O tema do homem e seu duplo atravessa a história da literatura, sendo recorrente na literatura moderna. É o caso do romance O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, no qual o protagonista procura esconder da sociedade a sua verdadeira imagem, mantendo uma aparência de virtude enquanto se entrega a uma vida marcada pelo hedonismo extremado.
Em Associação Robert Walser para sósias anônimos, um dos romances vencedores do Prêmio Pernambuco de Literatura, os personagens não tentam exatamente se esconder diante dos outros: tentam fugir de si mesmos assumindo outra identidade, a ponto de esquecerem os seus verdadeiros nomes:
Ser um sósia não significa, necessariamente, que você tenha algum problema pessoal consigo mesmo: a paixão de querer ser outra pessoa é sempre menor que a de esquecer quem você é.
Esse desejo de evasão é mostrado por Tadeu Sarmento através de um jogo de identidades falsas. A narrativa é erguida de forma engenhosa e povoada de referências históricas e literárias. Os capítulos são curtos e aos poucos o leitor vai sendo envolvido numa rede de simulacros, em uma obra na qual se entrecruzam memória e imaginação, registro histórico e ficcionalidade.
O romance é estruturado em duas tramas que correm paralelas, entremeadas no jogo de espelhos construído pelo autor: a primeira trama gira em torno de uma inusitada associação de sósias e a segunda transcorre em Nueva Königsberg, reduto de alemães foragidos da Segunda Guerra situado ficcionalmente no Paraguai e protegido pela ditadura do general Stroessner nos anos sessenta.
Os habitantes de Nueva Königsberg tentam aplacar a angústia de existir levando uma vida previsível e pragmática, inspirada nos imperativos categóricos de Kant, filósofo prussiano que escreveu a Crítica da razão pura. Como se sabe, Kant nunca saiu de sua cidade natal (Königsberg) e tinha por hábito caminhar todos os dias após o almoço — era tão metódico nisso que a população acertava o relógio à sua passagem. Em meio aos suores e vapores dos trópicos, os habitantes do estranho vilarejo paraguaio tentam reproduzir em seu cotidiano os hábitos regrados de Kant, inclusive a suposta castidade do filósofo.
Patrono espiritual
A curiosa associação de sósias tem como patrono espiritual o falecido escritor suíço Robert Walser, que cultivava o anonimato e aparece como um símbolo no livro: autor de vasta obra, tentou se matar diversas vezes e internou-se voluntariamente em um hospício, negando-se a voltar a escrever e cometendo suicídio em 1956. O prédio da Associação fica ao lado de um ferro-velho e de uma agência funerária, tendo à frente uma loja de máscaras e fantasias — ou seja, tendo ao lado estabelecimentos dedicados a receber o que é descartado pela sociedade e à frente uma fábrica de ilusões.
Como se vê, trata-se de ambientação surreal e de projetos fadados ao fracasso. Os habitantes de Nueva Königsberg vivem como autômatos, entregando-se a uma passividade perturbadora e àquele espírito de rebanho de que falava Nietzsche em seus escritos. Já os integrantes da associação de sósias vivem em uma “superficialidade desesperadora”, cultivando o solo adubado da mesmice longe do território montanhoso das dúvidas e do charco pantanoso das certezas.
Associação Robert Walser para sósias anônimos é uma parábola kafkiana (às vezes sinistra, às vezes sarcástica) sobre a dissimulação e sobre a fragmentação da identidade na sociedade contemporânea, em uma época de subjetividades forjadas nas redes sociais e de padronização de comportamentos em certas latitudes.
O desejo de esquecer de si mesmo ou de ser outra pessoa conduz os personagens do livro à “servidão voluntária” — esse mal que a língua se recusa a nomear, na feliz expressão de Étienne de La Boétie.
Você não pode evitar a própria sombra, diz Jack London na epígrafe incorporada ao livro de Tadeu Sarmento. O esquecimento deliberado de si mesmo é um projeto malogrado: a gente se desfaz de uma neurose, mas não se cura de si próprio, dizia Sartre.
O livro é uma parábola kafkiana (às vezes sinistra, às vezes sarcástica) sobre a dissimulação e sobre a fragmentação da identidade na sociedade contemporânea, em uma época de subjetividades forjadas nas redes sociais e de padronização de comportamentos em certas latitudes.OK
Tom farsesco
O romance é marcado por um tom farsesco, com certo desencanto que não esconde um profundo desprezo pela condição humana. Mas esse pessimismo tem um travo irônico e sarcástico, como a querer resgatar a origem grega da palavra persona e nos lembrar de nossa impostura em um mundo feito de máscaras.
Como sabemos, a manipulação da identidade esteve presente na ascensão do fascismo, que se alimenta justamente da intolerância e da indiferença em face do outro. Mas esse conflito especular é um poço sem fundo: a anulação de si acarreta a negação do outro, criando um demônio de muitas faces.
Entretanto, por mais que vivamos num contexto de fragmentação do sujeito — fenômeno que guarda relação com a ascensão da imagem e com o declínio do ato de narrar na sociedade contemporânea —, nem por isso se pode dizer que a narrativa tenha perdido seu lugar no mundo.
Com esses elementos o autor compõe uma trama de espionagem associando filosofia, nazismo e ditaduras latino-americanas. Essa narrativa metalinguística é construída de forma labiríntica e às vezes fragmentária, podendo ser lida sob diversas camadas de interpretação. Elíptica, abre mão da linearidade mas não se torna enfadonha, tomando a própria narrativa como objeto de reflexão.
A obra traça um paralelo com o ofício de escrever — o próprio narrador da trama relativa à Associação é sósia de um escritor. Tadeu Sarmento parece querer nos lembrar que todo escritor é um mentiroso, um ilusionista. Que outra coisa é a representação ficcional senão imitação, fraude, fingimento, simulacro, simulação?
Todo narrador é um falsário, um charlatão. O escritor é alguém que seduz e engana por meio de palavras. O escritor, esse artífice da palavra, criador de ilusões e sortilégios, é também um impostor.