Uma frase de efeito que recentemente correu pela internet evidencia a estranheza inerente ao ato de leitura, naturalizada pelos milênios de prática: alguns humanos têm o estranho hábito de passar horas e horas olhando para marquinhas de tinta impressas em papel, alucinando vividamente. Outra formulação coloca que o cachorro de um leitor deve achar que seu dono deve ter um fascínio bizarro por papel manchado, mas que gosta de passar o papel de maneira bem devagar.
Cabe ao responsável pelas alucinações, o ficcionista, construir seu mundo com cuidado, desenvolver os personagens com profundidade sutil, os acontecimentos com verossimilhança cuidadosa, o mundo circundante com detalhes convincentes, para que o leitor se disponha a gastar horas de sua vida alucinando com aquele autor, ser propositadamente iludido, em vez de, por exemplo, ir dar uma caminhada no parque pra cuidar da saúde e ver passarinho, ou fazer um MBA e tentar ganhar mais dinheiro, comprar um carrão.
É mais ou menos esse o memorando que é entregue a qualquer um que, para seu próprio imenso azar, venha a decidir virar ficcionista.
Donald Barthelme recebeu o memorando, leu, enchendo as margens de desenhozinhos entediados enquanto lia, e com poucas dobras fez do papel um aviãozinho que ao ser arremessado percorreu um voo que parecia impossível. Não se deixou ludibriar. Não que tomasse tudo como método ultrapassado: o que lhe desagradava era a suposta obrigatoriedade do procedimento.
Não que tenha sido ele o primeiro a ignorar ao natural chamado da “naturalidade literária”. Entre os papéis que sobreviveram à tuberculose de Kafka estava sua cópia do memorando, texto original quase ilegível embaixo das marcas de carimbo de diferentes repartições públicas; foi o único papel que Max Brod, seu amigo traíra, queimou. O de Joyce virou um origami gigante que parecia exigir mais papel do que tinha sido fornecido, mas percebiam-se trechos das diretrizes em toda superfície inspecionada (teria ele xerocado e feito aquilo com várias cópias?). O de Beckett, o envelope voltou ao remetente, lacrado: ao ser aberto, viram que o papel havia desaparecido, como se nunca tivesse existido.
Barthelme decide que botar um pé na frente do outro pode não ser a maneira mais interessante de ir de um lugar a outro, e a linha reta também nem sempre vai ser o melhor caminho entre dois pontos.
Precursor
Samuel Beckett, paralisado ante as conquistas estéticas do gigante literário que lhe servia de inspiração e tormento, resolveu o principal impasse produtivo de qualquer artista (“o que devo fazer?”) de uma maneira passível a ser resumida numa operação aritmética:
Eu percebi que Joyce tinha ido o mais longe possível na direção de saber mais, de ter controle sobre seu próprio material. Ele sempre acrescentava mais; você só precisa olhar os rascunhos para ver isso. Eu percebi que meu próprio caminho era do empobrecimento, na falta de conhecimento e em retirar, subtrair em vez de acrescentar.
O leitor recém-desorientado (ou reorientado) pelo caleidoscópio multilíngue de Finnegans Wake (composição que contou com o apoio de secretário/assistente de Beckett) certamente haveria de conhecer poucas obras de contraste maior do que os romances Molloy, Malone morre e o Inominável, com suas figuras de pobreza e ignorância e estupidez que transcendem qualquer possibilidade real, aniquilam qualquer metafísica. O primeiro irlandês construía edifícios impossíveis, e o seguinte cavava em busca não de quaisquer fósseis de origem, e sim do maior vazio possível, em textos cada vez mais diminutos.
Não é a toa que muitos críticos tomam sua despojada obra como uma espécie de rua-sem-saída da estética literária ocidental, impossibilitada de seguir como antes num ímpeto de unidade e culminação cada vez mais grandiosa de certo “espírito humano”; um homem comum que entre outras incríveis aventuras comprava sabonete em uma metrópole periférica antes se irmanava de Homero e toda a tradição cultural do ocidente, seu dia em seiscentas páginas, agora chupava pedras em detalhados esquemas de armazenamento nos bolsos de seu casaco, ou passava a narrativa inteira confinado a uma cama criando histórias reconhecidamente inconvincentes, ou sequer parecia dotado de materialidade física.
Método narrativo radical
O leitor compreensivelmente perplexo com a leitura de O pai morto, de Donald Barthelme, pode buscar início de compreensão na afirmativa do escritor americano de que ele escreve do jeito que escreve porque Samuel Beckett já escreveu da maneira como escreveu. Após o esvaziamento completo feito por Beckett, operado para além de um remanescer de ossos, é como se sobrassem a Barthelme apenas objetos ocos com os quais trabalhar, e ele tivesse partido, paradoxalmente, para a operação multiplicativa: ao tratar do tema central do romance, o peso da autoridade paterna, não há delineamento de atitudes opressivas por parte de um personagem-pai humanamente construído, nem subjetividades presas sob a sombra de antecessores inalcançáveis, ou mesmo por xingamentos isolados que, de forma minimalista, evidenciariam a relação problemática.
Há em seu lugar o manuseio dos conceitos que, na objetificação verbal cuidadosamente composta pelo autor, dançam de maneira completamente descabida, ocasionalmente incompreensível, frequentemente hilariantes. Não cabe descrever como lúdico, pois não há leviandade ou aparência de aspecto intercambiável nas abstrações trabalhadas. Os eventuais impactos certeiros desses objetos ocos ressoam no cérebro em alucinação inédita com potência nova, inovadora, inacessível à prosa realista.
Aproveitando outra vez do recurso da metáfora: se na corrida-que-é-a-vida Joyce faz o ser humano ir até a lua caminhando e Beckett tira os braços e pernas dos corredores (que pelo menos não se importam se aparece ou não alguém para empurrá-los), Barthelme decide que botar um pé na frente do outro pode não ser a maneira mais interessante de ir de um lugar a outro, e a linha reta também nem sempre vai ser o melhor caminho entre dois pontos.
E se todos os possíveis pontos de referência necessários para definir movimento estão indo na mesma direção, na mesma velocidade?
A publicação da excelente tradução de O pai morto, de Daniel Pellizzari, disponibiliza ao leitor brasileiro a radicalização narrativa feita por Barthelme, que a cada peça literária nova esvaziava a tábula de possibilidades para além do que anteriormente se imaginava como factível, dobrando o corpo dos sentidos do texto em ângulos novos, bizarros, como se alargasse mesmo a realidade.