Meu irmão é adotado, mas não posso e não quero dizer que meu irmão é adotado.
Este é o arrebatador início do romance A resistência, de Julián Fuks. Não porque prometa narrar as eventuais dores de um filho adotado ou as dificuldades da família que o adotou. Nem porque tratará também da resistência dos pais de três filhos à sangrenta ditadura argentina e do panorama da violência política que os expulsou para o exílio brasileiro.
É arrebatador porque o eu que narra, ao apresentar-se biográfico e ficcional, anuncia um inquietante pacto de ambiguidade com o leitor: vai e não vai contar a história real do irmão sob o manto da ficção; vai e não vai examinar os conflitos da vida familiar, tão irredutível a ambivalências; vai e não vai discutir no próprio livro o gênero literário a que se está dedicando.
Se às grandes obras literárias é concedido — sempre — o alto valor da ambiguidade, Julián Fuks encontra aqui um vigoroso momento de inflexão em sua carreira tão precoce. No romance anterior (Procura do romance, 2012), o escritor ainda se equilibrava entre o peso de vigorosa pesquisa acadêmica e a construção visceral da ficção. Por isso, aquele romance é aparentemente enigmático, difícil, sofrido.
Mas aqui tudo é cristalino em novo ponto de equilíbrio da frase, na firmeza aguda do vocábulo, em cada sinal de pontuação. A simplificação formal da narrativa é, assim, resultado do avanço do saber.
Penso que ingressamos no domínio da autoficção, neologismo para certo tipo de narrativa contemporânea (ainda sob muitas controvérsias teóricas e parcos estudos) em que o eu real e o eu fictício se esbarram numa escrita na qual experiência, memória, verdade e invenção se interpenetram e se confundem.
Talvez mais radical do que outros romances brasileiros vistos sob tal designação teórica — e que ajustaram na terceira pessoa o ousado equilíbrio entre biografia e ficção (como O filho eterno, de Cristovão Tezza) —, Julián Fuks toma outro caminho: tornará esse equilíbrio ainda mais atrevido, escolhe narrar na primeira pessoa, tradicional marca do chamado pacto autobiográfico.
Aqui o narrador Sebastián (mesmo nome dado ao narrador do romance anterior de Fuks) é e não é Julián. Aliás, o mesmo ocorre em outro admirável romance de 2014, O irmão alemão, em que “Ciccio” é e não é o próprio Chico Buarque.
Este belo (às vezes triste) romance é, claro, um veículo de resgate familiar por meio de uma construção literária minuciosa e precisa.
Disfarces da biografia
Ao tratar assim da história da família — dos pais, psiquiatras argentinos, firmados, enfim no novo país; do filho mais velho, adotado, e tão avesso à vida familiar; da irmã brasileira, cujo nascimento trouxe cidadania ao casal, o romance tratará, sem disfarce, também do caçula: o narrador, aqui nascido (neste país e nesta obra), personagem cindido também entre ser argentino e brasileiro, entre ser escritor e irmão, entre narrar pela memória ou fabular.
De temperamento sempre avesso ao piegas, o narrador, entretanto, arma-se desde o início da obra, no escudo dado pela frase exata e lógica (quase construindo silogismos):
Se digo assim, se pronuncio essa frase que por muito tempo cuidei de silenciar, reduzo meu irmão a uma condição categórica, a uma atribuição essencial: meu irmão é algo…
E tenta esquivar-se do autobiográfico e do dramático , como se quisesse, pelas reflexões semântico-estilísticas manter-se a distância segura:
Poderia empregar o verbo no passado e dizer que meu irmão foi adotado, livrando-o assim do presente eterno, da perpetuidade, mas não consigo superar a estranheza que a formulação provoca.
Ainda assim, ao eleger como protagonista o irmão (ausente em boa parte da obra), instala-se a si mesmo — na ficção e na vida — no lugar que tanto busca, o de irmão do irmão:
Meu irmão se tornou meu irmão no instante em que foi adotado, ou melhor, no instante em que eu nasci, alguns anos mais tarde.
Mais do que isso, muito mais. Saberemos ao clímax da narrativa que o texto que lemos seria, principalmente, uma demanda incisiva do primogênito atormentado, no momento em que finalmente se revela à família com fluência vigorosa e inaudita:
Vocês falam demais, vocês falam demais e não veem/ Vocês não conseguem entender como é.
É nesse momento, crucial para a narrativa (e talvez para a vida familiar) que o narrador assume a missão e a tarefa de contar como ser irmão do irmão:
…meu irmão soltou a frase que não pude esquecer, a frase que me trouxe até aqui: Sobre isso você devia escrever um dia, sobre ser adotado, alguém precisa escrever. (grifo meu).
Homenagem
Este belo (às vezes triste) romance é, claro, um veículo de resgate familiar por meio de uma construção literária minuciosa e precisa. Ocorre que é também um retrato de família, cheio de fotos e memórias. O romance instala inescapavelmente diante do leitor as modulações de uma família de cinco seres, que, tantas vezes sentados à mesa (grande metáfora da obra), discutem a vida gregária diante do chá, reafirmam sua resistência às ditaduras, à violência dos exílios e, sobretudo, tentam pôr, na cadeira que lhe cabe, aquele filho que lhes escapa pelo silêncio inacessível. Aliás, a incomunicabilidade do irmão, sempre no quarto ou na rua — do mais recôndito ao seu oposto, como diz o narrador — se constrói quase ao revés da triste vida de Gregor Samsa em A mefamorfose. Aqui o amor familiar o quer na sala, na cozinha, na vida em curso.
E todas as centenas de vezes que o narrador diz “meu irmão”, declara, no pronome possessivo, seu amor por Emi. Quando afirma sua obsessão pelas avós da Praça de Maio — que tanto buscam seus netos desaparecidos nos calabouços da ditadura —, o narrador diz a este irmão que, afinal, ele não está desaparecido, tem ele sua verdadeira e real família. Num dos momentos mais fraternais da obra, quando diz que o irmão mais velho o protegia pousando a mão aberta sobre sua nuca, como que para conduzi-lo ao caminhar, está dizendo que, se ao mais velho coube proteger, cabe hoje ao caçula resgatar tal elo através da narrativa.
A voz do pai
Curiosamente, coube ao pai do narrador a primeira crítica que retoma o umbral entre biografia e ficção. Depois de ler o manuscrito, diz o pai com certa ênfase:
O que se ganha com uma descrição tão minuciosa de velhas cicatrizes, o que se ganha com esse escrutínio público dos nossos conflitos?
…me pego a duvidar… não estou certo de que ele deveria existir.
Para depois, mais brando:
Eu sei, nós sabemos que é um livro saturado de cuidado, carregado de carinho, eu sei que a duplicidade não se restringe a nós, que o livro é duplo em cada linha. (grifo meu)
Esse pai, voz crítica modulada pela da mãe, de certa forma restaura o equilíbrio familiar, fraternal e discursivo. Num sinal claro do vigor dialético que com os filhos foi criado, conclui, para sossego dos leitores de Sebastíán/Julián:
Só não quero que você se guie pelo que digo, (…): vá em frente, Sebastián, você fez o que tinha de fazer, e até é possível que alguém leia nisto um bom romance.
Pois é. Com ou sem autobiografia, autoficção ou seus avatares, Julián Fuks nos diz sobretudo que o romance não morreu. Ele resiste, como resistem os que lutam contra as ditaduras, como os que querem pertencer e não conseguem, como a mãe que não abdicou dos filhos; como este jovem escritor, sempre resistente ao fácil e ao dócil.