele histórias da África (que sumarizo aqui para não esquecer). Parecem aquelas narrativas de James Frazer em O ramo dourado:
– O cidadão que em Lagos lhe disse que naquele dia havia sido a pessoa que levou o “ovo” ao rei da tribo. (O “ovo” vazio, tirado seu conteúdo por um estilete, era passado ao chefe quando esse deveria se matar por estar velho demais);
– A estória do chefe que tinha muitas mulheres, mas uma delas devia estrangulá-lo quando ficasse impotente;
– O chefe da tribo que ia visitá-lo com as seis mulheres, que ficavam esperando o marido no carro;
– A arquitetura da casa do chefe da tribo dava para cada um dos quartos das sete mulheres a partir de sua sala;
– A mais velha do clã é que escolhia a esposa mais nova: e a mulher que disse à Verinha (esposa de Alberto): “Não sei como vocês ocidentais aguentam: um homem dá muito trabalho, tem que casar com várias mulheres”.
08.12.1994
Tomo o ônibus para Frankfurt. Estou conhecendo vários brasilianistas. Dietrich Briesemeister — e que foi o comentador de minha apresentação, do Ibero Amerikanischen Institute/Berlim; Karl Kohut — diretor do Lateinamerikastudien da Universidade de Eichstatt, que me apresentando leu pedaços de Que país é este? e referiu-se à Catedral de Colônia, dizendo que leu o livro e já o citou em estudos. Estava com o volume de A poesia possível ( Rocco).
Minha leitura foi boa. Misturei teoria-poesia-depoimento como jornalista e teórico-administrador cultural. Agradou. Passou uma energia para cima, empatia poética. Para finalizar li Epitáfio para o século 20. Gostaram.
Hoje à noite, saí para passear sozinho pela cidade. Heidelberg é um charme só, antiga, quartel general dos americanos durante a Segunda Guerra Mundial, foi onde Hannah Arendt estudou e onde viveu Karl Jaspers (entre tantos pensadores). Falaram-me do “caminho dos filósofos”[1] uma vereda que é necessário conhecer, por onde, fora dos muros da cidade, caminharam muitos filósofos.
Ontem à noite, com insônia, vejo na TV entrevista de Lévi-Strauss a uma jornalista. Assunto: o livro de fotos dos índios brasileiros feitas nos anos 30 pelo próprio Lévi-Strauss. Curioso ouvi-lo falar sobre um país que é o meu, mas numa realidade que não é minha. No final, com dois índios (que ele diz serem peruanos), lendo Tristes trópicos.
10.12.1994
Berlim. Sentado estou na sexta-feira, de manhã, à mesa do seminário quando Marco Aurélio diz tout court:
— Sabia que o Tom Jobim morreu? Em Nova York[2].
Fico chocado e isto repercute pelo resto do dia em mim. Continuam a morrer. Continuam a morrer os amigos. Neste mês foram dois da bossa-nova: Tom e Ronaldo Bôscoli. Uma geração alegre, carioquíssima. Tom, ataque cardíaco, Ronaldo, câncer. Do Ronaldo aquela piada que Miele[3], seu amigo, sempre conta: no hospital recebendo num braço sangue e no outro soro, pergunta ao amigo: “Tinto ou branco?”.
NOTAS
[1] Ver Com o pé na estrada (O Globo, 13/12/94) em que descrevo o “caminho dos filósofos” e o seminário.
[2] O conhecia desde Los Angeles 65/67 quando tentei fazer um concerto de música popular brasileira para estimular o estudo do português. Em LA havia vários músicos brasileiros.
[3] Fiz a apresentação do livro de Miele no qual ele conta algumas de suas estórias. Obra foi relançada pouco antes de sua morte (2015). Era um fenômeno.