Os livros e a leitura são temas atrativos para autores e para nós, leitores. São vários os exemplos de obras de ficção que abordam o tema: A casa de papel, de Carlos Maria Dominguez (já resenhado por mim aqui no Rascunho), Livro, de José Luís Peixoto ou até o infantil Livros!, de Murray McCain e John Alcorn, além de, é claro, inúmeros livros teóricos ou de não-ficção (um favorito é Lendo Lolita em Teerã, de Azar Nafisi).
O leitor do trem das 6h27, romance de estreia do francês Jean-Paul Didierlaurent, é mais uma obra que pode fisgar leitores pelo tema (e pelo título). No livro, o autor apresenta vários personagens e atos relacionados, de maneiras diferentes, com a leitura. A história é simples, mas várias situações podem soar familiares.
O protagonista é Guylain Vignolles, um homem de 36 anos que mora e trabalha em Paris. Sua ingrata função é ligar a chamada Coisa, uma máquina imensa que trata de destruir encalhes de livros (o resultado é uma massa que será usada para a produção de mais papel). Guylain sente uma certa repulsa pela profissão de destruir livros — e encontra uma espécie de redenção ao recolher páginas das obras na máquina e lê-las em voz alta no trem — sim — das 6h27, que pega todas as manhãs para ir ao trabalho. Esse hábito peculiar parece ser o seu momento de dar vida às histórias que estariam, de outra forma, completamente mortas.
Algo curioso das suas leituras é que elas são fragmentadas — são duas páginas de um livro, seguidas por outras duas páginas de outro. “O trecho de uma receita podia estar ao lado da página quarenta e oito do último vencedor do Goncourt, um parágrafo de um romance policial podia seguir-se a uma página de um livro de história”, diz o narrador. Essas transições nem sempre fazem sentido e nem sempre se completam.
Guylain é um personagem aparentemente simples, uma criatura de hábito: faz sempre as mesmas coisas, nos mesmos horários. Pega sempre o mesmo trem, reparando nas mesmas pessoas e paisagens durante o caminho, trabalha com uma rotina engessada (em parte por si mesmo), tem sempre o mesmo peixe no aquário. Mas sua rotina tem algo de Amelie Poulain, apaixonado e fixado nas pequenas coisas, e sua simplicidade pode ter um certo charme.
Porém, duas mudanças acontecem na sua vida: numa das manhãs, indo para o trabalho, é convidado por duas senhoras para ler em voz alta para idosos em um lar; além disso, encontra um pen-drive cheio de textos que vão alterar completamente seu foco e criar uma busca para a sua vida.
Homenagens à literatura
Uma característica que chama atenção na obra de Didierlaurent são as pequenas homenagens à literatura por meio de personagens e situações. Um personagem particularmente cativante é o porteiro da usina de destruição de livros, que passa o tempo com textos clássicos e, por hábito, termina por falar apenas em versos alexandrinos.
Outro personagem, ex-funcionário da usina e amigo de Guylain, sofre um acidente na Coisa e perde as pernas, que se juntam à massa de papel. Sua obsessão? Comprar todas as cópias de um livro de jardinagem impresso com o papel produzido da reciclagem do dia do acidente e, assim, recuperar suas pernas.
Outra personagem, criada de maneira muito interessante, é Julie, autora dos textos do pen-drive. Ela trabalha com limpeza em um banheiro de shopping e usa a escrita para se expressar — é sua maneira despretensiosa de lidar com o mundo. E é apenas por meio desses textos que os leitores sabem da personagem: pelo jeito que escreve sobre si mesma e pela maneira com que se representa no texto. A Julie que conhecemos é a personagem que ela criou de si mesma.
Como leitores, estão principalmente os idosos, que anseiam pelas leituras de Guylain e por ouvir novas vozes. E nesse aspecto, o autor cria diferentes reações aos textos apresentados, mostrando a polifonia presente entre os leitores. Os fragmentos recolhidos são lidos por Guylain em voz alta para os idosos, que reagem e interagem igualmente em voz alta imediatamente após à leitura do trecho — ao mesmo tempo que um fica curioso para saber o fim da história, outro odiou o assunto.
É inevitável relacionar também a usina de descarte de livros encalhados com parte do universo da literatura. Ainda que seja uma parte dolorosa para o personagem (e possivelmente para o leitor), o autor se mostra até corajoso ao escolher a usina como um dos cenários, afinal, a reciclagem das edições físicas é o que menos se almeja alcançar com um livro.
Enredo
Ainda que possa parecer algo pequeno, a descoberta do pen-drive gera uma mudança considerável tanto no enredo do livro quanto na vida do personagem principal. Inicialmente, Guylain resolve acessar os arquivos para tentar descobrir o dono do dispositivo, mas logo fica apaixonado por Julie, autora dos textos.
Nesse momento, o livro tem seu ponto de virada e Guylain parece ter um objetivo maior na vida: encontrar Julie. Ainda que a maneira com que ele a conhece — através dos textos dela, o jeito dela de se criar — esteja bastante relacionada ao mundo dos livros, O leitor do trem das 6h27 se afasta consideravelmente desse universo em sua segunda metade e se torna um romance (tipicamente francês, claro).
A narrativa de Didierlaurent é leve e simples. O resultado é um livro muito mais contemplativo que reflexivo. O narrador em terceira pessoa parece apontar para cenas e descrevê-las, sem colocar muitos detalhes ou opiniões no que vê. Também é fato que se deve considerar a brevidade do texto — 176 páginas de um livro tamanho pocket — e logo se vê que sua proposta é simplesmente narrar uma história doce com um forte apelo para o leitor.
Muitos temas e dilemas dos personagens poderiam ser abordados de maneiras mais profundas. O autor tem boas ideias, mas optou por não desenvolvê-las completamente. O leitor do trem das 6h27 é uma leitura rápida, leve e bastante acessível. Isso não resulta em um livro necessariamente desinteressante, mas pode desapontar leitores que preferem mais desenvolvimento e profundidade.