Em Madame Bovary, Flaubert recorre a técnicas muito sofisticadas para apresentar Ema e Charles, de forma que o leitor se sente imediatamente seduzido pelos dois. Para mostrar o caráter confuso, sonolento e desastrado de Charles, o narrador por assim dizer, empurra-o para o começo do capítulo, de forma que o vemos entrar na história aos trancos e barrancos, conduzido pelo diretor e um servente, que carrega uma carteira, numa umidade de símbolos notável: Charles e a cadeira têm a mesma natureza e a sensibilidade do personagem ou do humano não é diferente de um móvel num canto da sala. Aliás, numa sala, Charles não seria mais notado do que um móvel, apesar do incrível perfil físico com que é apresentado, jaqueta apertadíssima, sapatos horríveis, cores fortes da roupa inferior. No entanto, é preciso prestar atenção no boné, confuso e grotesco, que não é senão a metáfora do próprio Charkes, que expõe e define seu caráter. Assim:
Estávamos em aula, quando entrou o diretor, seguido de um novato. Vestido modestamente. E um servente sobraçando uma grande carteira. Os que dormiam despertaram e puseram-se de pé como se os tivessem surpreendido no trabalho.
O diretor fez um sinal para sentarmo-nos; depois, voltando-se para o professor:
— Senhor Rogério — disse, a meia-voz — eis um aluno que lhe recomendo; vai para a quinta classe. Se a aplicação e o comportamento lhe forem bons, passará para os maiores, por causa da idade.
A um canto, atrás da porta, mal podíamos ver o novato. Era um rapaz do campo, de quinze anos mais ou menos, mais alto que qualquer um de nós, os cabelos rentes sobre a testa, como um sacristão de aldeia, um aspecto compenetrado e acanhadíssimo. Embora não fosse espadaúdo, a jaqueta verde de botões pretos, muito apertada nas ombreiras, devia incomodá-lo bastante. Pela abertura das mangas, viam-se dois punhos vermelhos, acostumados à nudez saíam-lhe dumas calças amareladas, muito repuxadas pelos suspensórios. Calçava uns sapatos, mal engraxados, reforçados com pregos.
Mas o boné, como será este boné metafórico?
O boné era uma dessas coisas complicadas, reúne elementos de chapéu de feltro, chapéu redondo, fez turco, gorro de peles, barrete de algodão, enfim, um desses pobres objetos, cuja muda fealdade, possui a mesma profundeza expressão que o rosto de um idiota.
Ovoide, guarnecido de barbas alternavam-se losangos de baleia, começava por três peças circulares, depois, separados por uma franja vermelha, alternavam-se losangos de veludo e de peles de coelho, e em seguida uma espécie de saco terminado num losango cartonado e coberto por um bordado complicadíssimo, do qual pendiam, na ponta de um cordão comprido e muito fino, umas pequenas borlas de fio de ouro. Era novo, a pala reluzia.
Pelo que se percebe, algo extremamente confuso e enigmático — talvez esteja aí não só a chave do caráter de Charles mas, sobretudo, a chave técnica do romance, cujo ponto central é a revelação do humano. Está em Charles a muda fealdade da natureza humana. O homem seria, então, capaz dos mais belos gestos e das mais profundas vilanias. Daí a força literária que Flaubert dá ao personagem ainda nas páginas iniciais do romance.
Para apresentar Emma, a personagem romântica e sutil, Flaubert lança mão da habilidade e da astúcia, de forma que, ao contrário de Charles que, como se disse, parece empurrado para dentro do livro, a personagem surge numa espécie de vertigem, saindo de um sonho para se definir, completamente, quando as ações já não podem passar por ela.
De início, Emma é apresentada no princípio desta vertigem apenas — e somente — pelo artigo indefinido “uma moça”, que lhe dá o caráter de virgem ao longe que vai se revelando aos poucos. Escreve o autor:
Uma moça, vestindo um merino azul guarnecido de folhos, apareceu à porta da casa, para receber Bovary, a quem fez entrar na cozinha, onde crepitava um bom lume.
O “olhar do personagem” — uma técnica extremamente eficiente na narrativa — vai construindo a personagem e na página seguinte o artigo indefinido é substituído pelo artigo definido: “…a criada rasgava um lençol para fazer ligaduras e a moça tratava de coser os chumaços”.
A partir daí a indefinição vai se desfazendo e adiante Emma é ela. O narrador interior já sabe de quem se trata e substitui o artigo pelo pronome: “ela não respondeu…” No parágrafo seguinte é apresentado um “perfil físico” da mão de Emma e, através dele, a beleza da protagonista é exposta e definida, Carlos — o narrador oculto — já conhece a mulher e, portanto, está suficientemente preparado para apresentá-la por inteiro com a cumplicidade do “olhar” do personagem:
Carlos ficou admirado da alvura de suas unhas. Eram brilhantes, mais brunidas que os marfins de Diepe e cortadas em forma de amêndoa. A mão nem por isso era bonita: pouco pálida talvez, e um tanto seca nas falanges; além disso, compridas demais; e sem brandas inflexões de linhas no contorno. O que ela tinha de verdadeiramente belos eram os olhos; apesar de castanhos pareciam pretos por causa das pestanas; o olhar era franco e de um arrojo cândido.
Depois disso, o narrador volta à sutileza e ao arranjo habilidoso ao chamar Emma de Srta. Rouault, dando-lhe um nome, depois de atravessar as indefinições: “A Srta. Rouault não gostava da aldeia…” Por isso, e somente depois de conduzir o leitor para a definição de Emma, com a sutileza de artigos e pronome, o narrador, sempre através do “olhar do personagem”.
>>> Continua na próxima edição.