Um mundo fora de prumo

Após o sucesso de "Game of Thrones", a grande questão é saber para onde vai todo o reino criado por George R. R. Martin
27/05/2016

Em meados de 2010, quando dois jovens roteiristas chamados David Benioff e Dan Weiss foram à casa do escritor George R. R. Martin convencê-lo de que eram os únicos sujeitos no mundo que poderiam adaptar o seu gigantesco ciclo de romances, A song of ice and fire [Uma canção de gelo e fogo], para uma série de televisão no canal HBO. Ele apenas os escutou com paciência e, assim que os dois pararam de falar, perguntou com a maior simplicidade possível: “Quem é a mãe de Jon Snow?”.

Para quem não vive no Planeta Terra, Jon Snow é um dos principais personagens criados na monstruosa série de histórias que saíram da mente igualmente delirante de Martin, composta por cinco romances que têm, em média, entre 800 e 900 páginas — e sem data para terminar, com mais dois livros para sair nas livrarias e satisfazer a curiosidade dos leitores que querem saber como terminará esse ciclo.

Snow é o filho bastardo de Ned Stark, lorde do condado de Winterfell, um dos únicos lugares onde ainda existem honra e decência no continente perturbado e pervertido de Westeros, composto por sete reinos que só não se destroem entre si porque vivem sob a mão de ferro de Robert Baratheon, um rei que não deixa nada a dever a um Henrique VIII, com sua tendência para devorar javalis e fornicar jovens prostitutas — e que, graças a uma aliança de casamento com a família mais poderosa de Westeros, os Lannisters, pouco se importa com o que acontecerá com o seu poder se algum dia ele morrer.

Ocorre que Baratheon falece (aparentemente morto por um javali que comeria no jantar, durante uma caçada). Sua esposa Cersei, uma donzela que é a libido dominandi por excelência, tenta manter a sua continuidade na linha sucessória com seu filho, o psicopata infantil Joffrey, além de esconder a qualquer custo da população que todos os seus herdeiros são, na verdade, resultado do seu relacionamento incestuoso com o irmão Jaime, um cavaleiro conhecido por ter assassinado o rei anterior de Westeros, Aegon Targaryen, quando sua função primeira era justamente protegê-lo — dando a brecha para que Robert Baratheon conseguisse o trono com os Lannisters.

Ao ser chamado para a capital do continente, King’s Landing, Ned Stark tenta ajudar Robert como seu amigo de longa data, mas, com a morte do rei, suspeita que houve um complô para assassiná-lo e descobre a trama incestuosa de Cersei e Jaime. Não é necessário dizer que a rainha consegue mandá-lo para o cadafalso e, sob a ordem surpreendente de Joffrey, provoca a sua decapitação. O resultado disso é a dispersão da família Stark por Westeros, com as duas meninas, a dócil Sansa e a rebelde Arya, sendo tratadas como bonecas entre batalhas e alianças nupciais; o filho mais velho, Robb, se transformando em um senhor da guerra, rumo a um fim trágico; o caçula, Bran, ficando paraplégico ao descobrir inadvertidamente um momento de fraqueza entre Cersei e Jaime quando estes visitavam Winterfell; e o bastardo Snow, renegado pela esposa amarga de Ned, Catelyn (porque o faz lembrar da ausência temporária de razão do honrado marido) indo para o extremo norte do continente, onde ficam as “sentinelas do muro” — um lugar congelante em que encontramos os verdadeiros guardas de Westeros e que, pouco a pouco, são os únicos que percebem o verdadeiro perigo que se aproxima: uma multidão de mortos vivos que antes eram conhecidos como os “White Walkers” e que estão prestes a invadir sem aviso o continente inteiro.

 

A song of ice and fire já vendeu mais de 30 milhões de exemplares, muito antes de ser transformada em Game of Thrones, a série para a HBO que David Benioff e Dan Weiss finalmente conseguiram lançar e que se tornou um outro fenômeno midiático.

Acertaram na mosca
Eis aqui um cenário para uma guerra civil sem precedentes — e que Martin faz questão de descrever em detalhes, caprichando no realismo violento e na sexualidade grotesca. Contudo, o grande mistério de todo esse ciclo é aquele singelo detalhe que ele perguntou a Benioff e a Weiss: Quem era a mãe do filho bastardo de Ned Stark? Os dois olharam entre si e tentaram uma resposta. Por incrível que pareça, acertaram — e Martin lhes deu a benção para vender a série à HBO.

O problema era agora convencer o canal de televisão a cabo que era possível transformar uma obra literária em um produto comercial bem-sucedido. As experiências anteriores da empresa não tinham dado certo: dois anos antes, alguém teve a ideia inusitada de chamar o cineasta Noel Baumbach para adaptar o romance As correções, de Jonathan Franzen (2000), ao meio audiovisual. Depois de um ano e meio de escrita e reescrita dos roteiros (supervisionados pelo próprio Franzen), da filmagem de um piloto de duas horas que tinha no elenco atores do calibre de Ewan McGregor e Dianne West, a HBO percebeu que a empreitada não vingaria. Afinal, como adaptar as sutilezas literárias de um romance repleto de detalhes, ramificações e digressões para um gênero de narrativa em que o importante é o “mostrar, não apenas contar” (show, don’t tell)?

Apesar do sucesso recente das séries de TV da chamada “Era de Ouro” ter uma grande dívida à estrutura literária dos seus arcos dramáticos — como ficam evidentes ao olharmos os trabalhos de David Chase, David Milch, David Simon, Matthew Weiner e Vince Gilligan —, ainda assim roteiristas sempre pensam em termos de imagem, e não de um modo que relacione as palavras e a imaginação fértil do leitor, para depois concretizá-los diante das retinas do espectador. Por isso, o fracasso em adaptar um romance como As correções: Franzen podia tecer toda uma reflexão sobre a doença moral de ser um norte-americano no início do século 21, mas isto simplesmente não interessava quando tinha de ser dramatizada em um movimento de câmera ou um corte seco. Então, como Benioff e Weiss convenceriam a HBO a investir milhões de dólares em uma série de TV baseada em livros de fantasia que tinham uma trama que não parava de crescer?

Muito simples: os dois venderam o produto como se fosse um “The Sopranos na Terra Média” — uma referência ao mundo criado por J. R. R. Tolkien para o seu memorável épico O Senhor dos Anéis, somada à extrema violência dos mafiosos que foram criados por David Chase.

Benioff já tinha experiência em fazer esse tipo de venda quando adaptou nada mais que a Ilíada, de Homero, para o arrasa-quarteirão Troia (2004), em que Brad Pitt interpretava ninguém menos que Aquiles. Vários críticos reclamaram da falta de fidelidade do filme em relação aos eventos narrados pelo vate cego, mas isto é típico de quem não entendeu (ou nunca leu) Le Journal d’un curé du campagne e o estilo de Robert Bresson, o famoso ensaio de Andre Bazin sobre as dificuldades de se adaptar uma obra literária para o meio cinematográfico. Partindo de uma análise exaustiva do filme Diário de um pároco de aldeia (dirigido por Bresson e baseado no romance de George Bernanos), Bazin mostra que a verdadeira infidelidade a um grande livro se deve justamente quando o realizador tenta reproduzir todos os fatos narrados na página escrita. O crítico de cinema francês defende uma abordagem mais pragmática para ambos os lados: o diretor precisa alterar os eventos contados no romance, mesmo que seja de forma radical, para ser extremamente fiel ao espírito do escritor que deu a semente da película — no caso, a história e o enredo.

Foi o que David Benioff tentou fazer com Homero em Troia: alterou a ordem de algumas sequencias, mudou o comportamento de vários personagens, para não trair esses épicos, que mostravam o mundo como uma gigantesca guerra em que a batalha entre os homens é apenas o resultado trágico de não aceitarem (e de não perceberem) a batalha entre os deuses do Olimpo.

Infelizmente, o filme não foi bem-sucedido artisticamente devido a uma direção canhestra de Wolfgang Petersen, mas seu relativo sucesso financeiro permitiu a Benioff que alçasse voos mais arriscados. Foi quando reencontrou seu amigo de faculdade, Dan Weiss. Eles já se conheciam na época em que estudavam literatura inglesa em Dublin, onde Benioff escrevia uma tese sobre o impenetrável Samuel Beckett e Weiss tentava encontrar algum sentido no hermético Finnegans Wake, de James Joyce. Portanto, quando, em 2010, Benioff mostrou a Weiss um exemplar da primeira parte do ciclo de George R. R. Martin, intitulado A game of thrones (1996), ambos sabiam que poderiam adaptar aquele material literário com alguma facilidade. Afinal, assim como Joyce, os livros de Martin não param de crescer em complexidade e em detalhismo, num exagero que muitas vezes nos faz perguntar sobre a sua sanidade mental; e como Beckett, Martin possui a mesma visão amarga sobre a natureza humana, deformada pelas lutas de poder, pelo vazio existencial e tendo apenas um fiapo de honra para se apoiar em um mundo que estaria saindo fora do prumo.

 

Mas, no emaranhado das lutas pelo poder que afetam essa sociedade como um todo, indo do mais reles serviçal até o cortesão da elite, Martin parece mais interessado em mostrar como a honra é usada, abusada e pervertida para os propósitos de cada personagem.

Dificuldades
Contudo, na hora de transformar o primeiro livro em um episódio-piloto para a HBO, novamente as coisas ficaram complicadas. Por mais que Benioff e Weiss se inspirassem visualmente, por exemplo, nas obras de Akira Kurosawa para construir a atmosfera ameaçadora de Westeros (com citações a Ran, Trono manchado de sangue e Kagemusha), eles sequer sabiam mostrar ao espectador que Cersei e Jaime eram irmãos e amantes ao mesmo tempo — justamente um detalhe que, como sabemos, é o que impulsiona toda a trama. Resultado: foram obrigados a refazer todas as cenas já filmadas, inclusive com novos atores, num daqueles feitos únicos na história da televisão em que o que seria uma bomba se transformou em um inesperado sucesso — e que também mostram os caminhos labirínticos de se adaptar uma obra literária complicada para um meio que aparentemente só aceita superfícies como o cinema e a televisão.

George R. R. Martin provavelmente riu por dentro quando soube das peripécias de Benioff e Weiss. Não à toa, ele fugiu de Hollywood e concebeu A song of ice and fire justamente por causa disso: o cinema não conseguia alcançar os seus sonhos mais loucos quando ele punha o que queria no papel. Martin já era um nome reconhecido no gênero de livros de fantasia (tendo publicado o perturbador Dying of the Light, uma novela apocalíptica) — e também era um roteirista renomado no universo dos filmes de terror e de ficção-científica, tendo escrito para séries como Twilight Zone e ter sido showrunner da série A bela e a fera, um enlatado de filme B que misturava Jean Cocteau e O exterminador do futuro. Ao perceber que os custos para se construir qualquer coisa que saísse da sua cabeça eram elevadíssimos, Martin refugiou-se na sua casa em Santa Monica, Los Angeles, e passou a estudar meticulosamente o período da Guerra das Rosas, ocorrida na Idade Média inglesa, para então criar a sua trilogia que, de acordo com seus planos, seria muito mais épica e cruel do que O Senhor dos Anéis, de Tolkien.

A trilogia se transformou em um ciclo de sete romances — e a sua intenção de ultrapassar Tolkien só foi alcançada em termos financeiros, mas não no aspecto artístico. A song of ice and fire já vendeu mais de 30 milhões de exemplares, muito antes de ser transformada em Game of Thrones, a série para a HBO que David Benioff e Dan Weiss finalmente conseguiram lançar e que se tornou um outro fenômeno midiático. Contudo, mesmo com a perfeição técnica que Martin possui na forma como conta a sua complexa história, ele não se preocupa ter duas coisas que Tolkien fazia questão em seus livros: uma percepção aguçada do problema do Mal e uma abertura para uma verdadeira busca pela transcendência.

E não se trata de dizer que Martin é superior ou inferior a Tolkien. Trata-se apenas de comparar os dois autores naquilo que ambos quiseram realizar na maratona da competição artística: o intento de criar um mundo completo, total, em que cada evento tem uma consequência numa rede sistêmica de fatos trágicos onde o ser humano se sente abandonado por todos os lados. Neste ponto, Martin parece ser mais bem sucedido porque ele parece ter mais controle sobre a sua criação. Mas é uma ilusão — e o truque ocorre por causa de dois artifícios que Martin usa para convencer o leitor de que aquilo que lê tem algum sentido.

O primeiro artifício é o uso sublime do ponto de vista de cada personagem para narrar o drama de um único e gigantesco continente — um recurso que Martin aprendeu com ninguém menos que William Faulkner de Enquanto agonizo (1929).

A referência não é aleatória: tanto Martin como Faulkner têm a pretensão de criar um cosmos particular em que ambos são os únicos deuses, onde a luta pelo poder é um dos elementos centrais entre os personagens — senão o principal —, provocando assim a sensação de instabilidade em que ninguém está a salvo, uma instabilidade que, muitas vezes, não preserva sequer o herói ou a heroína com quem o leitor mais se espelha. Contudo, Faulkner mantinha o seu mundo em um controle orgânico, permitindo que o universo do condado de Yoknapatawpha respirasse de uma maneira em que o leitor percebesse que o escritor desejava que o mundo criado nas páginas dos romances fosse um espelho do nosso; já Martin usa a técnica dos pontos de vista com a intenção de estilhaçar a narrativa gigantesca, para controlar o drama a qualquer custo — e o resultado não passa de uma mágica ao manter o suspense e brincar com as reviravoltas da luta pelo poder que todos nós queremos saber como terminarão.

 

A partir da sexta temporada, a série ultrapassou os eventos dos livros, e agora tanto o escritor como os seus adaptadores são vítimas da instabilidade que tanto endeusaram. Ou seja, ninguém sabe o que acontecerá porque ninguém tem a mínima ideia de como terminará o ciclo A song of ice and fire.

Desejo de poder
Esta futilidade dramática de Martin parece ser compensada pelo segundo artifício — o de fazer o leitor acreditar que o seu ciclo de romances seria realmente sobre temas sérios. No caso, tudo leva a crer que A song of ice and fire é uma meditação profunda sobre a honra em um mundo completamente dominado pelo desejo de poder — algo semelhante aos nossos séculos 20 e 21. Afinal, é por causa da honra que Ned Stark foi a Winterfell ajudar o seu amigo Robert Baretheon; é por causa da honra que ele morre; é por causa dela que sua família inteira é despedaçada; é a honra que faz os Lannister quererem manter o poder a qualquer custo; é ela que faz Jon Snow se transformar em um “sentinela do muro” para recuperá-la diante do mundo e mostrar ao pai que ele é alguém, não um mero bastardo; e é a honra que faz Martin criar um dos personagens mais queridos da saga — e que deixamos por último para que você perceba a complexidade da história a ser narrada —, a princesa Daenerys Targeryan, filha de Aegon, o rei deposto por Baratheon, e que, ao descobrir os seus poderes sobrenaturais para dominar três dragões mágicos que ninguém mais supunha existir, pretende voltar para King’s Landing e recuperar o trono saqueado.

Assim como Jon Snow, que simboliza o gelo, Daenerys é o fogo que pode salvar Westeros da ameaça iminente dos White Walkers. Mas, no emaranhado das lutas pelo poder que afetam essa sociedade como um todo, indo do mais reles serviçal até o cortesão da elite, Martin parece mais interessado em mostrar como a honra é usada, abusada e pervertida para os propósitos de cada personagem. E aqui podemos recapturar o elo que o liga a Tolkien, que também falava sobre a honra no seu “crepúsculo dos deuses” da Terra Média — mas a tinha subordinada a outro fator, relacionando-a ora com o problema do Mal, ora com o drama da redenção. Eis o problema com a saga de Martin: ele acredita na honra pela honra — e nada mais. O mundo de A song of ice and fire namora com o niilismo, mas também não o abraça por completo — o que indica que, ao querer controlar o seu mundo em todos os detalhes, Martin se deixa contaminar pelo mesmo desejo de poder que está a descrever e se acovarda diante dos temas realmente importantes que deveria abordar.

Na hora de adaptar essas nuances para a televisão, David Benioff e Dan Weiss decidiram transformar o mundo de fantasia mortal de Martin em uma espécie de variação da tragédia grega — na mesma vertente que Benioff fez com Homero ao escrever o roteiro de Troia. Dessa maneira, o que antes era uma reflexão pretensiosa sobre a honra tornou-se um veículo divertido repleto de peitos e bundas, espadas com vísceras e dragões surgindo no meio das cenas como se fossem novos deus ex machina. O épico trágico de Homero ainda tem alguma eficácia no cinema, por mais equivocada que possa ser a sua transposição para a tela, porque o poeta grego foi o primeiro a fazer aquilo que depois William Faulkner faria em seus romances: deixou o seu mundo se abrir a uma realidade que está além dos meios humanos e que, no fim, percebemos que era uma guerra entre os homens e os deuses. Mas, pelo menos neste caso, podíamos nos relacionar com esses últimos — até pela simples razão de que, ao cabo, esses mesmos deuses sempre quiseram nos amparar.

Não há nada disso, nem nos livros de Martin, muito menos na série de Benioff e Weiss. A tragédia parece ser gratuita porque qualquer amostra de amparo divino não passa de efeito especial, a magia é um recurso audiovisual semelhante a um videogame e a sensação de inevitabilidade torna-se um rufar de tambores sinistros que deturpa a educação sentimental do leitor e do espectador, deixando-o, na verdade, para ver o nosso mundo pelo prisma da perspectiva satânica.

Esta última afirmação não é um exagero. A prova disso é o fato de que, nem Martin, muito menos Benioff e Weiss, sabem como terminarão a saga que escolheram narrar — o que provoca apreensão nos fãs mais exaltados. No caso do primeiro, fica nítido que, depois de três romances perfeitos (A game of thrones, A clash of kings [1998] e A storm of swords [2000]), a partir do quarto volume do ciclo — A feast for crows [Um festim para os corvos, 2005] —, de que ele simplesmente se deixou perder nas várias histórias do seu cosmos particular; e no volume seguinte, A dance of dragons [Uma dança para os dragões, 2011], que deveria se passar ao mesmo tempo do livro anterior, é mais do que evidente que o próprio Martin não sabe mais o que fazer — e que o melhor, talvez, era ter um editor que cortasse a maioria das descrições inúteis, dos diálogos inchados e das cenas que estão ali muito mais pela indulgência do autor do que pela função de fazer a trama avançar.

Já no caso dos dois roteiristas, mesmo com as mudanças radicais que fizeram para manter a fidelidade ao espírito do texto (ou talvez por isso mesmo), eles chegaram agora a um impasse que atormenta ninguém menos que o próprio Martin: a partir da sexta temporada, a série ultrapassou os eventos dos livros, e agora tanto o escritor como os seus adaptadores são vítimas da instabilidade que tanto endeusaram. Ou seja, ninguém sabe o que acontecerá porque ninguém tem a mínima ideia de como terminará o ciclo A song of ice and fire.

Isso pode parecer divertido para uma campanha de marketing, mas guarda um segredo mais sinistro, que nem o próprio Martin consiga perceber — e daí vem a sua paralisia para escrever os volumes finais da saga. Talvez a chave para perceber definitivamente esta confusão de sensibilidade satânica (em que a inversão de princípios parece ser a norma) se encontre na personagem Daenerys Targeryan. Ao ser a escolhida para dominar os dragões mágicos, que faziam parte de um passado que muitos acreditavam não existir mais em Westeros, ela parece ser a salvadora do reino, mas Martin parece não entender que, no fundo, Daenerys será também a destruidora definitiva do mundo que criou no papel.

 

Reviravolta de sensibilidades
Em um livro instigante chamado A landscape with dragons [Uma paisagem com dragões], o escritor canadense Michael D. O’Brien (autor do formidável Padre Elias) argumenta que os livros de fantasia mais famosos do século 20, principalmente os que foram escritos por Tolkien e C. S. Lewis, passaram a sofrer de uma reviravolta de sensibilidades, pervertendo assim a educação sentimental das crianças e dos jovens, que formavam o seu caráter ao lerem, no passado, histórias infantojuvenis tradicionais. Para ele, o símbolo principal dessa transformação é justamente o dragão. Antes, este era reconhecido como a representação do Mal, do demônio, que deveria ser destruído, por exemplo, pela espada de São Jorge; agora, com as narrativas da modernidade, o dragão foi inserido como uma força sobrenatural que tem suas vantagens de aperfeiçoar a humanidade — algo que ocorre, em menor grau, nos épicos de fantasia de Tolkien e Lewis, mas que depois é contrabalanceado por uma profunda busca pela transcendência. O’Brien garante que isso foi o que destruiu a sensibilidade moral das gerações mais recentes, ao inculcar um relativismo metafísico em que o Mal fica embaralhado com o Bem objetivo, e Deus passa a ser tratado como se fosse um apêndice do Diabo.

Quando George R. R. Martin coloca uma princesa injustiçada, com três dragões a tiracolo, para ser a verdadeira heroína da sua saga, é provável que ele mal saiba que foi uma das vítimas dessa armadilha artística diagnosticada por O’Brien. E eis aqui a razão principal do seu impasse: ele não sabe mais contar a sua história porque foi destruído pela sensibilidade satânica que ajudou a promover inconscientemente em seus livros. Por consequência, Benioff e Weiss também foram ao fundo do mesmo poço — e o que sobrou foi um mundo fora do prumo onde a honra não vale nada porque a abertura para a transcendência tornou-se um bibelô de antiquário e a preocupação pelo problema do Mal virou uma abstração com efeitos arrasadores na nossa imaginação.

O resultado foi a encruzilhada atual na arte de contar histórias, uma encruzilhada que já tinha sido percebida na “corrosão do caráter” dramatizada em Breaking bad, de Vince Gilligan e antecipada nas séries de David Chase, David Milch, David Simon e Matthew Weiner. Ao seguirem essa mesma corrente, Martin, Benioff e Weiss fracassaram em sua ambição de criar um cosmos particular porque eles deixaram os dragões tomarem conta da honra solitária que tanto defenderam. O que sobrou agora é apenas o sucesso comercial garantido — e, para nós, uma expectativa boba de finalmente sabermos quem foi a mãe de Jon Snow. É muito pouco para quem queria ser nada mais nada menos que o deus do seu próprio mundo.

NOTA
Este é o quinto texto de uma sequencia de seis ensaios que abordará como o sucesso das grandes séries da televisão americana está relacionado ao uso da literatura na criação dos seus enredos e de seus episódios. Em julho, texto sobre True detective, de Nic Pizzolato.

Martim Vasques da Cunha

Martim Vasques da Cunha é escritor, jornalista, doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade de São Paulo, autor de Crise e utopia: O dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e de A poeira da glória – uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record).

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