Que toda atividade cultural está inserida em um contexto social, isso todos nós sabemos. Por que, então, não costumamos nos perguntar qual é a função social das editoras? Como elo essencial da cadeia que culmina na prática de leitura, as editoras têm sim uma função que vai além da produção dos livros. E, pensando sobre isso, podemos avaliar as práticas de cada editora inseridas em uma dimensão mais ampla.
Primeiro, vamos situar o lugar onde estamos: nós temos uma editora de livros infantis digitais. E deste lugar de fala de quem produz conteúdo literário para crianças, temos sempre que refletir sobre quem são os leitores dos nossos livros. São crianças, sim. Mas pensar em uma pessoa de três anos de idade é bem diferente de pensar em uma de doze. De qualquer maneira, como diz Peter Hunt em seu livro Crítica, teoria e literatura infantil, “[abordar a questão da literatura infantil e da criança] trata de um enfrentamento do problema de articular as respostas e os processos receptivos de leitores que não são nossos pares, em termo de experiência e conhecimento”. Diante de crianças e de práticas de leitura, começamos a refletir sobre o papel social de quem produz livros, em uma reflexão também autoavaliativa.
As editoras materializam os livros. Mesmo no caso dos livros digitais, que não se tornam um objeto como ocorre com os impressos, eles são materializados na medida em que há todo um processo de produção que envolve pensar em diversos aspectos e, partindo de um texto e de algumas ilustrações, que no geral vêm de traços de lápis no papel, chega-se a um livro. Disso decorre que a tão falada cultura letrada passa, em seus estágios iniciais, pelas editoras. E segue por vários caminhos até que os livros cheguem aos leitores.
Um destes caminhos passa pelas bibliotecas, instituições que estão vivendo alterações muito interessantes e que vamos tomar como ponto de partida para a nossa reflexão.
Novas bibliotecas, novos leitores
O papel das bibliotecas mudou com o passar dos anos e um conceito que vem sendo parte essencial das discussões que encaminham estas mudanças é o de information literacy, ou, em bom português, competência informacional, conceito trabalhado desde 1974 e que se refere a saber interligar as informações. De forma mais completa, de acordo com a Unesco,
a competência informacional envolve a habilidade de identificar, localizar, avaliar e organizar um conhecimento de que se tenha necessidade, para criar, usar e comunicar a informação necessária quando ela for útil. É um pré-requisito para participar efetivamente da chamada Sociedade da Informação e faz parte dos direitos humanos básicos, com desenvolvimento da habilidade ao longo de toda a vida. O desenvolvimento desta habilidade reduz a desigualdade social, inclusive a desigualdade entre os países, bem como aprimora a tolerância por facilitar o mútuo entendimento em contextos multiculturais, que envolvem diversas línguas.
Esta sempre foi uma habilidade fundamental, mas vale entender como chegamos nesse momento em que tal competência passou a ser tão estudada. Em um evento sobre os desafios das bibliotecas no século 21, que aconteceu em setembro do ano passado, em São Paulo, o professor Giovanni Solimine retratou o cenário italiano e dividiu a história das bibliotecas em algumas fases:
A primeira, na década de 1980, com bibliotecas focadas em documentos e uma biblioteconomia centrada na catalogação e na preservação como principais funções. O catálogo representava o eixo de todas as atividades.
A segunda, durante a década de 1990, apresentou a transição da gestão de documentos para a gestão de serviços, com um maior enfoque no estudo, por conta do forte processo de escolarização em massa pelo qual o país havia passado. Isso fez com que o perfil de frequentadores das bibliotecas mudasse: em vez de eruditos, elas passaram a ser frequentadas por pessoas mais simples, que agora tinham acesso a formação. Junto com essa mudança de perfil, veio também a mudança de mentalidade, que deu início à biblioteconomia gestacional, que agregava às suas funções o gerenciamento e o marketing, mantendo atenção ao uso racional de recursos para satisfazer os usuários.
A terceira fase se iniciou no começo dos anos 2000. Ela trouxe o estudo dos problemas gestacionais vivenciados na fase anterior e tornou necessária uma nova mudança para se poder interagir com as novas tecnologias digitais, já que esta traz consigo outros desafios. Nessa fase, saber quem frequenta a biblioteca, quantos são os usuários, o que os satisfaz, quais serviços funcionam melhor ou pior não é suficiente: é preciso descobrir o impacto da biblioteca na sociedade, como ela ajuda a melhorar a qualidade de vida em determinado local.
O assunto passou a ser o ser humano. Essa nova fase é chamada de biblioteconomia social: o foco deixou de estar no livro e passou para as pessoas, os facilitadores que podem ajudar nesse processo de transformação, e é uma tendência mundial não só na área da biblioteconomia, mas em todo o universo da informação.
Em uma sociedade hiperconectada, em que a tecnologia de rede se amplia e a formação à distância se torna cada vez mais usual, foi preciso achar um rumo para as bibliotecas, no qual o bibliotecário passe a ser também agente dessa mudança, trabalhando em conjunto com o educador, pois com o acesso fácil à informação que a internet traz, inclusive a comunidades mais carentes, obtém-se muita informação fragmentada e fica difícil diferenciá-la de informações contextualizadas.
E é justamente nestas informações fragmentadas, que a nova geração vem recebendo via internet, que reside a esperança do historiador Roger Chartier. No Encontro de Promotores de Leitura da Feira Internacional do Livro de Guadalajara, no final de 2015, ele considerou que foi por meio de informações fragmentadas que a humanidade construiu o conhecimento de todas as áreas de estudo. Juntando um tanto de informações daqui e dali, experimentando ligações e interconexões que vinham de diversos cantos é que se chegou aos conceitos científicos mais importantes que temos hoje.
A prática de leitura que visa uma construção do conhecimento diz respeito muito mais a um experimento do que a uma experiência. A leitura literária é que traz experiências, que trabalha com as emoções e com as vidas dos leitores. O que Chartier conclui disso é que a maior alteração na prática de leitura que o ambiente digital vem proporcionando é que a leitura, mesmo literária, a partir desta geração de nativos digitais, passará a ser uma leitura como experimento, como pesquisa. Será por meio das leituras fragmentadas que as crianças conseguirão chegar à leitura longa, profunda e densa. E com isso, ele afirma que as novas práticas de leitura buscarão cada vez mais os conceitos.
Uma nova cultura está sendo construída, ele disse: a cultura das crianças que partem dos textos com hiperlinks para os textos lineares e que, por isso, obrigam a nós, adultos, a termos em mente a manutenção e a melhor definição do conceito de produção literária quando formos produzir livros para as crianças. Ou, nas palavras de Solimine:
Na era digital, o livro e a leitura precisam continuar exercendo seu importante papel de formação. O livro, como texto não breve e não fragmentado, com argumentação, premissa e conclusão, é uma forma de fazer o nosso cérebro se exercitar por apresentar um caráter de complexidade.
No entanto, a competência informacional não se desenvolve individual e solitariamente e é por isso que a mediação exerce um papel fundamental ao ensinar a pensar, ao permitir a construção de um novo saber. Este é o desafio: como ser um mediador que incentiva a capacitação em um mundo de informações tão fragmentadas?
E as dificuldades para isso não são só em terras brasileiras: “Na Itália, a biblioteconomia fica fora das ciências sociais, e isso dificulta tudo. Antes, as bibliotecas não tinham concorrentes, havia apenas bibliotecas, que ofereciam livros gratuitamente, e livrarias, que os ofereciam mediante pagamento. Hoje, com a disponibilidade da rede, uma busca na internet é instintivamente a primeira coisa que fazemos quando precisamos de alguma informação. Isso mudou radicalmente a posição das bibliotecas. Elas não podem mais ser apenas um ponto de acesso à informação, precisam ser um ponto de construção que segue a partir de onde a internet termina”, disse Solimine.
Ele ainda destacou que a formação técnica faz com que a competência profissional envelheça e, exatamente por isso, a pessoa se torna resistente às mudanças, pois essas colocam seu profissionalismo em dúvida. Uma formação assim prevê um mundo que não se modifica, onde a realidade segue sempre a mesma e, portanto, é preciso fazer sempre as mesmas coisas.
A prática de leitura que visa uma construção do conhecimento diz respeito muito mais a um experimento do que a uma experiência. A leitura literária é que traz experiências, que trabalha com as emoções e com as vidas dos leitores.
Os caminhos dos livros
E é aqui que voltamos às editoras. Quando Giovanni Solimine fala sobre o medo do novo, a insegurança em abraçar a novidade por ver seu profissionalismo em dúvida, automaticamente escutamos muitos profissionais do mercado editorial (por mais que, atualmente, em menor número) que ainda dizem que as evoluções digitais vão acabar com suas funções. Se o papel da biblioteconomia se tornou mais humano e o impacto social se tornou seu maior desafio, onde foi que as editoras perderam o bonde?
Numa sociedade inundada por informações fragmentadas, o papel de curadores de informação, de mediadores, torna-se ainda mais importante. O argentino Daniel Benchimol, também na Feira do Livro de Guadalajara, disse:
O mercado editorial é muito antigo e tradicional, existe há séculos, e os editores não estão felizes com as mudanças que o cenário digital vem provocando na indústria. Eles sabiam como fazer todo o processo e, se as editoras sempre foram as responsáveis pela produção de conteúdos, se é disso que se trata o trabalho editorial, é muito importante que, nesta mudança, elas sejam as protagonistas.
Sabemos que é possível a autopublicação, claro, mas é muito saudável uma discussão entre autor e editor para que as ideias presentes no texto e sua estética sejam passadas ao leitor da melhor maneira possível.
No entanto, não basta o acesso à rede e a toda esta cultura se a capacidade de compreender o que se lê e de relacionar as informações não estiver bem formada. Um estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) avaliou a habilidade das crianças em compreender leituras na internet e teve resultado semelhante ao do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), também da OCDE: os brasileiros estão entre os últimos no ranking. E aí voltamos ao ponto essencial de quando pensamos em crianças: formação de leitores.
No caso de livros, especificamente, sendo o Brasil tão grande como é, a questão da distribuição é sempre um assunto sério. Mas algumas iniciativas de montagem e organização de bibliotecas coletivas em bairros ou cidades afastadas das regiões centrais são muito bem sucedidas, o que só demonstra que, de fato, a ideia de que as pessoas não gostam de ler pode ser confrontada diretamente com a de que as pessoas não têm acesso a livros, o que muda absolutamente a perspectiva.
Já estamos falando de editoras, mas os nossos pontos comparativos foram iniciativas de bibliotecas. E onde estão as editoras em tais ações? Como disse Gilles Colleu, no 7º Colóquio de Conteúdos Digitais em Bibliotecas, “seria ótimo vender livros, mas melhor ainda seria ter leitores“. E o que parece é que as editoras, especialmente de livros infantis, esqueceram-se de tal função.
Algumas políticas públicas que visam reduzir o atraso escolar enfrentado por crianças que não aprenderam a ler “na idade certa” (como o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, por exemplo) se concentram apenas nas escolas quando seria muito interessante — e provavelmente com resultados muito mais expressivos — se fossem expandidas para a difusão do acesso aos livros. Entendemos que políticas públicas e ações culturais podem ser organizadas por diversas frentes e nos impressiona que num edital de seleção de ações de estímulo à leitura em bibliotecas do Estado de São Paulo[1], por exemplo, tenhamos 63 projetos habilitados, em sua maioria propostos por grupos de teatro. Ao mesmo tempo, quando um programa como o Programa Nacional de Bibliotecas Escolares (PNBE) é cancelado, chovem argumentos de que as crianças serão as reais perdedoras. Incoerente, não?
Quando realizamos eventos literários e levamos nossos livros com a intenção de observar a relação das crianças e avaliar a nossa produção, percebemos que também é nossa responsabilidade trabalhar sobre a ideia de difusão da cultura de leitura digital, para que estes dispositivos não sejam usados apenas para acessar redes sociais e jogos. A música é uma forma de cultura que está muito difundida no formato digital, por que não difundir a leitura também? Uma iniciativa muito bacana é a do World Reader Project, que busca levar livros gratuitamente, por meio do suporte digital, a locais onde os livros impressos não chegam. Claro que, para editoras, disponibilizar cópias gratuitas (digitais ou impressas) depende dos termos do contrato com autor e ilustrador, mas ações de incentivo à leitura, em livros impressos ou digitais, não dependem.
Já que chegamos especificamente ao ponto das ações de incentivo, vale lembrar que um dos motivos de os leitores brasileiros não serem tão ávidos e vorazes como gostaríamos, enquanto nação, além da dificuldade de acesso aos livros, é o fato de a nossa cultura ser oral. O valor cultural da oralidade, aqui, é maior que o do letramento. E isso não é um problema enquanto valor cultural — de fato, é uma herança da nossa história —, mas é, sim, um problema social. Não só porque em todo o mundo há uma relação direta entre poder, escrita e leitura, mas também porque uma pessoa que não saiba ler uma bula de remédio, um manual de instruções, entre inúmeras outras coisas, passa por dificuldades que poderiam ser sanadas com maior capacidade de compreensão do lido, capacidade esta que é gerada a partir do desenvolvimento do hábito leitor e da competência informacional.
A contação de histórias, base de diversas ações de incentivo à leitura (e que nós achamos um recurso fantástico, que fique claro!), é o que senão a oralização dos livros? O que percebemos é como é comum que, em vez dos eventos literários voltados para crianças aumentarem o acesso aos livros, eles mantenham a cultura oral em detrimento da letrada. E nos perguntamos: como incentivar a cultura letrada com eventos de cunho oral? Não basta que estes eventos aconteçam em bibliotecas; não basta que as crianças estejam em um local onde haja livros, é preciso que elas aprendam que ali, naquela produção literária, há uma possibilidade de prazer, sendo necessária apenas a concentração e a capacidade de leitura. E tanto um como outro são passíveis de aprendizado.
Em ações de incentivo à leitura nos parece normal que grupos de teatro deem maior valor à cultura oral, mas quem fará o mesmo com a cultura letrada? Apenas as escolas? Isso significa que para incentivar a aproximação das crianças com os livros, além da contação de histórias, seria recomendável que os eventos trabalhassem o contato da própria criança com o livro escrito, pois simplesmente estar presentes em um local com livros não fará com que elas aprendam a ler e a gostar da leitura.
A função social das editoras está em ampliar o acesso aos livros, em estimular a cultura letrada, em incentivar a leitura, em participar da mediação cultural. Mas é lógico que ninguém trabalha sozinho, isso é papel de editores tanto quanto é papel de professores, de bibliotecários, de distribuidores, de todos que participam deste caminho que o livro percorre até chegar às mãos do leitor. Afinal, as bibliotecas passaram a gerir o aspecto humano e não só o dos acervos em seus espaços, o que envolve, inclusive, avaliar o perfil de seus frequentadores e perceber a demanda deles, certo? Qual é o papel das editoras, então, diante de uma mudança perspectiva como estas, senão este mesmo de articular o aspecto humano à produção editorial?
Enfim, se é direito das pessoas ter acesso aos livros, é dever dos profissionais do livro — tanto quanto dos da educação — fazer valer este direito. E, aqui, estamos nos referindo tanto a iniciativas públicas quanto privadas, podemos pegar como exemplo as iniciativas do argentino Bóris Spivacow, editor inventivo e militante pela variedade de espaços em que os livros poderiam ser inseridos. A metodologia, para tanto, só pode ser desenvolvida pelas editoras, de acordo com as necessidades dos editores e de seus leitores, assim como acontece com as bibliotecas — ainda que várias editoras possam, sim, utilizar uma mesma metodologia. Produzir livros obviamente também é função das editoras, mas esta é a função cultural e, aí, é outra história.
Nota
[1] Estamos nos referindo ao Edital “Concurso de Apoio a Projetos de Estímulo à Leitura em Bibliotecas Municipais do Estado de São Paulo”. A lista de inscritos pode ser encontrada no seguinte link: http://www.cultura.sp.gov.br/StaticFiles/SEC/edital/36_2015_lista.pdf