A segunda metamorfose

Conto inédito de Nelson Patriota
Ilustração: FP Rodrigues
27/05/2016

Não parece que ao retirar a mobília estamos lhe mostrando que perdemos a esperança de que ele um dia se cure e que o estamos simplesmente abandonando à própria sorte?
Pergunta da mãe em A metamorfose, de Franz Kafka.

I.
Quando a família Samás retornou do passeio que fez ao campo, logo depois da morte do filho Gregório, vinha alegre e confiante. O ar do campo parecia ter retemperado as energias da senhora Ana, apesar do chiado no peito que a perseguia como um mau presságio, resultando quase sempre em crises de asma que pareciam às vezes asfixiá-la. O senhor Samás, por sua vez, trazia do passeio saborosas historietas remanescentes das lembranças juvenis. Mesmo a pequena Gorete assobiava trinados de canções recém-aprendidas em contato com garotas camponesas sorridentes e gentis.

Ao cruzar a soleira de casa, porém, o velho Samás recuperou de imediato o ar casmurro que lhe era habitual. As anedotas contadas com tanta verve a curiosos e atentos camponeses pareciam agora tão insossas quanto o surrado capote que o protegera de resfriar-se na caminhada ao ar livre, e que, num gesto automático, atirou no cabide triplo, junto à cristaleira da sala de estar. A mudança de humor do chefe de família não passou despercebida à mulher e à filha, provocando de pronto um pesado silêncio no entorno. Gorete e a mãe logo se recolheram aos velhos hábitos silenciosos de folhear velhas revistas que jaziam esparramadas sobre uma cesta de vime reluzente, que a nova empregada tivera o cuidado de retirar do quarto de despejos na véspera e, depois de a polir, colocou-a no centro da mesa da sala.

A atenta senhora Samás constatou que o ambiente doméstico requeria cuidados extremos devido ao modo como o marido literalmente desabou, ao chegar, sobre a poltrona de feltro escuro. Era um móvel antigo, levando-se em consideração que apresentava pequenas áreas esgarçadas deixadas como sinais da passagem do tempo. Perspicaz, a senhora Ana não deixou de notar que, ao menos dessa vez, o marido parecia exagerar na exibição do tédio que, normalmente, o caracterizava quando no lar, e conjecturou que isso deveria ter algo a ver com a metamorfose que acometera o filho Gregório, em quem o velho comerciário depositava suas mais fundas esperanças de uma velhice livre de cuidados materiais. Ultimamente, porém, o tédio e o aborrecimento do marido ganharam um ingrediente extra, cuja causa ela atribuía ao trabalho de garçom que arranjara num restaurante suburbano. Tratava-se de uma rotina extenuante para alguém da idade dele, como denotava o semblante desfigurado do marido ao chegar em casa, à noite, e que só aos poucos se desanuviava, mas nunca de todo. Mas o que fazer, pensava a velha mulher, se o filho, que era o provedor de tudo na família, fora forçado a abandonar seu emprego de caixeiro viajante, ficando incapacitado para desempenhar qualquer outra atividade produtiva?

Paciência!, disse a velha senhora, são os desígnios de Deus. Assim, resolveu que deixaria a cargo do marido achar o momento adequado para encerrar sua birra, afinal, o passeio tivera sido excelente, divertido mesmo, conforme ela comentava entre sussurros com a pequena Gorete.

Foi aí que, sem mesmo dar-se conta, a senhora Ana se voltou discretamente para o canto em penumbra na qual o marido ressonava e percebeu que não, ele não estava adormecido. Nem mesmo dormitava, como habitualmente o fazia nessa hora da noite. Na verdade, seus olhos estavam dirigidos para a porta do quarto de Gregório — ou do que restara dele.

Não se tratava, todavia, de um comportamento novo que o senhor Samás apresentava, por motivo disso ou daquilo outro. Pelo contrário, desde que perdera o filho para algo estranho e inominável, mantinha a poltrona sempre voltada para o seu quarto, como a perscrutar seu interior na busca de uma explicação para alguma indagação que o perseguia desde então. Sabia que naquele quarto jazia agora o cadáver de um inseto que, durante alguns dias, guardou certa semelhança com o filho, e cujo comportamento era capaz de interpretar como ditado por propósitos humanos. Ao menos nos primeiros dias subsequentes à sua metamorfose, como se sua humanidade relutasse em dar-se conta do que sucedera ao seu corpo e entrasse em luta aberta pela recuperação de sua antiga condição.

II.
Desde o dia em que tomou ciência da fatalidade, o pai se obstinava em permanecer na sua poltrona, olhos fixos na fechadura da porta à sua frente, como na iminência de assistir a algum fenômeno novo e, certamente, assustador. Era ali também onde fazia as três refeições diárias. Só tarde da noite é que consentia em levantar-se, quando se dava por vencido ante os pedidos cada vez mais insistentes das mulheres para que se recolhesse à cama.

Mas o que jazia presentemente naquele quarto, agora que o inseto estava morto, conforme a filha dissera na véspera do passeio ao campo, depois de uma averiguação que a ocupara durante toda uma manhã? A resposta teria de ser dada pela própria filha, pois ele não se atreveria a tocar na maçaneta da porta do quarto que absorvia tão intensamente sua atenção. Quem poderia prever o que jazia ali? Quem garantiria que o inseto, agora dado como morto, não sofrera uma metamorfose ainda mais medonha do que a primeira? O pai sentia calafrios só em pensar na descrição que lhe fizera a filha do espectro que vira, ainda vivo, portanto, num vislumbre do qual se arrependera amargamente.

É que, embora desse como certo que o irmão-inseto estava morto, devido ao silêncio que passou a reinar em seu quarto durante o dia, ela não conseguia descartar completamente a suspeita de que o inseto que repousava no quarto ao lado do seu produzia silvos noturnos audíveis aos seus ouvidos aperfeiçoados por prolongados exercícios musicais. Desde então, possuir uma audição invejável passou a ser para ela um fardo intolerável; pior, um mal do qual não conseguia se defender — sobretudo quando ela se recolhia ao silêncio do seu quarto à noite. De que lhe valia agora que seu professor de solfejo tivesse classificado seu ouvido de absoluto, perante todos os seus colegas de classe, condição que lhe abriria as portas dos melhores institutos de música, em outras circunstâncias? De que servia ter um ouvido tão apurado se à noite ele era invadido por sons capazes de aterrorizar o mais destemido dos homens?

Não obstante a gravidade desses fatos, a pequena Gorete não ousava comentar esse assunto com os pais. Temia que eles rechaçassem suas suspeitas, creditando-as à sua imaginação juvenil e a sua natural inclinação para fantasiar a realidade. No fundo, ela sabia que eles temiam algo pior. Por exemplo: que suas supostas escutas noturnas fossem sintomas de uma segunda metamorfose do ser que, um dia, fora seu irmão Gregório, e que se mostrasse ainda mais assustador do que o primeiro. Por outro lado, ela começava a ver que associavam cada vez menos o cadáver do inseto ao filho que tiveram um dia, e o comparavam cada vez mais a um monstro de que só conseguiam sentir repulsa.

Apesar disso, ele não deixava de exercer uma espécie de fascínio mórbido sobre a pequena Gorete, até porque seu quarto era contíguo ao do desditoso irmão. Mas que fazer? Não podia propor aos pais que trocassem de quarto com ela, sob pena de cometer sacrilégio aos deveres filiais. Por acaso, ousaria ela querer afrontar a venerável velhice de seus genitores, colocando-os sob a influência maligna de um monstro insepulto? O que os vizinhos e os amigos iriam pensar de uma filha tão cruel?

Diante dessas razões, a pequena Gorete procurava evitar no possível qualquer tipo de conflito com os pais enquanto, ao mesmo tempo, avaliava qual a melhor estratégia a seguir diante de um problema que a afetava diretamente, mas que preferia que não afetasse a eles.

Apesar de todas essas ressalvas, a pequena Gorete sabia que não poderia procrastinar indefinidamente uma questão dessa magnitude. O cadáver do inseto, abandonado no quarto contíguo ao seu, exigia algum tipo de ação urgente. Mas ela sabia que não poderia contar, para isso, com a colaboração dos pais, porque da vez que lhes propusera que tentassem retirá-lo do quarto e o levassem até um matagal, situado nas cercanias da cidade, para enterrá-lo numa vala qualquer, a ideia foi repelida de imediato pelo pai, seguido do assentimento da mãe.

A principal razão da recusa que alegaram — mas talvez a menos importante — fosse o esforço descomunal que seria preciso fazer para retirar de casa aquele enorme estorvo. Sem contar que dali já sentiam um fedor repulsivo e ao menos dois degraus acima dos piores miasmas de que tinham lembrança. E como iriam remover aquilo de dentro de casa? Precisariam pedir socorro aos vizinhos, o que lhes parecia uma hipótese intolerável, pois tornaria pública uma espécie de má-sorte ou maldição que havia se abatido sobre a família. — Nem pensar, replicava o velho Samás. — Sim, nem pensar, repetia a senhora Samás, numa adesão mecânica ao marido, como se temesse que a filha, aproveitando alguma hesitação de sua parte, explorasse de algum modo seu ato de fraqueza. A pequena Gorete, porém, sabia que o mal maior já fora consumado, uma vez que nem um único vizinho os visitava desde a fatídica metamorfose.

Mas ela conhecia bem seus pais para pensar que perguntas dessa natureza iriam demovê-los do tom negacionista quando se tratava daquele assunto irresoluto e que, a depender deles, assim permaneceria. A pequena Gorete sabia que quando solicitados a dizer o que achavam da ausência de visitas à casa, de uns tempos para cá, a senhora Samás responderia sempre, embora cada vez com menos certeza na voz, que não havia pensado no assunto. — É até melhor que os vizinhos nos evitem para não termos de falar sobre o que sucedeu com o pobre Gregório, dizia. Em seguida, emitindo um longo suspiro, o velho Samás emendava: — É, acho que você tem razão, querida.

À pequena Gorete, porém, essa cautela dos pais queria dizer justamente o contrário. Ela sabia que a notícia se espalhara pela vizinhança, sem precisar indagar de ninguém. O jeito como era evitada pelas amigas que, antes, costumavam procurá-la para todo tipo de brincadeira e agora a ignoravam abertamente, falava por si. Além do mais, quem podia garantir que a antiga empregada, que pedira as contas de forma tão inesperada à sua patroa, desde a desgraça de Gregório, não espalhara pela pequena cidade a tragédia do lar dos Samás? Sem falar que aqueles três hóspedes que ocuparam, até esses dias, por duas semanas o quarto dos fundos da casa, haviam sido praticamente escorraçados pelo pai, justo no dia em que ela se apresentara especialmente para eles (mas este era um segredo só dela!), na antessala, meio de improviso como concertista, numa récita malograda, ao final. O que não estariam falando aos amigos e conhecidos sobre o lar dos Samás?, se perguntava, desolada, a pequenas Gorete.

III.
Naquela noite, a pequena Gorete teve um sonho: ao passar pelo quarto de Gregório ela notou, ao olhar casualmente para a parte inferior da porta, que podia ver a extremidade de uma chave. De imediato, abaixou-se e a pegou. Em seguida introduziu-a na fechadura e girou-a no sentido horário. A porta cedeu de pronto e recuou, como para lhe dar passagem. Nesse instante, todo o quarto pareceu brilhar sob a luz da manhã que se infiltrava pela janela aberta para a rua, hábito ao qual seu irmão se acostumara desde criança. Procurando com o olhar sua cama, a pequena Gorete percebeu que ele tinha recuperado sua forma humana e parecia dormir silenciosamente sob um lençol de linho branco que lhe deixava apenas a cabeça a descoberto. Mas não de todo, pois uma nesga do lençol cobria parcialmente seus olhos.

Nesse instante, a atenção da pequena Gorete foi desviada por algo que se mexeu entre os chinelos de Gregório, alinhados no assoalho junto à cama. Era uma repulsiva barata que, surpreendida pela entrada da menina, logo se esgueirou e desapareceu na sombra produzida pelo lastro da cama. A visão do inseto fez com que a pequena Gorete desse um grito e, em seguida, acordasse. Como no sonho, a manhã se infiltrava pelas frestas da veneziana do seu quarto. Mas a lembrança ainda fresca do irmão dormindo suavemente no leito, produziu um calafrio que a fez tremer e vibrar numa forte comoção. O pesadelo do asqueroso inseto teria chegado ao fim?, perguntou-se. Após um esforço para reconstituir outras passagens do sonho, lembrou que estava sozinha em casa, porque os pais haviam saído durante sua ausência sem terem deixado sequer um bilhete sobre a mesa da sala de estar, como costumavam fazer, com alguma informação sobre a hora de retorno a casa. Apurando os ouvidos, deu-se conta de que o relógio da copa badalou duas vezes, indicando que já eram duas horas da manhã.

Recostada ao seu leito, a fim de melhor refletir sobre os fragmentos do sonho para reavivá-lo ao máximo, a pequena Gorete ergueu-se de súbito, sentando-se no leito e assim permanecendo, como se seus membros não mais respondessem à sua vontade. Em compensação, uma lembrança ficava cada vez mais clara em sua mente: desde alguns dias, os ruídos noturnos oriundos do quarto de Gregório vinham perdendo força e, na noite passada, haviam desaparecido de todo.

Nelson Patriota

Nasceu em Natal (RN). É jornalista e sociólogo. Autor de A estrela contaColóquio com um leitor kafkianoUm equívoco de gênero e Tribulações de um homem chamado Silêncio, entre outros.

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