A musa nebulosa

Em "Clio", o leitor vislumbra uma poesia de paisagem, em que as descrições emergem como estratégia fulgurante de linguagem
Marco Lucchesi, autor de “Clio”
17/02/2016

Marco Lucchesi é um artista polígrafo e de livre trânsito por inúmeras culturas, lastreado no conhecimento profundo dos idiomas — entre vivos e esquecidos — que as veiculam. Nome cardeal em nossos estudos sobre Dante, ainda é tradutor de um Vico ou, contemporaneamente, de Umberto Eco, mantendo de ambos o sopro forte e límpido que almejaram em suas escrituras. E ao crítico e ensaísta de Sorriso do caos — atento às produções de larga variedade estilística e com rara precisão judicativa — vem somar-se o professor de letras que, mais do que um saber (esse já superlativo), transmite a paixão de viver a literatura.

É sabido o quanto Clio, musa da memória, logo se torna, por contágio, o símbolo do ofício dos historiadores. “A história é a poesia em escala mais ampla”, dizia Jacob Burckhardt, e, tomando a frase por epígrafe de seu novo livro de poemas, Lucchesi reata esses laços antigos, os quais a palavra “mito” vem acusar. É com o nome da musa que o poeta dará título a essa coletânea de sessenta e um poemas — unidade tripartida —, com o prefácio interpretativo de Alfredo Bosi.

Aqui vislumbramos uma poesia de paisagem, em que as descrições emergem como estratégia fulgurante de linguagem. Mas não é a pintura uma finalidade do texto, senão um elemento analógico para se falar do humano. É o que observamos em Deli: “Vermelho fim de ocaso/ o sol pôs-se a brilhar sobre a cidade antiga/ Havia apenas flores mortas/ nas ruas inquietas de teu coração”. A interlocução amorosa ocorre de modo indireto, mediada por uma geografia erotizada. Os textos se elaboram em sintaxe elíptica, por fendas; o vínculo em lacunas gera imprecisão semântica, mas os textos não deslizam para o hermetismo, já que os termos implícitos se oferecem com baixa resistência.

O pórtico do livro, Prólogo febril, apresenta-se como prelúdio em alta temperatura, elevada voltagem que a luxúria desperta, e o poema inicial já revela o teor da ressignificância de Lucchesi. Índias, com efeito, guarda a evocação épica das trilhas lusitanas que resultaram, a crer em certo ponto de vista, num desvio do destino-título que possibilitou a “visão do paraíso”, o vislumbre do corpo amado: “As praias livres de Coromandel./ E de repente/ Começo a perder-me no golfo sinuoso/ de teus seios, Déli: sublime/ selvagem”. Embora os dados geográficos nos levem a assimilar os versos como erotização do espaço, a existência virtual de alguma Déli menos de terra que de carne põe o trecho em suspensão ambígua. Em sua abertura, portanto, o livro já traz o propósito: dando à poesia os temas históricos, inverte os sinais e sublima cronotopos numa sedução verbal. Obra que traz o desejo como elemento nuclear, propõe em alguns momentos que um eros sábio e maduro deve ser suplementado pela força da juventude (Vida). Assim é que Laura — objeto privilegiado desde Petrarca e alvo afetivo de inúmeros poemas de Lucchesi — pode receber o elogio amoroso.

Coerência
O discurso histórico, encarnado num épico moderno, repousa na seção Clio, homônima ao título da coletânea. A transfiguração da memória histórica em polissemia poética (encarnada no perfil mítico) ganha coerência com o projeto do volume. A condensação presente na lírica moderna, por exemplo, comparece com frequência na escritura de Lucchesi: “Na banda sul da linha equinocial/ cada ponto/ no mapa é síntese/ de sonho e sangue”. Os versos, dispostos ao modo mallarmaico (“Un coup de dés jamais n’abolira le hasard”), não poderiam atomizar de maneira mais contundente e eficaz toda a ação da barbárie experimentada pelo hemisfério meridional, nos processos de colonização. Sonho e sangue — dueto dissonante que habitou o pentagrama histórico de tantas nações espoliadas. Vale destacar: as claras referências ao Pessoa de Mensagem se perfazem em paródia, com os livores imperialistas superando os louvores de alguma glória.

A querência pelos meandros da História faz do eu-lírico um voyeur que, submerso em angústias, tende a vislumbrar algum horizonte amplo pelo observatório reflexivo. Aliás, a disposição concretista dos signos na página propõe um cano periscópico em “Breve longo/ raso/ fundo/ abismo/ vago/ da palavra/ mundo/ Meu pensamento/ é um porto/ de conjuras e naufrágios”. Tal silhueta verbal se reforça no ícone de um navegante a olhar pelo instrumento, na página 32. Do jogo entre o fulgor e o obscuro das águas profundas — chiaroscuro —, resulta o conflito barroco da vertigem: “No imo/ das subidas/ profundezas/ agarro-me/ aos cabelos/ dos sentidos”. E o pensamento vidente, deglutido pela confluência “redemoníaca” das sensações, faz-se caleidoscópico, inclusive na percepção da temporalidade (“o tempo é um istmo”) que desemboca num mise-en-abyme, a partir da tópica desse mesmo tempo liquefeito: “Sei que o tempo/ é um mar/ sem fundo”.

O terceiro bloco, Insônia, elabora-se, de acordo com o próprio Lucchesi, “como se fossem velhos cartões postais, que não foram levados ao correio, com algumas citações quinhentistas”. Mas se o século 16 ali está presente (Camões, Confissões), o espectro temporal das referências o extrapola para absorver, em choque térmico, a Antiguidade de Cartago e o contemporâneo GPS. Os signos da atualidade já se apresentavam ostensivamente em Hotel Adis Abeba (de Prólogo febril): ali, o automóvel ganha vida como “animal feroz e arredio” e se reveste, porventura, de metáfora do amante futuro. Nesse texto, caracteres musicais condicionam a intensidade dos versos e, à interrogação “Quanto te devo, pérfida Clio?”, apõe-se um fff a nos propor um eu-lírico embrutecido pelo desejo e que, desenhado em traço naturalista, grita em melodia forte.

Ainda em Insônia, a tônica da referida imprecisão toma lugar privilegiado, à qual o mesmo poema GPS vem ironicamente responder: “essa angústia/ de não/ saber/ me/ onde/ me/ sei”. Como pistas embaçadas, às vezes os cheiros se impõem à visão (Fragrância) e, então, flagra-se uma incerteza dos referentes: “esse esplendor/ primeiro/ essa fragrância/ antiga/ desposa-me / num sonho incandescente”. No poema Esconder, cuja carga semântica remete aos mesmos vetores de turbidez, o eu-lírico profere: “a beleza reclama/ o alvor da superfície/ ]indago/ :/ a natureza/ ama esconder-se? [”. Ao que podemos responder: ama, porque é no jogo de saliências e reentrâncias que o desejo se fabrica. Barthes: a beleza desejante não reside na explicitude nem no completo hermetismo, e sim no ponto em que o vestuário se entreabre (O prazer do texto).

Enfim, o que entrevemos recursivamente em Clio é essa Espessura, “a selva/ espessa/ do indeterminado/ tangida/ de secretas/ harmonias”, uma escritura que compõe “um todo fluido e vaporoso”, para usarmos a feliz expressão de Mariana Ianelli, a respeito de Lucchesi. Proposta na aglutinação fanopaica dos haicais, essa nebulosa é típica das navegações e pede que o leitor habite orbitais para tangenciar sentidos — analogia quântica materializada magistralmente em Incerteza: “essa nuvem/ escura/ densa e difusa” — polissemia fértil do contemporâneo.

Clio
Marco Lucchesi
Biblioteca Azul
92 págs.
Marco Lucchesi
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1963. É poeta, romancista, tradutor, crítico literário e professor de literatura da UFRJ. Ocupante da cadeira 15 da Academia Brasileira de Letras, escreveu, dentre outras obras, Os olhos do deserto, Sphera, O dom do crime e Nove cartas sobre a Divina Comédia.
Peron Rios

É mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco e doutorando em Literaturas Africanas pela Universidade de Lisboa e pela Université Paris III – Sorbonne Nouvelle. Autor do livro A Viagem Infinita: estudos sobre ‘Terra Sonâmbula’, de Mia Couto, é professor de Literatura do Colégio de Aplicação da UFPE.

Rascunho