“Pulei com os dois pés na Estética”, escreve Henry Miller explicando como descobriu a sua maneira de escrever prosa retratando o desregramento da vida dos seus personagens e de suas histórias, num texto rápido, quase sem fôlego, através de confissões escatológicas, doentias, espetaculares, tendo ele próprio e as amantes como centro narrativo. Na verdade, Miller marcou a segunda metade do século 20 com publicação da trilogia A crucificação encarnada, que reúne os romances Sexus, Nexus e Plexus, provocando uma formidável revolução literária, que assustou o mundo conservador, vendendo milhares de exemplares, embora hoje tenha apenas leitores raros e selecionados.
No entanto, quando ele se refere à Estética, está apenas se referindo àquela Estética tradicional, cujo único objeto é o Belo, que eliminava qualquer enfoque do Feio ou até mesmo do Sublime. No mundo contemporâneo, a Estética tem como objeto a Beleza, cujas categorias são o Belo, o Feio e o Sublime. A questão é também revolucionária porque considera, sobretudo, o Feio — Feio que chega a substituir o Belo como resultado das mudanças do gosto.
De forma que se pode dizer que Miller pulou com os dois pés no Belo, mas não na Beleza. Beleza que é quase um sinônimo de Estética, embora não seja a mesma coisa. Em certo sentido, podemos assegurar que no sentido mais estreito, ou seja, no sentido tradicional, Beleza é sinônimo de Belo, mas com imensa precariedade porque a Beleza é um conjunto de valores e não apenas um valor.
A opção de Miller é pela dissonância, pela desarmonia, até porque, para ele, escrever sobre as nossas próprias dores, alegrias e comportamentos, é uma técnica através da não-técnica.
Por tudo isso, Henry Miller diria mais tarde que para escrever sua obra mais exitosa, renunciou a toda técnica. Ingenuidade, sem dúvida. Renunciar a toda técnica é, em si mesmo, uma técnica. “Uma coisa que descobri é que a melhor técnica é não ter técnica alguma.” De forma que ele acaba de assegurar que descobriu uma técnica.
O escritor norte-americano sabia que esta não-técnica era uma espécie de encontro com a Beleza contemporânea, tendo sido ele próprio um dos seu criadores. Neste sentido, parece que consideramos feia a obra de Miller — que não é verdade. É uma bela obra mas sem considerar o belo tradicional. Belo com a feiura, com o seu escândalo, com a sua desarmonia, sem dúvida.
Sim, esta desarmonia que é também o emblema da nossa época, daí a sofisticação da música com a revolução da dissonância, ela própria uma espécie de desordem. Esta pequena mudança na frase musical, até certo ponto nem sequer notada, se revela magnífica na composição ou na execução musical.
A opção de Miller é pela dissonância, pela desarmonia, até porque, para ele, escrever sobre as nossas próprias dores, alegrias e comportamentos, é uma técnica através da não-técnica.
Muitas pessoas consideram a Estética uma espécie de ética, a ditar regras e comportamentos. Não é bem isso, claro que não é. As técnicas são caminhos e movimentos que o escritor deve escrever ou experimentar para destruir os seus próprios dilemas. Seguindo-os, não estará sempre definindo uma técnica. O que importa mesmo é o conhecimento da intimidade da narrativa até alcançar o êxito necessário.