A pornografia do horror

Como os judeus enfrentaram o silêncio pós-Holocausto por meio da utilização de recursos pornográficos na literatura
Ilustração: Theo Szczepanski
18/02/2016

Sadismo não é para ser entendido à luz da patologia sexual mas sim em relação à psicologia existencial, em que aparece como a radical negação do outro, como a negação do princípio social, assim como o princípio de realidade.
Georges Bataille

Como poderia o nazismo, que foi representado por lamentáveis, maltrapilhos e jovens puritanos, como uma espécie de solteironas vitorianas, hoje tornar-se em toda parte na França, na Alemanha, nos Estados Unidos — e em toda a literatura pornográfica, a referência absoluta de erotismo.
Michel Foucault

O cenário, a memória e a segunda geração
Em Experiência e pobreza, Walter Benjamin discute a incomunicabilidade das narrativas diante dos horrores da guerra. Em relação à Primeira Guerra Mundial, escreve: “Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos”. Dessa mesma forma voltaram, anos depois, os sobreviventes da Shoah que vivenciaram os horrores dos Campos de Extermínio e conheceram Auschwitz. Desejavam falar e contar ao mundo o que de fato tinha acontecido, mas perceberam, com muita dor e sofrimento, que só seriam capazes de testemunhar com certas limitações, como escreve, também, Giorgio Agamben:

Não enunciável, não arquivável é a língua na qual o autor consegue dar testemunho da sua incapacidade de falar. Nela coincide uma língua que sobrevive aos sujeitos que a falam com um falante que fica aquém da linguagem. É a treva obscura que Levi sentia crescer nas páginas de Celan como um ruído de fundo; é a não-língua de Hurbinek (mass-klo), que não encontra lugar nas bibliotecas do dito, nem no arquivo dos enunciados.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, uma geração de vítimas transtornadas, traumatizadas e perdidas busca por seus antigos pertences e moradas, mas os encontra em posse de outros donos. Alguns sonharam em imigrar para Palestina que estava, até então, com as fronteiras fechadas em virtude do domínio inglês. O mundo não conhecia suas histórias, seus traumas e a grande tragédia dos Campos de Extermínio e por isso os questionavam constantemente, perguntando-os se eles se deixaram abater e se teriam sido fracos, entregando-se sem lutar. A ignorância, o silêncio e o desconhecimento ainda reinavam nessa Era anterior ao testemunho.

Questões em relação aos culpados, às atrocidades e aos absurdos até então nunca vistos, mesmo em momentos de guerra, ocupavam a mente e a imaginação das pessoas que não participaram da Segunda Guerra. Diante dessas dúvidas, várias perguntas eram levantadas: Como um aglomerado gigantesco de judeus se deixou matar por um número muito menor de alemães? Os que sobreviveram foram colaboradores dos nazistas? O que foram capazes de fazer para sobreviver? Além disso, a própria figura do testemunho, do sobrevivente traumatizado e calado, passou por diversas e paradoxais mudanças: inicialmente condenada e hoje cultuada, outrora despertou o descrédito; hoje desperta a admiração e heroísmo. Como, portanto, entender esse pêndulo da memória e do testemunho e suas devidas implicações?

A criação do Estado de Israel descartou, inicialmente, a existência dos sobreviventes, já que muitos não entendiam o que de fato tinha acontecido ou simplesmente preferiam não acreditar nas evidências que começavam a surgir. Muitos relatos nos mostram que os judeus que não participaram da Shoah tachavam os judeus com tatuagens no antebraço como fracos (que tinham se deixado abater) ou como colaboracionistas do nazismo (se não, como ter sobrevivido?). O Estado de Israel deveria ser forte em sua criação e constituído de pessoas que pudessem lutar; assim imaginava Ben Gurion, e, por isso, escolheu os novos cidadãos da Terra Prometida.

Ben Gurion, primeiro-ministro de Israel, era sionista e negava a Shoah e a diáspora do povo judeu. Assim, com o intuito de criar esse Estado forte, escolheu o hebraico como língua oficial, desprezando o iídiche, e barrou a entrada de muitos sobreviventes da guerra. Os que conseguiram entrar — e foram muitos — permaneceram calados. Assim, um grande tabu e silêncio foram criados durante os primeiros anos do pós-guerra nessa sociedade conturbada e traumatizada. Porém, com a chegada de quase 70 mil sobreviventes à Palestina, entre 1945 e 1948, a discussão acerca da memória da Shoah começou a aparecer lentamente na sociedade e nas associações criadas pelos sobreviventes. O assunto, ainda velado, começou a despertar interesse e curiosidade da sociedade de uma forma geral.

A grande mudança, no entanto, em relação à memória da Shoah, ocorreu em 1961 com o julgamento de Adolf Eichmann. As testemunhas, até então caladas, foram convidadas a falar sobre o que passaram. Os jovens finalmente ouviram e começaram a acreditar no que de fato tinha acontecido e essas revelações chamaram a atenção da mídia, tanto em Israel, quanto em todo mundo. Essa catarse coletiva foi unificadora e, a partir daquele momento, Auschwitz passaria a representar um sentimento de união e vínculo judaicos, mesmo diante da enorme diversidade cultural. A mentalidade mudaria, portanto, e Auschwitz, mesmo sem ter tido uma revolta grandiosa como a do Gueto de Varsóvia, passaria a ser considerado um marco da resistência espiritual do povo judeu. Os pequenos heroísmos, como a ajuda mútua entre as pessoas que viviam nos Campos, o contrabando de comida, o toque do shofar em todo Yom Kipur, seriam também identificados como forma de resistência e não mais, somente, a luta armada, apesar de muitos autores colocarem em cheque essa questão “humanitária” em Auschwitz (caso de Ka. Tzetnik, como veremos).

Essa transformação do sobrevivente, silenciado e malvisto, em um herói que resistiu não foi simples, principalmente para a comunidade de Israel. Os filhos dessa geração, conhecidos como segunda geração de sobreviventes, cresceram com o mito Auschwitz velado. É característica da relação dos sobreviventes com seus filhos uma certa dificuldade de relacionamento, carinho, excesso de zelo e muito silêncio. Vergonha, trauma e limitação para contar o que aconteceu constituem paradigmas difíceis de serem enfrentados pelos sobreviventes. Assim, esse silêncio despertou medo, obsessão, invenção e fascínio nessa nova geração que crescia sem muito entender pelo que tinham passado seus pais:

O desejo da juventude pela verdade sobre fatos da vida que os adultos parecem sempre esconder, e a simultânea curiosidade sobre o fascínio em relação ao sexo e à violência, transformara-os em um público particularmente receptivo para as representações do que poderia ser chamado “sinceridade explícita”, ou seja, a manipulação consciente ou inconsciente de leitores e telespectadores acerca dos seus próprios medos pelo não dito, pelos seus impulsos e por suas obsessões (Omer Bartov).

Permeados por histórias, livros, relatos truncados e muitas dúvidas, a segunda geração atinge a puberdade sem compreender seus pais e Auschwitz. Eichmann então é capturado, o julgamento começa e os testemunhos finalmente passam a contar suas histórias e experiências, já que o objetivo político do julgamento de Eichmann era exatamente esse. Os testemunhos falavam catarticamente e a sociedade, assim como esses jovens da segunda geração, escutavam e fantasiavam o que tinha acontecido. Portanto, é nesse contexto conturbado, traumatizado por pais silenciados e filhos ansiosos por carinho, por entendimento e por desejo de saber, que se cria esse imaginário pornográfico na sociedade israelita. Inicialmente por meio dos Stalags — livretos de conteúdo pornográfico nazista — e da literatura de Ka. Tzetnik — sobrevivente que escreveu livros com conteúdo similar — e posteriormente pela exploração cinematográfica — nazisploitation — e artística de Boris Lurie, a fantasia pela Shoah caminhou em uma direção distinta e ainda pouco explorada.

Segundo a pesquisadora Marianne Hirsh, que vem estudando as formas de expressão da segunda geração de sobreviventes, há uma apropriação da “memória” traumática dos pais, transferida de pai para filho, e que permitiria tentar entender o que aconteceu na Shoah, mas que também seria capaz de fantasiar acontecimentos e sentimentos. Essa geração chamada de postmemory teria herdado essa memória traumática após ter recebido muitas informações documentais, históricas e testemunhais, além de ter vivido o julgamento de Eichmann. O contexto deste texto, entretanto, é distinto, já que a criação da exploração pornográfica da Shoah aconteceu em virtude ao acesso restrito às informações:

De acordo com Hirsch, postmemory é o processo pelo qual o trauma da geração anterior é mediado tardiamente por meio das narrativas e memórias do próximo. No entanto, como um espaço transgeracional de recordações ligadas especificamente ao trauma cultural ou coletivo, “seu objeto ou fonte é mediada não por meio de lembrança, mas através do envolvimento imaginativo e da criação”. Se o passado permanece na maior parte incomunicável, como no caso da segunda geração de sobreviventes do Holocausto, postmemory pode tornar-se ainda mais criativo. Os Stalags representam uma situação bastante diferente das narrativas de segunda geração. Eles não aparecem tardiamente, mas em paralelo e em alguns momentos até anterior à narrativa primária. Neste caso, a fantasia antecipa as narrativas fragmentadas dos sobreviventes. Ao invés de um produto da postmemory, a fantasia aqui é uma expressão de protomemory — um precursor da memória do Holocausto, ou melhor ainda, a sua cena primordial (PINCHEVSKY; BRAND).

A questão, portanto, que se levanta aqui, não é um problema a posteriori ou post, after, discutido por Hirsh. O ponto crucial é mostrar o problema durante a liberação das informações acerca da Shoah. Nesse período, os filhos dos sobreviventes buscavam informações para entender melhor esse assunto velado e, por isso, viveram uma dicotomia de sentimentos: se por um lado recebiam a força e a autoridade do Estado de Israel, por outro lado sentiam a ausência, viviam o trauma e a incomunicabilidade dos seus pais, esses prisioneiros do silêncio. Como essa geração entendeu (ou fantasiou) o sofrimento — Regarding the Pain of Others (Susan Sontag, 2004) — por que passaram seus pais?

Assim, uma forma de fantasiar esse “sofrimento dos outros” surgiu inicialmente em Israel por meio dos Stalags. Esses livretos apresentavam histórias com conteúdo pornográfico nazista despertando o imaginário dessa sociedade refém do silêncio; construída para ser forte e olhar só para o futuro, desprezando o seu próprio passado diaspórico e de perseguições. Além disso, Ka. Tzetnik, até então um sobrevivente desconhecido que escrevia sob esse pseudônimo, publicara livros com descrições sádicas, pornográficas e que clamavam por contar a verdade de Auschwitz.

Torna-se interessante, portanto, pensar as próprias bases da violência em qualquer sociedade, bem como os limites, tanto da violência per si, quanto dos efeitos dessas catástrofes para a humanidade e sua memória coletiva. Segundo Hannah Arendt, “nas condições do terror total, nem mesmo o medo pode aconselhar a conduta do cidadão, porque o terror escolhe as suas vítimas independentemente de ações ou pensamentos individuais”.

Esse fenômeno de enfrentar o silêncio e o tabu nazista por meio da utilização de imagens e recursos pornográficos também se estendeu para a filmografia. Seguindo essa mesma corrente de exploração sexual do conteúdo nazista, alguns cineastas italianos, no fim dos anos 1960 e no começo dos anos 1970, produziram filmes sádicos, que recontavam as histórias narradas nos Stalags e nos livros de Ka. Tzetnik. Este texto, portanto, apresenta e discute a questão da pornografia, do tabu e do sadismo encontrados nessas diversas formas de expressão. Em um contexto mais global, pretende-se refletir sobre as raízes de violências extremas, partindo de situações limítrofes; os efeitos (e causas) que tais catástrofes exercem sobre a sociedade e suas gerações futuras; como grupos e nações retrabalham episódios de crise e violência, criando e superando a própria questão da memória; e, finalmente, como entender esses traumas que também são influenciados pela mesma violência exacerbada que se perpetua, mesmo sem consciência completa dos indivíduos participantes e da sociedade.

Ilustração: Theo Szczepanski
Ilustração: Theo Szczepanski

Com a chegada de quase 70 mil sobreviventes à Palestina, entre 1945 e 1948, a discussão acerca da memória da Shoah começou a aparecer lentamente na sociedade e nas associações criadas pelos sobreviventes. O assunto, ainda velado, começou a despertar interesse e curiosidade da sociedade de uma forma geral.

Stalags
Segundo Michel Foucault (1984), a pornografia e o erotismo do Nazismo estariam presentes em todos os lugares, especialmente nos Estados Unidos, França e Alemanha. No entanto, Foucault se esqueceu de analisar (talvez por desconhecimento) a pornografia e o erotismo encontrados na série de livretos distribuídos em Israel no início dos anos 1960, conhecidos como Stalags. Os livretos chamavam a atenção especialmente pela narração de cenas de tortura, sadismo, dominação e sexo. Esses livretos apresentavam oficiais femininas da SS vestindo uniformes sensuais e explorando sexualmente soldados aliados capturados durante a guerra. Autores sugerem que a literatura foi escrita originalmente em hebraico (Pinchevski; Brand, 2007; Bartov, 1997; Libsker, 2007), porém com uso de anglicismos e personagens com nomes americanos e ingleses com o intuito de atrair maior público. A série Stalag foi um fenômeno de vendas durante os primeiros anos da década de 1960, sobretudo entre os filhos dos sobreviventes da Shoah que estavam, também, interessados nos testemunhos apresentados durante o julgamento de Eichmann.

A explicação para essa questão foge um pouco às teorias tradicionais. Foucault argumentou acerca da banalização da imagem nazista, da utilização em toda parte da figura de Hitler, da suástica e de Auschwitz, porém seu estudo foi a posteriori e estaria mais relacionado à nazisplotation. Susan Sontag discutiu, em seu famoso texto Fascinating fascism (Fascinante fascismo), o fascínio e encanto do cinema nazista, a partir da visão, sobretudo, dos filmes de Leni Riefenstahl. Para ela, a erotização e o fetiche estariam relacionados às relações de poder. O uniforme dos SS, que foi muito utilizado nos Stalags e nos filmes com conteúdo nazista pornográfico, também foi visto por Sontag como um signo erótico de poder e virilidade. Além disso, Sontag relaciona o Fascismo ao sadomasoquismo — enquanto o Fascismo é um teatro, o sadomasoquismo é a participação ativa nesse teatro com conteúdo sexual. Apesar de explicar alguns pontos em relação ao fascínio e ao sadismo dos Stalags, as teorias de Sontag não sustentam as relações culturais e complexas da recém-sociedade israelita. Já Friedlander apresentou o seu estudo sobre o “kistch and death” (“cafona e morte”) que seria “uma sobrecarga de símbolos: um cenário barroco: uma evocação de uma atmosfera misteriosa, do mito e da religiosidade que envolve uma visão da morte anunciada como uma revelação que se abre para o nada — nada além de atrocidade e da noite”. E mostrou que, talvez, a melhor forma de falar sobre essa experiência seria pelo silêncio. Em relação ao sucesso dos Stalags, o silêncio traumático foi um fator importante para entender o problema, mas o conceito de Friedlander não se enquadra diretamente nessa questão. Já Primo Levi se empenhou na busca pelo entendimento das questões relativas à Shoah e, em seu último livro, apresentou sua polêmica revelação acerca dos “afogados e sobreviventes” segundo o qual os sobreviventes teriam sido aqueles que receberam algum tipo de privilégio, o que se aproxima um pouco com as teorias controversas de Ka. Tzetnik, fonte para os Stalags. Assim é necessário ir além dessas teorias consagradas, tentando entender melhor o cenário cultural que permitiu o surgimento e sucesso desse fenômeno.

A geração que se interessou pelos Stalags foi a geração dos filhos dos sobreviventes que herdou essa postmemory e que “desejava” o conhecimento, entendimento e o carinho de seus pais, totalmente incapazes de fornecer respostas. Além disso, essa geração viveu e sentiu a questão do poder e da força do recém-criado Estado de Israel construído sob a insígnia de defender os judeus, agora fortes e destemidos, e nunca mais se entregar como “sheep to the slaughter” (“ovelhas ao matadouro”) — visão Sionista recorrente em Israel até o julgamento de Eichmann. Considerada puritana e destemida, a sociedade israelita produziu esse fenômeno literário-pornográfico.

Trauma, falta de comunicação, postmemory, lembranças inventadas, poder, fetiche, puberdade e pornografia contribuíram, portanto, para a difusão e o sucesso dos Stalags. Ao ler os Stalags e desconhecendo o que de fato tinha ocorrido durante a Shoah, esses jovens eram levados a se imaginarem nesses mesmos Campos, passando por torturas, explorações sexuais e sadismo, que culminavam com a fuga e a revanche desses prisioneiros.

Durante o julgamento de Eichmann, em 1961, começou a circular a primeira versão dos livretos conhecida como Stalag 13. O livreto conta a história de Mike Baden, um piloto inglês que fica preso em um dos Campos nazistas. De repente preso, Mike Baden se vê na mão de um regimento SS composto somente de mulheres, com roupas e corpos provocantes, e que o exploraram sexualmente. O livreto narra ainda muitas práticas sadomasoquistas e, ao final de tanta exploração e tortura, os prisioneiros conseguiam se libertar e passariam a ser os torturadores e exploradores sexuais das SS. Aqui aparece uma relação importante: as vítimas buscavam e conseguiam vingança, que perpetravam com extrema crueldade.

Com o sucesso da primeira tiragem (cerca de 80 mil revistas foram vendidas, de acordo com Pinchevski e Libsker), uma outra série é lançada — Stalag 217, que clamava ser “a verdadeira, honesta e brutal história da vida dos prisioneiros confinados por mulheres sádicas […] mulheres cuja essência toda é baseada no desejo transbordante pelo sangue dos outros, a fim de obter prazer sádico de sua dor, e explorar a masculinidade dos prisioneiros totalmente entregues”. A série continuou até 1965:

Títulos subsequentes incluíram Stalag 3, Stalag 7, Stalag 10, Stalag 33, Stalag 69, Stalag 190, até o Stalag 1000. Os mesmos títulos foram substituídos por alguns mais dramáticos como: Stalag of the Devils, Stalag of the Holocaust Perversions Wolves, Women’s Stalag, Death Stalag, e I Was a Stalag Commander. Versões posteriores mudaram os cenários dos campos alemães para campos similares na Alemanha, Japão, Rússia, Argélia e Síria — Geishas Stalag, Stalag Stalingrad, Stalag of Experiments, e Desert Stalag. De todos os mais de 70 títulos produzidos, a mania da série Stalag começou a declinar em 1965 (Pinchevski; Brand).

Os Stalags têm basicamente o mesmo enredo. Soldados paraquedistas americanos ou britânicos, que ao atacar os exércitos nazistas, são presos e levados aos Campos Alemães Permanentes — Stammlager. Nesse local, um grupo de mulheres SS, com roupas insinuantes, seios avantajados e uniformes sedutores, torturavam e estupravam esses soldados aliados.

Pouco depois dessa série, um novo enredo é criado. Surge o livro de Gutman, I Was Colonel Schultz’s Private Bitch, que apresentou a primeira relação sexual e sadomasoquista entre uma judia e um alemão. O livro foi perseguido, proibido e queimado pela Justiça em Israel, porém o mesmo enredo continuou sendo narrado, também, no Schultz’s Bitch. Poucos anos depois do boom de vendas, os Stalags, talvez devido às perseguições da justiça israelense, das reclamações dos sobreviventes ou da exposição finalmente das “verdades” da Shoah, os livretos não despertaram mais a atenção dos leitores.

A geração que se atraiu pelos Stalags encontrava nas torturas, nos abusos e no sadismo os seus próprios pais. Assim, para entender o sucesso dos Stalags é necessário compreender a questão do sadomasoquismo (dominação e poder) e sua representação nesse contexto conturbado da sociedade israelense. Subversão, silêncio e mistério levaram essa nova geração a se interessar por essa prática: “O que aparece através do sadomasoquismo é a subversão, mais que a afirmação de um poder social codificado. Isto ocorre pela dramatização de momentos e situações onde o poder submisso é mais visível” (Pinchevski; Brand).

Uma primeira forma de analisar o sadismo é pensar na possibilidade da representação de algo impensável ou inumano que subverteria a moral (Kerner). O termo criado a partir das experimentações do Marquês de Sade, além de apresentar um catálogo de perversões e libertinagem, polemiza a questão e “ilustra como o raciocínio estrito sistematizado promove uma desumanização das vítimas, e elimina todo sentimentalismo humano a partir de atos de crueldade” (Kerner).

Em relação à sociedade israelense, o que representa o sadomasoquismo nesses livretos é o questionamento das relações de poder, seja diante do Estado autoritário e poderoso, seja diante dos pais traumatizados e silenciados: “em tais casos, a prática cultural do sadomasoquismo serve como uma resposta à maneira de lidar com as relações de poder socialmente codificados” (Kerner). O novo judeu, portanto, até 1961, vivia um conflito e viu nos Stalags uma forma de subverter a ordem imposta a eles.

O que (re)legitimavam era um drama social como cerne da ideologia sionista: o confronto entre o novo judeu israelense e o velho judeu da diáspora, como emerge no contexto do julgamento de Eichmann. O Stalags podem ser lidos como uma narrativa ficcional situando o novo judeu no lugar do antigo, encenando assim a contradição entre os israelenses nativos e geração dos sobreviventes (Pinchevski; Brand).

Ilustração: Theo Szczepanski
Ilustração: Theo Szczepanski

Ka. Tzetnik, até então um sobrevivente desconhecido que escrevia sob esse pseudônimo, publicara livros com descrições sádicas, pornográficas e que clamavam por contar a verdade de Auschwitz.

Por meio da erotização e do sadomasoquismo, os Stalags representavam o imaginário da relação do soldado aliado viril que se revoltava e se vingava dos perpetradores nazistas. Primeiramente submetidos à tortura e submissão, os soldados americanos e ingleses utilizavam da mesma brutalidade e sadismo contra esse esquadrão de mulheres SS.

Em uma relação de dominação feminina sadomasoquista o que se evoca é a primeira estrutura da criança em relação à dominação feminina. Assim, mãe e pátria-mãe são colocadas em pauta nesse jogo sádico apresentado nos Stalags, que se libertam pela inversão de papéis:

Aqui é o paralelo em relação à construção do novo judeu em Israel: o novo judeu também foi encarregado de identificar suas longínquas raízes em direção a um modelo distante e abstrato de identidade, que foi igualmente baseado numa negação ritualizada de um passado socialmente banido. O novo judeu tinha que surgir masculino, viril e forte, descartando todos os parentescos frágeis associados à figura histórica do velho judeu (Pinchevski; Brand).

Será que o julgamento de Eichmann clamava pelo direito à vingança e à justiça? Segundo os escritos do conhecido Caçador de Nazistas, Simon Wiesenthal, alguns judeus organizaram pequenos grupos com o intuito de perseguir e matar esses perpetradores nazistas. No entanto, essa não era uma prática corrente e o Estado de Israel, apesar das críticas de alguns pensadores como Hannah Arendt, desejavam tornar o processo de justiça como lícito e legitimar politicamente seu novo Estado. Não havia e não teria como os sobreviventes exigirem justiça, muito menos vingança. Isso só poderia ser realizado por meio do imaginário.

Se por um lado aparece a justiça oficial representada pelo Estado, por outro, aparece esse desejo velado dos sobreviventes e dos que receberam essa postmemory pela vingança e pelo prazer de perpetrar a dor aos carrascos nazistas, como narrado nos Stalags: “os Stalags podem ser lidos como uma reencenação de mais um drama, o do direito de punir. Essa questão manifestou o que foi rejeitado de forma consistente no julgamento — que a punição seria inseparável da economia do prazer” (Pinchevski; Brand). Um dos Stalags, por exemplo, apresentava em seu epílogo uma citação do Deuteronômio que justificaria essa busca pela vingança: “A mim pertencem a vingança e a recompensa”.

O que se encontra nos Stalags é, portanto, mais que uma questão somente sexual e de violência: é uma questão de inversão de ordem e poder.

Algumas notas introdutórias sobre o sadomasoquismo são importantes. Primeiro, o sadomasoquismo não é propriamente um ato de violência, sexual ou não. Pelo contrário, é um ato de encenação da violência, um jogo que se baseia em estereótipos sociais em prol do prazer sexual. Krafft-Ebing e Freud postularam sadismo e masoquismo como psicopatologias opostas, ainda que inter-relacionados da sexualidade masculina e feminina, respectivamente. Freud já tinha especulado sobre a natureza lúdica dessas patologias, mas foi Reik quem primeiro separou masoquismo de violência sexual e apresentou-o como uma dramatização erótica da produção de fantasias de poder e impotência. A realização de Reik abriu o caminho para considerar o sadomasoquismo como uma arena para a negociação de questões de poder, gênero e identidade através da realização prazerosa de fantasias sexuais. Explicações subsequentes desenvolveram a ideia do sadomasoquismo como uma dramatização da interseção da sexualidade e do poder através do uso excessivo de códigos sociais (Pinchevski; Brand).

A sociedade israelense, portanto, é criada sob a névoa da Shoah e a partir de suas limitações de representação. O testemunho, e todas as suas implicações e traumas, produziu esse fenômeno ainda pouco estudado, mas importante para entender a questão sádica do Nazismo. Entretanto, resta estudar ainda uma outra fonte primária dessa questão: a literatura de Ka. Tzetnik.

Ka. Tzetnik 135633
Antes da chegada e do sucesso dos Stalags, um outro autor já criava polêmica. Ka. Tzetnik havia publicado em 1953 o livro House of Dolls, de forte conteúdo erótico, descrevia um suposto bordel que se encontrava em Auschwitz, conhecido como Joy Division, onde os soldados nazistas teriam relações sexuais com prisioneiras judias. O autor já havia publicado, em hebraico, outros livros polêmicos e também de forte conteúdo sexual, relatando sua passagem por Auschwitz: Salamandra (1946) e Piepel (1961).

Ao ser chamado como testemunho durante o julgamento de Eichmann, o verdadeiro nome do pseudônimo de Ka. Tzetnik foi revelado: ele se chamava Yehiel Dinur e era sobrevivente em Auschwitz. A sua participação no julgamento de Eichmann foi uma das cenas chave desse penoso processo. O sobrevivente contou sua própria história e revelou ser o escritor Ka. Tzetnik (KZ, abreviação de Konzentrationslager, prisioneiro que tinha o número 135633). Visivelmente transtornado ao testemunhar e relembrar o que chamou das “crônicas de outro planeta”, Dinur desmaiou durante seu testemunho e teve que ser carregado para fora do tribunal. Anos mais tarde, em uma entrevista concedida ao 60 Minutos, o escritor argumentou que o mais pavoroso em Auschwitz, e que de fato reviveu durante aquele momento do seu testemunho, foi compreender que ele próprio (ou todo ser humano) teria sido capaz de fazer o que os nazistas (na figura do temível e banal Eichmann) fizeram: “Eu fiquei com medo de mim mesmo… Eu vi que era capaz de fazer exatamente isso. Eu sou… exatamente como ele. Eichmann está em todos nós”.

Ao escrever sob o pseudônimo de Ka. Tzetnik, Dinur queria escrever em nome de todos aqueles que vivenciaram os terríveis acontecimentos de Auschwitz e que não foram mais que um número nessa grande indústria da morte. Seus livros foram os primeiros a circular em Israel com o tema da Shoah e escritos na nova língua do povo e do Estado de Israel. Diferentemente dos Stalags, os livros de Ka. Tzetnik, apesar de lidos, não foram um grande sucesso de vendas, já que a sociedade ainda se encontrava no momento de silêncio em relação a esse tema.

A literatura de Ka. Tzetnik, a meu ver, pode ser vista como uma tentativa de ampliar o campo de ação da literatura de testemunho. Assim como ousou Georges Bataille ao discutir os limites da linguagem, Ka. Tzetnik foi além da desumanização do ser humano, que encontramos nos Campos, para narrar acontecimentos além dos limites da linguagem e do entendimento humano. O autor, ao escrever o que alguns chamam de ficção-documentário, apresenta o indivíduo da forma mais cruel e crua possível, capaz de realizar as coisas mais absurdas e inconcebíveis enquanto seres supostamente racionais. Esses membros da “zona cinzenta” — afogados e sobreviventes — atestaram os limites dos ambientes concentracionais nazistas e da crueldade humana.

Além da literatura, Dinur ficou marcado como um importante testemunho no julgamento de Eichmann, pois o escritor criou, naquele momento, uma concepção de Auschwitz como sendo “outro planeta”: “isso é uma crônica de um outro planeta Auschwitz”. Essa questão foi (e ainda é) muito discutida, já que não foi em outro planeta que a indústria alemã conseguiu criar, com tamanha eficiência, essa indústria do extermínio. Giorgio Agamben, por exemplo, problematiza a questão ao dizer que ainda vivemos nesse mundo que produziu, e é capaz de produzir, novamente, Auschwitz: “a matriz escondida e o nomos de um espaço político no qual ainda estamos vivendo”.

Polêmica e contraditória em relação à nova aspiração do Estado de Israel, a literatura de Ka. Tzetnik não foi legitimada por esse país inicialmente, já que queriam mostrar apenas os grandes atos de heroísmo e resistência. Assim, casos como o de Jansz Korchak que morreu junto às suas crianças e estudantes nos Campos de Extermínio e a resistência armada implementada por jovens durante o Levante do Gueto de Varsóvia eram assuntos legitimados pelo novo Estado de Israel.

A literatura oficial do Holocausto tipicamente consistia de contos quase-ficcionais de resistência e sacrifício heroicos: crianças contrabandeando alimentos e armas para os guetos, Janusz Korchak indo com seus alunos para as câmaras de gás, jovens heróis preferindo morrer como lutadores em vez de vítimas. Concentrando em ação, o sacrifício e a morte legítima, esses contos seguiam a linha da ideologia sionista e, portanto, eram utilizados como material didático nas escolas. Por outro lado, os materiais ilegítimos — os Stalags e os livros Ka. Tzetnik — foram distribuídos de mão em mão ​​em segredo e mantidos escondidos no quintal, longe dos olhos de adultos. Ao contrário das narrativas moralizantes propagadas pela ideologia sionista, os textos apócrifos forneceram uma fonte de excitação ilícita por violar um tabu duplo — o do sexo e do Holocausto, dois domínios sancionados por adultos e barrados aos jovens (Pinchevski; Brand).

Ao violar tabus e tratar da pornografia, Ka. Tzetnik estaria tentando atingir e aumentar os limites e o alcance da língua e do testemunho? O não narrável estaria mais próximo na experiência verbal descrita por meio da perversão sexual? “Na literatura representativa de Ka. Tzetnik, ele é transportado para uma terra selvagem, onde traços normais humanos que constituiriam os seus determinantes genéticos de humanidade não têm lugar nenhum” (Milner). Discutir os limites do próprio ser humano e se ver apenas como um sobrevivente que teve a sorte de não ser um perpetrador é uma questão crucial e muito discutida na obra de Ka. Tzetnik.

Constrói-se, portanto, em Ka. Tzetnik e nos outros testemunhos, um paradoxo entre a necessidade e a impossibilidade de narrar, o que significa, segundo Agamben, que a dificuldade faz parte da própria estrutura do testemunho. O que aconteceu se apresenta aos sobreviventes como algo verdadeiro e inesquecível, mas essa verdade não deixa de ser também inimaginável: “Trata-se de fatos reais que, comparativamente, nada é mais verdadeiro; uma realidade que excede necessariamente os seus elementos factuais: é esta a aporia de Auschwitz” (Agamben). A dificuldade de que fala Agamben torna-se explícita nos momentos em que se duvida dos fatos apresentados: “Hoje — neste hoje verdadeiro, enquanto estou sentado frente a uma mesa, escrevendo — hoje eu mesmo não estou certo de que esses fatos tenham realmente acontecido”, como escreve outro sobrevivente, Primo Levi em É isto um homem?. Ka. Tzetnik leva a questão de Levi ao extremo, misturando as possibilidades ficcionais e testemunhais (além de pornográficas) da língua. Há sobreviventes de eventos-limite que veem na ficção o caminho para escrever sobre o horror por eles experienciado — eles acreditam que “apenas a passagem pela imaginação poderia dar conta daquilo que escapa ao conceito” (Seligmann-Silva).

Ilustração: Theo Szczepanski
Ilustração: Theo Szczepanski

Os livretos chamavam a atenção especialmente pela narração de cenas de tortura, sadismo, dominação e sexo. Esses livretos apresentavam oficiais femininas da SS vestindo uniformes sensuais e explorando sexualmente soldados aliados capturados durante a guerra.

Quando publicou seus livros, Ka. Tzetnik polemizou e agitou a conservadora e silenciada sociedade israelense:

Nas décadas de 1950 e 1960, jovens israelenses frequentemente liam Ka-Tzetnik porque ele era a única fonte legítima e sexualmente excitante da literatura sádica em uma sociedade ainda puritana e fechada, como resultado de que o Holocausto, de alguma forma, ainda era enredada em suas mentes, repelindo e fascinando através das imagens pornográficas (Bartov).

A fascinação pela imagem pornográfica, pela desumanização do ser e pelo sadomasoquismo como forma de desacordo diante do poder, levou os jovens a se interessarem secretamente por esse tipo de literatura:

Ka. Tzetnik apresenta assim a desumanização como uma redução dos seres humanos e de seus mais íntimos valores a nada, a objetos negociáveis ​​no sistema de câmbio do Campo. A diferença entre o humano e a matéria foi eliminada nesta zona cinzenta em que uma política de escassez total leva à exploração das partes humanas e de seus restos (Milner).

Qualquer tentativa de manter alguma sombra de humanidade e de solidariedade, compaixão, lealdade e amizade é descartada nas obras de Ka. Tzetnik, já que, segundo o autor, o “poder absoluto” desumaniza as vítimas: “O Poder Absoluto lança seres humanos a um estado natural, um universo hobbesiano de roubo e corrupção, desconfiança e animosidade, a luta de todos contra todos” (Sofsky).

Ka. Tzetnik construiu seus personagens de uma forma que ninguém desejava ver e acreditar ser possível. O ser humano, sim, seria capaz de chegar ao fundo, à desumanização total, à categoria de Muçulmano totalmente entregue. Mas, segundo o autor, o ser humano ainda seria capaz de algo muito pior: perder qualquer capacidade de discernimento moral, de companheirismo e de humanidade. As narrações heroicas acerca dessa essência humana que ainda seria preservada, mesmo diante das grandes tragédias e privações, foram refutadas veementemente pelo polêmico escritor: “de fato, nos livros de Ka.Tzetnik, os casos mais extremos de estudo da existência darwinista são aqueles detentores de função que, ansiosos para preservar as suas posições, perdem todos os restos de empatia e solidariedade e cruelmente atacam colegas de cela que representam um obstáculo ao seu status” (Milner).

Dinur havia escrito e publicado um livro de poemas antes da Shoah. Após a Shoah, evento que marcou profundamente seus escritos, sua vida e a criação de um novo personagem — Ka. Tzetnik —, Dinur dizia que seu livro de poemas não tinha mais sentido algum e que deveria ser queimado. Assim, pegou emprestado seu próprio livro na biblioteca e devolveu apenas as cinzas do seu passado, das suas crenças e das suas próprias palavras. Relendo a famosa frase de Adorno — “escrever um poema após Auschwitz seria um ato de barbárie”—, Dinur desconsiderou a própria poesia escrita antes da Shoah já que, para ele, as palavras antes da Shoah não significavam absolutamente nada.

Assim, a literatura de Dinur, ainda pouco estudada, é importante para entender toda a questão do testemunho, dos próprios limites do ser humano e como uma forma de ligação entre essa pornografia sadomasoquista dos Stalags e os novos filmes de exploração sadiconazista, que seguiriam nessa mesma linha.

Sadiconazista filmes ou Nazisplotation
É possível reconstruir os interesses, atitudes e valores de uma sociedade perdida a partir do seu próprio lixo? Talvez devêssemos dar uma olhada em alguns dos lixos que estão passando em nossas salas de cinema hoje. Você gostaria que um historiador do futuro especulasse sobre sua vida baseado em uma impressão musguenta de uma cópia, por exemplo, do Ilsa, She Wolf of the SS?

Ilsa, She Wolf of the SS (Ilsa, a guardiã perversa da SS, dirigido por Don Edmonds) foi lançado em 1975 e o crítico do New York Times Vincent Canby teceu os comentários acima acerca do que chamou de lixo ou dejeto dessa nova categoria de filmes. O enredo do filme apresenta uma história muito similar ao dos Stalags, lançados quase uma década antes. O filme trata da personagem Ilsa, uma comandante da SS, voraz e sexualmente insinuante, que estuprava e praticava atividades sadomasoquistas todas as noites com algum prisioneiro e logo em seguida os matava. Enquanto os Stalags eram baseados em alguns momentos chave e revelações que surgiam durante o julgamento de Eichmann e os livros de Ka. Tzetnik relatavam a visão particular do autor enquanto sobrevivente de Auschwitz, esse filme apresentava cenas de torturas e exploração sexual supostamente inspiradas em um personagem nazista real, que já teria sido estudado historicamente. O nome Ilsa seria uma referência à criminosa de guerra Ilse Koch, conhecida como “The Bitch of Buchenwald” (Die Hexe von Buchenwald — “A puta de Buchenwald”), esposa do SS Karl Koch que comandou Buchenwald e Madjanek. Segundo testemunhos e provas, Ilse utilizava, por exemplo, pele humana para construir suas lâmpadas e golpeava frequentemente prisioneiros que a olhassem enquanto ela desfilava trajando minissaia e sem calcinha. Apesar dessa nota “explicativa” apresentada no início do filme, a construção desse trash não representava um documentário ou uma ficção histórica.

A maioria desses filmes de exploração sexual nazista apresentava o mesmo enredo: todos os alemães eram nazistas e todos os nazistas eram criminosos de guerra e pertenciam à SS. Além disso, remetendo à figura mitificada de Josef Mengele, todos os SS realizavam experiências médicas e sádicas com prisioneiros. Retomando o “fascínio do fascismo”, as comandantes da SS também eram sempre mostradas com uniformes e botas insinuantes e seios avantajados. Esses filmes de baixo orçamento e tecnicamente malfeitos foram lançados e comercializados principalmente na Europa e nos Estados Unidos, mostrando uma importante distinção entre Stalags e os livros de Ka. Tzetnik. Produzidos e comercializados na Europa e nos Estados Unidos esses filmes foram quase desconsiderados em Israel, pois, nesta nova nação judaica, os jovens já tinham recebido o mesmo tipo de conteúdo de forma diferente.

A questão aqui é interessante: se por um lado a segunda geração de sobreviventes em Israel convivia com o silêncio, com o trauma e com essa herança da memória que ia aos poucos sendo revelada a partir do julgamento de Eichmann, essa mesma segunda geração fora de Israel receberia, anos mais tarde, esses filmes em meio ao boom da literatura de testemunho e dos relatos e escritos cada vez mais frequentes dos sobreviventes da Shoah. Talvez esse tipo de questionamento, trauma e enfrentamento de gerações, que foi discutido nos Stalags em Israel, tenha atingido a Europa e os Estados Unidos em proporções menores, mas com um atraso de alguns anos.

Portanto, estudar esses filmes, assim como estudar os Stalags e os livros de Ka. Tzetnik seria uma forma de compreender o que estaria velado na literatura e nos documentos oficiais: “estas superfícies deram pistas sobre as mentalidades e as histórias que as narrativas oficiais não podiam” (Krecauer).

O termo Nazisplotation é, no entanto, mais abrangente e engloba qualquer tipo de filme, desenho animado e propaganda que utilize o Nazismo e a violência como pano de fundo. Recentemente o filme de Tarantino Bastardos inglórios foi bastante discutido e rendeu muitas polêmicas, mostrando como esse tipo de abordagem ainda atrai muito o público e a crítica, mas que é questionável enquanto ficção histórica. De acordo com os pesquisadores Daniel Magilow, Kristin T. Vander, Elizabeth Bridges e Natalio Pagés e Nicolás Rubi, uma grande lista de filmes de exploração sexual nazista foi lançada na década de 1960 e 1970: La caduta degli dei (Luchino Visconti, 1969, Itália); Love Camp 7 (Lee Frost, 1969, EUA); 5 per l’inferno (Gianfranco Parolini, 1969); Il portiere di notte (Liliana Cavani, 1973, Itália); Eine Armee Gretchen (Erwin C. Dietrich, 1973, Suíça); Salò o le 120 giornate di Sodoma (Pier Paolo Pasolini, 1975, Itália); Ilsa, She Wolf of the SS (Don Edmonds, 1975, EUA); Salon Kitty (Tinto Brass, 1976, Itália); Lager SSadis kastrat kommandantur (Sergio Garrone, 1976, Itália); SS lager 5: l’inferno delle donne (Sergio Garrone, 1976, Itália); Le deportate della sezione speciale SS (Rino Di Silvestro, 1976, Itália); Liebes lager (Enzo Giacca Palli, 1976, Itália); Helga, la louve de Stilberg (Patrice Rhomm, 1977, França); Elsa Fräulein SS (Patrice Rhomm, 1977, França); Pasqualino settebellezze (Lina Wertmüller, 1977, Itália); Casa privata per le SS (Bruno Matei, 1977, Itália); Kaput lager: gli ultimi giorni delle SS (Luigi Batzella, 1977, Itália); L’ultima orgia del III Reich (Cesare Canevari, 1977, Itália); La svastica nel ventre (Mario Caiano, 1977, Itália); La bestia in calore (Luigi Batzella, 1977, Itália); KZ9: lager di sterminio (Bruno Mattei, 1977, Itália); Le lunghe notti della Gestapo (Fabio De Agostini, 1977, Itália); Bordel SS (José Bénazéraf, 1978, França); Convoi de filles (Pierre Chevalier – Jesús Franco, 1978, França); Nathalie rescapée de l’enfer (Alain Payet, 1978, França).

Há ainda uma distinção entre os filmes trashes e/ou garbages, como são considerados os filmes da série Ilsa, os filmes SS Experiment — Love Camp, SS Girls, SS Camp Women’s Hell, entre outros, e os que a pesquisadora Annette Insdorf, por exemplo, chamou de avant-garde. Segundo Insdorf, os filmes Il portieri di notte (The Night Porter, 1974, Liliana Cavani) e Salò o le 120 gionare di Sodomo (Salò, or the 120 Days of Sodom, 1975, Pier Palo Pasolini) seriam novas representações sadomasoquistas e de uma certa qualidade, que tinham o intuito de quebrar tabus e representar metáforas do Fascismo. Entretanto, algumas críticas poderiam ser tecidas em relação a essa avant-garde cinematográfica:

Uma das principais razões que os detratores ignorassem filmes Nazisploitation é que eles violam um tabu central da representação do Holocausto: eles mostram e exageraram nas atrocidades de forma a torná-las compreensíveis, mesmo que os sobreviventes do Holocausto insistam que não-participantes simplesmente nunca poderão compreender já que não estiveram lá. Esse tabu desperta debates sobre a propriedade da representação dos crimes do Terceiro Reich no cinema e em outros meios de comunicação. Alegações como Theodor Adorno de que “escrever um poema depois de Auschwitz é ato de barbárie” ajudou a estabelecer o chamado Bilderverbot, uma “proibição do uso de imagens” em relação ao Holocausto (Magilow; Lugt; Bridges).

Essa exploração pela imagem do Nazismo ultrapassa as questões históricas e documentais. Se por um lado existe a corrente Bilderverbot, que descarta o uso das imagens com o intuito de não criar uma fotografia e um entendimento dos terríveis acontecimentos da Shoah, por outro lado filmes trashes exploram o conteúdo nazista de uma forma sádica, muito próxima ao fenômeno dos Stalags e da literatura de Ka. Tzetnik e que merecem um estudo sob um viés diferente: o de revelar o que estaria escondido em relação aos desejos e obsessões dessa geração que buscou nesse gênero alguma forma de prazer e entendimento.

No!art
Se, como vimos, sadismo é capacidade de pensar na possibilidade da representação de algo impensável ou inumano que subverteria a moral, como poderíamos discutir a arte (ou a não-arte) de Boris Lurie? O que gostaria de trazer à tona esse sobrevivente? Despertar o inumano ou o demasiadamente humano?

Nascido 18 de julho de 1924, em Leningrado na Rússia, Lurie, juntamente com seus pais, mudou-se para Riga, em 1925. Em 1941 foi capturado pelos alemães e passou por vários guetos e campos de concentração nas cidades de Riga, Salapils, Stutthof e Buchenwald-Magdeburg. Conseguiu sobreviver junto a seu pai, perdendo toda sua família. Finalmente emigrou para os Estados Unidos em 1946.

Seus primeiros trabalhos artísticos, já em 1946, discutiram questões relativas à Shoah e suas próprias lembranças da guerra. Apesar de o assunto ser um tabu, principalmente entre os sobreviventes, Lurie não se incomodou em tratar disso nos seus trabalhos intitulados Back from Work, Roll Call in Concentration Camp e Entrance. Logo depois, abandonou o estilo figurativo e sob a influência de Picasso, Pollock, De Kooning e dos abstracionistas, concebeu o Feel Paintings que seria uma forma de se trabalhar com o fascínio americano por símbolos femininos burlescos e sensuais, apresentando pela primeira vez as pinup girls.

Em conjunto com Sam Goodman e Stanley Fisher, fundou o No!art Movement em 1959, trabalhando com temas e colagens que discutem a posição contemporânea da Shoah e da pornografia. O grupo propõe uma ruptura radical com Expressionismo e com Pop-art, trazendo de volta “a vida real” para a arte. Seu Manifesto mostra a luta contra a institucionalização da arte e de seu aspecto mercantilista. Assim, com intuito de afrontar as normas preestabelecidas, assuntos como repressão, depravação, censura, sexo, colonialismo, imperialismo, racismo e sexismo, juntamente com suas implicações psicológicas, tornam-se temas importantes do grupo.

Logo, para Lurie principalmente, a Shoah assume um papel central na sua arte. Resgatando suas memórias e incorporando seus antigos trabalhos da fase Feel Paintings, Lurie trabalha com corpos femininos nus e cadáveres encontrados nos Campos. Recoloca em pauta o que desejava ser esquecido ou, pelo menos, lembrado de outra forma: “Na arte, o tema Holocausto é proibido (…) muitos judeus nem querem ouvir falar sobre isso”. Assim, ao abordar esses assuntos em suas exibições, Lurie e seus companheiros foram os primeiros a discutir e expor essa questão ainda velada e censurada. Entretanto, como se poderia analisar o uso conjunto das fotos femininas e dos corpos sem vida? De acordo com alguns de seus críticos, seria uma forma de tentar reconstruir o próprio corpo de sua mãe, exterminada pelos nazistas:

Em um nível psicológico, a coleção de imagens do Lurie de corpos femininos também pode ser interpretado como uma lembrança do corpo de sua jovem mãe, que talvez tivesse sido estuprada e que, certamente, foi assassinada nos campos. Como poderíamos preencher de medo os ossos estilhaçados de uma mãe, diz um dos poemas lastimosos de Lurie, projetados na tela. Oh, Mama, Liberdade?, pode ser lido em outra linha de uma de suas colagens. (Lubich)

Em entrevista concedida a Estera Milman (2000), a entrevistadora questiona sobre o surgimento da ideia de se trabalhar de forma tão inusitada e questionável com a Shoah. Essa questão foi proposta por Lurie na mesma época em que o Julgamento de Eichmann estava acontecendo, porém nem o próprio artista é capaz de dizer se foi uma questão consciente ou se herdou essa memória midiática de finalmente escutar os outros testemunhos, e, claro, a suas próprias lembranças. A recepção de sua obra, diferentemente da recepção dos testemunhos que estavam sendo ouvidos pela primeira vez, foi polêmica e conturbada:

Naturalmente, em 1959, as imagens justapostas da pornografia e do nazismo, das pinups e das carroças da morte, das vulvas e das câmaras de gás de Lurie, provocaram espasmos de choque e indignação: ele deu voz às indizíveis semelhanças entre o sexo e o sadismo, entre a volição e a violação, entre o prazer e o tormento, entre amor e morte. (Katz)

Vivendo ainda na época do silêncio, mas prestes a explodir na mídia internacional o testemunho dessa grande catástrofe, Lurie expõe a negação da obra arte ou talvez a própria negação da poesia e da linguagem discutidas por Adorno, Levi e K. Tzetnik. Porém, é justamente um pouco depois de Eichmann que o trabalho mais marcante de Lurie surge:

No entanto, o mais revelador, se não revoltante das cenas de sedução de Lurie é o Railroad Collage 1963. Ele sobrepõe uma imagem de uma mulher se despindo provocativamente sobre a foto de um vagão de trem com cadáveres empilhados nus nos campos de extermínio. Ao falar sobre suas garotas pinups, que muitas vezes aparecem vestidas com roupas sadomasoquistas, Lurie argumenta que, para os oficiais nazistas nos campos de concentração, existia um espetáculo de voyeurismo e sadismo sexual de várias maneiras. Em seu livro de memórias de Auschwitz, Ruth Kluger caracterizou da melhor forma este submundo humano, onde luxúria se transforma em tortura e assassinato, como uma pornografia da morte. É um reino no qual carnificina total e a libidinosa crueldade tornaram-se um. O espectro desta perversidade primal recentemente ressurgiu nos campos de prisioneiros de Abu Ghraib, no Iraque, devastado pela guerra, como Lurie apontou. No entanto, em contraste com os presos envergonhados e submissos nas prisões e nos campos, sua pinup senhora vira a mesa diante seus sarcásticos algozes ao ostentar sua nudez, transformando assim a humilhação da vítima em excitação de um triunfante vampiro. (Lubich)

Talvez essa colagem de Lurie resuma a questão toda trabalhada neste texto. As pinups girls — objetos de sedução e desejo — em contraste com os trajes oficiais dos SS, e o imaginário de uma geração calada que cria histórias e fantasias para entender o trauma, seja a própria obra de 1963. Tormento, sadismo, nudez, crueldade, pornografia da morte desperta e desencadeia sentimentos até então recalcados.

Arte, segundo o próprio Lurie, é a capacidade, também, de se comunicar com o outro, com receptor/leitor. Ao trabalhar, por um lado, com as pinups, Lurie está sim se comunicando com o contemporâneo, com o que aparecia na mídia desde os anos 50. Por outro lado, ao expor fotos de corpos e campos de extermínio, Lurie questiona o poder da imagem e como ela toca o imaginário e revive os fatos (terríveis) vividos. Porém, ao fazer as justaposições das imagens, Lurie adentra por um caminho novo, difícil de se entender e de explicar e muito duro de conceber. Assim, questionando os limites da arte e das atrocidades nazistas, Lurie revela e inventa seu polêmico e distinto testemunho traumático.

Ilustração: Theo Szczepanski
Ilustração: Theo Szczepanski

Trauma, falta de comunicação, postmemory, lembranças inventadas, poder, fetiche, puberdade e pornografia contribuíram, portanto, para a difusão e o sucesso dos Stalags.

Bordéis e abusos sexuais
Um mito do pós-guerra, por vezes explorado e sensacionalista, considerava que as mulheres judias tivessem sido obrigadas a servir como prostitutas em bordéis SS, além de terem sido frequentemente estupradas. Embora tais casos tivessem ocorrido sem dúvida alguma, não era norma e caracteriza um desvio macabro do pós-guerra do Holocausto para fins de excitação popular (Milton apud Shik).

A questão dos abusos sexuais durante a Shoah é um assunto delicado e por vezes polêmico. Segundo a maioria dos estudos oficiais sobre o assunto não existiu um abuso sistemático por parte do exército alemão em relação às prisioneiras judias, apesar de casos esporádicos terem sido relatados. Também, em relação ao livro de Ka. Tzetnik, Piepel, que relata o abuso de um garoto judeu por um Kapo (que Ka. Tzetnik diz ter sido seu irmão), narrado também por Elie Wiesel, não há muitos testemunhos de abusos sistemáticos ou de um lugar nos Campos onde isso era praticado “oficialmente”, como seria o caso do Joy Division.

Este problema em relação aos abusos sexuais é bastante peculiar, já que alguns estudiosos sugerem que isso acontecia com muito mais frequência do que é verificado nos testemunhos, principalmente em relação às mulheres judias. De fato, ao se trabalhar com essa questão, muitas mulheres têm vergonha de contar o que realmente aconteceu. A Shoah já foi um acontecimento terrível demais, agregar a isso abusos sexuais tornaria a questão ainda mais complicada e mais difícil de ser enfrentada. Também, por causa desse silêncio em relação à questão sexual, os livros de Ka. Tzetnik e os filmes sadiconazistas despertaram tanta curiosidade e tamanho desprezo por muitos.

No entanto, abusos morais em relações às mulheres foram comuns e significativos durante a Shoah. Segundo testemunhos, a maioria das mulheres, ao chegar aos Campos, tinha que ficar despida em frente a homens, que as olhavam com desprezo e muitas vezes as ridicularizavam. Também, ao chegarem aos Campos, as mulheres tinham seus cabelos raspados, privando-as de qualquer apelo sexual.

Para combater, ainda, qualquer forma de atração sexual com as prisioneiras, os alemães criaram várias leis de higiene que os proibiam ter relações sexuais com mulheres de grupos inferiores, entre eles as mulheres judias:

Líderes nazistas e propagandistas trabalharam para desencorajar assassinos alemães e seus capangas de considerarem mulheres dos grupos marcados para eliminação como objetos de desejo sexual (Shik).

A questão da mulher judia nos Campos é bastante complicada. Se por um lado os judeus, de uma forma geral, eram desumanizados e desprezados, por outro lado o corpo da mulher, mesmo mal nutrido, sem nenhum apelo sexual, ainda permanecia como um objeto de desejo e de exploração. A proibição, o desprezo e o jogo de poder, despertava o interesse em alguns soldados alemães e, principalmente nos Kapos.

A ideologia nazista tinha uma atitude conflitante em relação à sexualidade e à maternidade das mulheres judias. Por um lado, as mulheres judias eram submetidas a um processo de dessexualização, além, claro, da desumanização. Os nazistas anularam a essência feminina das mulheres. Por outro lado, o corpo feminino permaneceu como um objeto sexual — fato evidenciado por uma diversidade de práticas de exploração sexual. Em outras palavras, em Auschwitz o corpo feminino judaico tornou-se só matéria, desprovida de humanidade, mas ainda continha características sexuais e ameaçava a ideologia nazista pela capacidade reprodutiva. As diferenças de gênero em Auschwtiz-Birkenau permaneceram visíveis dentro e sobre o corpo (Shik).

A estrutura nazista negava o outro, aquele que não era membro da raça ariana que fundaria o Terceiro Reich. Assim, o sistema concentracional sub-humanizava principalmente o judeu, transformando-o em nada ou em uma praga que poderia (e deveria) ser eliminada. Essa questão ainda era mais perceptiva no corpo e no desejo contraditório que as mulheres judias exerciam sobre os carrascos e detentores de poderes naquele ambiente específico:

Enquanto o processo de desumanização também aplicava aos homens, para as mulheres foi unida a visão dual nazista do corpo feminino judeu. Por um lado, tinham que ser exterminadas por causa de sua capacidade de ter filhos (judeus). Por outro lado, após a sua humanidade, a psique, e a individualidade ter sido tomada, o corpo da mulher judaica mantinha um recipiente sexual totalmente aberto, permitindo explorá-lo e semear a destruição nele (Shik).

Casos de estupros em massa não aconteceram nos Campos Alemães como aconteceram, por exemplo, na União Soviética entre os anos de 1942 e 1945. Os alemães, entretanto, perpetraram estupros quando estavam em terras russas e em campos de batalha. Nesses “espaços” considerados como sem lei ou “espaços bárbaros”, que eram habitados por pessoas de raça inferior, o estupro era aceitável, fato que era condenável em ambientes alemães. Nos Campos de controle alemão, as leis de higiene e de conduta eram claras, e impediam a relação sexual dos alemães com os judeus.

Porém, apesar de não se tratarem de prisioneiras e prostitutas judias, como o suposto Joy Division narrado por Ka. Tzetnik, existiram bordéis em alguns Campos alemães. Esses lugares foram criados por Himmler para aumentar a produtividade do trabalhador e para premiar alguns presos. Quando escreveu seu livro Mein Kampf, Adolf Hitler aboliu a prostituição, vendo-a como uma desgraça para a humanidade e, durante os primeiros anos em que esteve no poder, o governo alemão perseguiu essas práticas na Alemanha. Porém, com o início da Guerra, os Nazistas não aboliram a prostituição: apenas tinham controle total do que estava acontecendo. Assim, todas as prostitutas na Alemanha e nos territórios dominados pelos Nazistas deveriam ser registradas e os bordéis supervisionados por autoridades responsáveis.

O caso de bordéis em Campos Nazistas é estudado pelo pesquisador Robert Sommer e, segundo ele, havia um sistema complexo de liberação de Prämienchein (bônus voucher) para os prisioneiros premiados que poderiam frequentar esses locais. Tudo era controlado pelos oficiais nazistas, com tempo e “posição” rigidamente definidos:

O tempo dentro do quarto era limitado. Em Auschwitz, geralmente um prisioneiro do sexo masculino era autorizado a permanecer por 15 minutos na sala. Só era permitido “sexo normal” na posição papai-mamãe. Era proibido subir na cama com sapatos. Através de buracos de espionagem na porta, os guardas da SS asseguravam que os prisioneiros obedeciam às regras. Após o tempo estipulado um sino tocava e o homem tinha que sair da sala. Se ele não saísse rápido o suficiente, um guarda iria jogá-lo para fora. Antes de deixar o Sonderbau, o visitante tinha que voltar para a sala médica para receber uma injeção profilática.

Não é, portanto, verificada, a partir da constatação histórica, as perversões sexuais apresentadas nos Stalags, na literatura de Ka. Tzetnik e nos filmes sadiconazistas. Entretanto outros tipos perversões, torturas e sadismos muito mais terríveis aconteceram e se encontram nos limites da incompreensão e da linguagem. O estudo dos fenômenos analisados neste texto revela o que estaria escondido na sociedade que criou e que recebeu esse tipo de informação velada e, por isso, merece ainda estudos posteriores.

Jacques Fux

Venceu o Prêmio São Paulo de Literatura de 2013 com o livro Antiterapias. É doutor e pós-doutor em Literatura Comparada e um matemático apaixonado. Autor de Literatura e matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o Oulipo (Prêmio Capes de Melhor Tese do Brasil de Letras/Linguística), Brochadas: confissões sexuais de um jovem escritor e Meshugá: um romance sobre a loucura. Foi pesquisador-visitante na Universidade de Harvard e escritor residente na Ledig House, em Nova York.

Rascunho