Eu fui você, ontem

Em "O impostor", Javier Cercas reescreve uma biografia usando a ficção como memória
Javier Cercas, por Robson Vilalba
27/05/2016

Em 1997, Monique de Wael, cidadã belga, publicou Misha: uma memória do Holocausto, relato autobiográfico de uma menina cujos pais foram assassinados em campo de concentração, enquanto ela se refugiava nas florestas, adotada por uma matilha de lobos. A inverossimilhança evidente tardou a levantar suspeitas entre os leitores, emocionados com aquele “milagre”. Dez anos mais tarde, ao ver sua farsa desmascarada, alegou que apesar da história de “Misha” não ser de fato realidade, era sua realidade, e que houve momentos em que ela própria teve dificuldade em distinguir entre o que era real e o que era produto de sua imaginação.

Poucos anos antes o cidadão suíço Bruno Grosjean, apresentando-se como Binjamin Wilkomirski, também comoveu, com Fragmentos: memórias de uma infância de guerra, a autobiografia inventada, onde um menino da Letônia sobreviveu sozinho à Guerra e aos campos de concentração. Após cinco anos, mediante provas de que era tudo invenção, Grosjean tentou defender-se borrando os limites entre ficção e realidade, e com isso, de fato, desviando o foco da questão essencial: o assalto à empatia, este pequeno tesouro.

Do lado de cá do Atlântico, James Frey publicou Um milhão de pedacinhos, memórias inventadas, da luta contra as drogas. Ao ser exposto, lançou mão do mesmo recurso: agarrou-se até onde pôde aos pedacinhos de realidade para justificar o oceano de mentiras que agora o afogava. Há algo na literatura e história contemporânea que favoreça esse tipo de enredo?

O impostor, de Javier Cercas, parece indicar que sim. O personagem do título, Enric Marco, existe na vida real: falsificou sua experiência, transformando-a em relato heroico: fingiu-se deportado a um campo de concentração na Segunda Guerra Mundial. Durante 30 anos foi celebrado como lutador antifranquista e vítima dos nazistas. Tornou-se homem público, dava conferências, dirigiu sindicato, recebeu medalhas, publicou suas memórias. Presidiu a associação espanhola de sobreviventes dos campos. Nunca teria sido desmascarado se não fosse a pesquisa minuciosa de Benito Bermejo, um historiador que, em 2005, deu-se ao trabalho de estudar as listas de deportados espanhóis aos campos de concentração alemães.

Três cenários
Cercas, cujo sobrenome significa fronteiras, interessa-se justamente pela estrutura e vulnerabilidade das fronteiras, metafóricas e reais, entre ficção e realidade, entre política e moralidade, entre entender e justificar. Partindo desse solo fértil em perguntas, escreveu um “romance sem ficção” sobre a história e a apuração da história de Enric Marco. O produto, um misto de ensaio e jornalismo literário, utiliza um eficiente recurso: a intervenção em primeira pessoa do romancista Javier Cercas como investigador da verdadeira existência de Marco. O protagonista é o narrador, que pesquisa e interpreta as fontes de informação. Atua em três cenários paralelos: na reconstrução da vida de Marco, a partir de fatos alegados e comprovados; nas reflexões morais e metaliterárias às quais o leitor é constantemente recrutado; e no universo familiar, especialmente o filho, cuja presença é justificada pela gravação das entrevistas em vídeo, possível metáfora para memória, a herança de um pai para um filho.

“Eu não queria escrever este livro” é a frase de abertura. A primeira grande questão, escrever ou não escrever sobre Enric Marco? “Estaria eu enganado, e portanto realmente não se deve tentar entender o mal extremo, menos ainda uma pessoa que, como Marco, utiliza o mal extremo para enganar todo mundo?” Seu dilema parte de duas questões: determinar que mal fez Marco, e se vale a pena debruçar-se sobre as façanhas de tal sujeito. Finalmente, as palavras de Tzvetan Todorov o convenceram: “compreender o mal não significa justificá-lo, mas sim criar-se os meios para impedir seu regresso”.

A fronteira entre o narrador e o sujeito da narração, no início, é facilmente observável, estando o primeiro seguro sobre as razões do segundo. “Eram necessárias as mentiras de Marco para revelar as barbaridades do nazismo? Não. Os embustes de Marco eram necessários para o bem de Marco, por mais que o mentiroso dissesse que mentia por uma boa causa, para difundir em primeira pessoa as barbaridades nazistas, porque a história é fria, e a memória é quente como o sangue vivo.” Era esse calor que o embusteiro roubava.

As mentiras são desmontadas, uma a uma. Primeiro pela linguagem, com a reiteração da dúvida (“Marco não se lembra, ou diz que não se lembra… […] é basicamente um enganador, um charlatão desaforado, um enrolador sem igual.”). Os fatos são verificados, e pouco sobra de sólido. Em uma prosa ora acelerada e contundente, ora pausada e reflexiva, a narração não sai de prumo. No melhor estilo do “novo jornalismo”, termo que já tem décadas, há mistério, documento histórico, ensaio, diálogo com o leitor: referências ao estilo de Capote e W. G. Sebald, aos protagonistas de Flaubert e Cervantes, aos ensaios de Carrère, Montaigne e Hume. Os fatos, numerosos demais para que o leitor se lembre, são fracionados e distribuídos, às vezes repetidos, o que dá a falsa sensação de domínio da verdade, intercalada de dúvida — exatamente como deve ser, tratando-se desse animal insondável que é o homem. E apesar do narrador prosseguir com seu projeto, nunca deixa de questionar a honestidade de seus próprios motivos.

O personagem do título, Enric Marco, existe na vida real: falsificou sua experiência, transformando-a em relato heroico: fingiu-se deportado a um campo de concentração na Segunda Guerra Mundial.

Nitidez
A diferenciação entre narrador e narrado vai perdendo a nitidez. “Você não teve, mais de uma vez, a suspeita de que era eu que havia vivido e havia inventado o que inventei somente para que você o contasse?” pergunta Marco a Cercas. Referindo-se ao sucesso de Cercas com outro romance, Marco (personagem) chega a acusar seu criador (Cercas), em um diálogo imaginário, de também haver se beneficiado do que se chama de “indústria da memória”.

A aproximação entre um e outro vai sulcando a objetividade. Alternando-se entre o convívio da família e as entrevistas com Marco, o narrador pesquisa, confere, define. Justo Navarro considerou a participação da família a nota dissonante no romance, o aspecto menos convincente, por debilitar a tensão entre Cercas e Marco. Isso só vale se o romance ficar restrito à dimensão histórica. A presença da família, mais exatamente do filho, nas entrevistas e conversas, não é adjuvante, é mais uma faceta deste romance prismático. Raul, o filho, tem um papel importante: persuadir seu pai a empreitar o romance. Mas vai além. Oferece seu trabalho de cinegrafista para documentar os encontros, o que Cercas aceita. Com sua presença, a herança da memória está garantida.

Enquanto hesita sobre a escritura deste romance, o narrador faz diversas referências a seu livro anterior, que apesar de ser um sucesso, o deixou estranhamente deprimido. Menciona aí a recente perda do pai, à qual também reluta em atribuir maior importância. Mas o poeta é um fingidor. Em entrevistas concedidas após o lançamento de Anatomia de um instante, Cercas declarou haver percebido, ao finalizar o livro, ainda que postumamente, que “o livro não era sobre Suárez, era sobre meu pai”. Quando jovem, o autor, crendo-se superior, discordava intensamente das ideias conservadoras do pai. Com o tempo, Cercas veio a entender que seu pai estava politicamente errado, mas moralmente certo, defendia sua crença no catolicismo e em sua família; o franquismo era uma montanha presente em suas vidas. Não é surpreendente, então, que Cercas só se sinta confortável em escrever o livro sobre Marco a partir do momento em que consegue incluir seu filho nessa busca. Coerentemente, é a ele e à sua esposa que o livro é dedicado.

Ao final da primeira parte do livro, intitulada A pele da cebola, Cercas conclui que já pode enxergar o bulbo escondido por camadas de mentiras. Em alusão ao livro de Günter Grass, revela o segredo mais sórdido nessa falsa história: Marco sempre esteve onde a maioria estava. O que o torna um homem comum. Ao final da Guerra, Marco vivia como seus compatriotas, acovardados pela ditadura, procurando a invisibilidade, não gostava do que via no espelho, por isso teria inventado a si próprio com outro passado. Vale reconhecer que se reinventou como herói no momento oportuno, quando todos o faziam, cada país europeu à sua moda. Cercas examina a Espanha. Em uma entrevista concedida a Maya Jaggi, do The Guardian, afirmou, “temos uma tradição de ditadura e inquisição; matamos as pessoas por pensarem diferentemente de nós. Nosso esporte nacional não é futebol, é a guerra civil”. Marco teria agido em conformidade com a maioria ao mentir. Mas onde foi então que cruzou a linha da moralidade, se é que o fez?

Qualidades
Marco possui as qualidades imprescindíveis a um romancista: força, imaginação, memória, amor à palavra. Aqui Marco é personagem de romance, mas também autor de ficção. Os romances mentem por definição, diz Cercas. “Nos romances, não só é legítimo como obrigatório mentir: essa mentira factual é a maneira de se chegar à verdade literária. Através da mentira, o romance revela a verdade profunda do real, e nos permite conhecermos e reconhecermos a nós mesmos.” Visto assim, Marco poderia ser uma invenção de Borges, ou Don Quijote ou Emma Bovary, várias vezes mencionados. Mas não é: a linha da moralidade foi cruzada quando Marco utilizou fatos reais do mundo real, vividos por pessoas de carne e osso, e não de mundos imaginários, para roubar calor humano que não lhe era devido.

A empatia de Cercas por seu sujeito cresce a cada encontro. O que inicialmente parece uma intrusão de autor na vida de pesquisado inverte-se. Cercas convence-se que Marco mudou, que nunca agiu por má-fé, só por egoísmo burro. Há uma sentimentalização literária do personagem, até que Santiago Fillol, diretor do documentário sobre Marco, dá o alerta: “Se chegar a alguma conclusão sobre ele, ele vai engolir você. Se achar que já o entendeu e que ele tirou a máscara, ele vai engolir você. Enric está sempre usando uma máscara por trás da máscara. Sempre escapa”. O alerta funciona. O narrador recupera a direção.

De qualquer modo, o que me interessa sobre Marco não é Marco em si. Marco é um pretexto. Tome uma lente de aumento, coloque-a sobre qualquer ser humano, e de fato é ele que se vê. O livro não fala de Marco. Ele é o tema visível, como em Soldados de Salamina o tema era Sánchez Mazas. O tema invisível é outro: Enric Marco é o que somos, mas o bestial.

Usa Marco para expor uma camada humana bem escondida: a mentira. “A literatura é uma espécie de hipérbole do que realmente somos. Enric Marco é uma hipérbole da impostura, da mentira”., disse em entrevista a Guilherme Sobota para O Estado de S. Paulo.

Desta forma, é também uma metáfora para a Espanha, e para tantos outros países que têm dificuldade de encarar seu passado de frente. Contra a “ditadura do presente” o escritor deve persistir em escavar a verdade escondida no passado, já que “o passado é uma dimensão do presente” (Faulkner). “Não escrevo romances históricos, e sim romances sobre esse presente maior que contém o passado.” O escritor é alguém que acredita que através da forma pode se chegar a uma verdade à qual não se poderia chegar por nenhum outro caminho. Se a verdade do presente encontra-se sob camadas de impostura do passado, é necessário escavá-la.

 

O impostor
Javier Cercas
Trad.: Bernardo Ajzenberg
Biblioteca Azul
462 págs.
Javier Cercas
Nasceu na Espanha em 1962. Além de escritor, foi professor de literatura espanhola na Universidade de Girona e Universidade de Illinois. Publicou sua primeira obra, El móvil, em 1987, e mais dez livros desde então. É considerado um dos mais importantes autores espanhóis da atualidade, e suas obras foram traduzidas a inúmeros idiomas.
Vivian Schlesinger

Escritora, tradutora e mediadora de debates literários. Autora do livro de poemas Papaya na madrugada.

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