“Pra onde a gente tá indo? ”
“Olha aqui, guria: às vezes o importante não é para onde vamos, mas como e por que estamos indo. Não sei se me entende. E se tu não me encher muito o saco, comigo tu não terá do que te queixar. Pelo menos enquanto estiver ao meu lado, tomando o rumo do teu destino.”
A guria não sabe para onde vai. Pensa que sabe como, mas está enganada. Pensa que sabe por que, mas está mortalmente enganada. Porém agora é tarde, e você já embarcou nessa caminhonete com ela. Só há uma direção a seguir. Em linha reta, o mais recente romance de Tailor Diniz, conduz o leitor por uma estrada que nada tem de reta. Além dos saltos nos batimentos cardíacos, das surpresas que surgem a cada curva, há ainda a constante travessia de fronteiras, entre sonho e realidade, perigo e sensualidade, controle e desatino. Envereda por estradas escuras de memória e confusão, mas deixa-se seduzir na ilusão de descobrir o que é realidade. Ao chegar às últimas linhas do romance, percebe que a “realidade” aqui é uma questão de escolha, mas estará aliviado, como ao despertar de um pesadelo.
Tudo começa em um ambiente de normalidade possível: Sophia Antonelli, uma garota de programa, encontra-se em uma caminhonete, sendo conduzida ao homem que a contratou, o Sacerdote, por Damián, um motorista grosseiro e antiquado. Em uma narrativa linear, a personalidade de Damián e de Sophia é revelada por diálogos ágeis e irônicos.
“Como é mesmo teu nome, guria?”
Ela soltou um suspiro: “Sophia…”.
“Nome de velha, mas bonito.”
“Com ‘ph’” […] “Sophia com ‘ph’ em vez de ‘f’. Dá pra entender?”.
[…] “Tudo bem, tudo bem, entendi. E isso faz alguma diferença?”.
O motorista, bronco, fã de Roberto Carlos, demonstra alguma sofisticação ao ironizar a artificialidade da escolha pela grafia antiga, com ph no lugar do f. A garota revela, nesse diálogo, seu lado frágil, com seu mau humor mediante a chacota do motorista. Sophia leva duas vidas: uma perigosa, de garota de programa, outra conservadora, de uma jovem universitária, com namorado, família, aparelho ortodôntico. Damián é um homem solitário e violento, mas assim como Sophia, parece levar duas vidas: em casa, sua esposa e sua mãe preocupam-se muito com sua demora. Aí está um dos valores desse curto romance: os personagens são multifacetados, paradoxais, o que mantém o leitor tateando entre o estranho e o ameaçador. Tudo intensifica a tensão de fronteira, ou de duas margens de um divisor — uma linha reta.
A própria arquitetura do romance parece ter duas fases bastante diferentes entre si, com um ponto de transição bem marcado, mas há pistas na primeira daquilo que virá na segunda. A epígrafe, de Borges, sugere tratar-se de um pesadelo do qual nós, leitores, iremos participar nos papéis de teatro, espectador, ator e fábula. No primeiro parágrafo há uma cena de hospital, uma médica ou enfermeira tentando comunicar-se com um paciente que pode estar inconsciente ou até em coma. Quem ele ou ela é e como chegou a esta situação, só lendo para descobrir.
Na estrada, Damián começa uma série de agressões verbais a Sophia, carregadas de imagens sensoriais grosseiras alusivas a sangue ou sexo. Atropela e mata um animal sem piscar. Em seguida vem o primeiro de muitos clássicos sinais de mau agouro: uma ave noturna, não identificada, atravessa o caminho do carro em ziguezague. Na Antiga Grécia já acreditava-se que pássaros traziam más notícias aos vivos e às vezes até roubavam suas almas antes da hora. Após a publicação de O corvo, de Poe, a associação entre pássaros e tragédia iminente tornou-se inescapável. Com efeito, a partir desse momento no romance, o ritmo de sustos aumenta, assim como o número de detalhes arrepiantes:
Soprava uma brisa agradável, nem quente nem fria, típica de uma noite de início de outono. Ela voltou, prendendo os cabelos na nuca com uma piranha colorida. Ele trouxe para a mesa uma maleta de madeira, de onde pegou uma faca de lâmina larga, uma tábua de frios e dois pratos pequenos. Tirou uma garrafa de vinho da caixa de isopor e abriu-a com um saca-rolhas […] Ela observava-o a distância. Teve a impressão de que ele mancava com uma perna, a esquerda. Ao longe, ouviu-se o urro de um animal noturno.
O narrador eleva a temperatura com poucas frases, produto de artesania hábil na tesoura e no acabamento. Uma brisa agradável, um toque nos cabelos, e eis que surge uma faca de lâmina larga e um saca-rolhas, ambos potencialmente letais. O motorista manca, detalhe que traz a memória atávica da imagem do Diabo, que ficou manco após sua queda do céu. E para completar, ao longe, um urro noturno. O narrador coloca o leitor exatamente onde Sophia está: sozinha na mata, com um homem armado, cercada de escuridão e medo.
Para que o leitor não fique sufocado no suspense, Diniz intercala momentos de humor, seja pela conversa do motorista esquizofrênico, seja pela linguagem de Sophia. Para as perguntas vulgares de Damián, ela tem respostas rápidas, cortantes, como de uma adolescente mimada mas inteligente. Quando tem oportunidade, põe sua inteligência em prática, e assim cruza a fronteira para a segunda fase do enredo. E como boa literatura, se na primeira parte do romance a personagem fugia espontaneamente de sua vida “normal”, ao dar ouvidos a seu alarme interno, inicia a fuga de volta.
A partir daí é impossível distinguir sonho e fato na narrativa. Personagens viajam em linha reta e após algumas horas, não saíram do lugar. Sophia passa uma noite escondida na mata enquanto escuta dois homens soturnos conversando sobre Deus, uma ovelha degolada, um saco de algodão manchado de sangue, uma gaita, Piazzolla. Um deles, Martín, que toca gaita, lembra Martín Fierro, épico dos pampas argentinos, de José Hernández, até por sua linguagem permeada de castelhano. Parece livre e despreocupado. Valdirenes, o outro estranho, sente-se invadido pela presença de Martín, como se a acentuar uma fronteira entre os dois. A conversa é tão desconexa que nem Sophia nem o leitor sabem se de fato ocorreu, porém dado o cenário e a linguagem cifrada, contribui para o clima de tensão e estranhamento de fronteira.
Ao final desta viagem, Sophia chega a um local isolado no tempo e no espaço, onde a vista das janelas é um cenário sinistro, não há qualquer cheiro nem ruído, uma espécie de Truman Show de terror. Encontra-se em um ambiente de silêncio e assepsia, um misto de Inquisição, 120 dias de Sodoma e ficção científica. Há alusões a organizações religiosas fundamentalistas, a masmorras de ditaduras, e instituições governamentais, onde cada um exerce sua função, por mais degradante, sem o menor traço de humanidade. Até as cenas de sexo são narradas com distância e através de desenhos feitos por um personagem sem nome e sem rosto:
…um homem com vestes brancas, bata e calças largas, uma máscara acetinada de baile a encobrir-lhe parte do rosto, tinha diante de si um cavalete, uma pasta com folhas de desenho e, na mão direita, um lápis de croqui. […] Os croquis foram se sucedendo, como se fossem a série completa de quadros de um desenho animado, quadro por quadro, a revelar um ato sexual por inteiro…
É brilhante a forma com que Tailor Diniz recria o ambiente de um pesadelo dentro de outro. O narrador descreve a personagem através dos olhos dela, daquilo que ela vê nesses desenhos — ela mesma, mas como se não se lembrasse de ter participado dessas cenas. A epígrafe de Borges é demonstrada com precisão. Há poucas situações mais arrepiantes do que descobrir-se fotografado (ou desenhado) em atos bizarros que alguém não se lembra de haver cometido.
Na segunda parte do livro há uma rápida sucessão de micro-enredos, onde entram em cena muitos personagens, cada um com sua linguagem, ambiente, e conflitos próprios, claramente definidos. Novamente o onírico é crível, cada uma dessas “estações” faz sentido enquanto Sophia aí está, mas parecem evanescer quando ela passa à próxima. O autor conseguiu capturar aquilo que é tão difícil explicar ao se despertar de uma noite de muitos sonhos.
Contar mais iria desmanchar o prazer de sentir o medo que Diniz articulou com competência, elementos de vários gêneros literários, construídos sobre uma estrutura de thriller. Em linha reta faz referências a muitos dos romances policiais mais importantes, e como tal, consegue entreter e causar estranhamento. Para testar as hipóteses que o leitor vai tecendo para explicar o que lê é necessário que o pensamento seja mais veloz do que virar as páginas, tarefa difícil nesse page-turner.