1.
É preciso ler com certa desconfiança o que os artistas escrevem sobre suas próprias obras. Nem de longe são os textos mais confiáveis, já que não há distância possível entre o olho de quem fez e o objeto criado. Antes, olho e criação são como extensões um do outro, ainda que se tente com muita clareza e esforço certa objetividade. Eis a importância da crítica: são fundamentais os contrapontos, os olhos e mentes alheios, esclarecendo aquilo que nem se sabe que foi feito (alguém um dia disse que arte é a razão daquilo que gostaríamos de fazer e não conseguimos e do que fazemos sem nos dar conta que fizemos). Mas também os críticos não saem de si, também eles permanecem em seus pontos de vista e acabam por se refletir em alguma medida na obra que analisam. No limite, sempre lemos um pouco do leitor na leitura de uma obra. Mas quando esse leitor, que nos oferece sua leitura, é um leitor-artista, um leitor-escritor, essa complexidade de identidades pode render desdobramentos interessantes. Nesse caso específico, acessamos não apenas um modo de ver a obra de determinado escritor como também, na própria leitura, encontramos pistas para nos aproximar das obras do próprio leitor-produtor. Por isso é sempre bom ler os textos críticos de um escritor. Melhor ainda se esse leitor-escritor também for um cientista. Temos muito que aprender com cientistas poetas.
Entre 1941 e 1948, Vladimir Nabokov lecionou literatura no Wellesley College, nos Estados Unidos. Essas aulas foram coligidas e renderam dois volumes preciosos: Lições de literatura e Lições de literatura russa, ambos publicados por aqui.
2.
Em sua autobiografia, Fala, memória, não é sem uma pontinha de decepção (mas também um indisfarçado orgulho) que Nabokov diz achar “assombroso como as pessoas comuns notam pouco as borboletas”. Nessa altura do livro, Nabokov conta como foi despertado seu interesse pela lepidopterologia, mas para mim é o capítulo que melhor esclarece alguns aspectos de sua maneira de enxergar a literatura, tanto aquela que o influenciou como a sua própria literatura (e, considerando os demais capítulos desse livro, também sua própria vida).
Às vezes acho que só os cientistas com olhos sensíveis se interessariam pelas borboletas. A primeira motivação para que se jogue uma rede ao redor desses insetos coloridos e delicados deve ser justamente essa delicadeza colorida que, inútil, eles exibem pelos bosques de qualquer conto de fadas ou jardins de nossa infância. Mas passado o primeiro susto, quer dizer, esse primeiro olhar interessado por aquilo que não tem utilidade, vêm as etapas mais objetivas, mas nem por isso livres de paixão e entusiasmo — o quão feliz ficaria o pequeno Nabokov se descobrisse uma espécie ainda não catalogada de mariposa noturna…
Nutrida, talvez, dessa empolgação pelos insetos de asas estampadas, com a qual Nabokov contamina os leitores de sua autobiografia, não foi possível não perceber a semelhança entre o trabalho de se observar borboletas e a maneira como ele analisava os livros em seus cursos de literatura. Em Bons leitores e bons escritores, ensaio que abre Lições de literatura, Nabokov não deixa dúvidas dessa relação:
A fronteira entre uma obra de ficção e um estudo científico não é tão nítida quanto em geral se crê, mas o livro de ficção atrai em primeiro lugar a mente. A mente, o cérebro, o topo da espinha que pode sentir calafrios, é, ou deveria ser, o único instrumento usado em um livro.
E que diferença faria se Nabokov tivesse parado antes de se referir à espinha, aos calafrios… As emoções, o corpo diante de um livro ou de qualquer outro objeto na mesa de dissecção, não cessam, não devem cessar, durante a análise. Esse prazer intelectual, que é em tudo diferente à emoção barata que um livro pode gerar por simples identificação, como a que enlouqueceu Emma Bovary, transparece em todos os estudos reunidos em Lições de literatura. Não se trata de se deixar envolver pelas histórias ou pela reação que surgem a partir das memórias ou de qualquer tipo de coincidência entre lido e vivido. Antes, é manter o olhar objetivo e sério do cientista, mas sem perder, todavia, o encantamento de quem se surpreende em perceber ficção até nas cores de umas asas usadas para disfarce. “Os mistérios do mimetismo”, relembra Nabokov em Fala, memória, “exerciam atração especial sobre mim. Seus fenômenos revelavam uma perfeição artística geralmente associada a coisas feitas pelo homem. Pense na imitação de emissão de veneno por máculas em forma de bolhas numa asa (completas, pseudo-refrações) ou nas saliências amarelo brilhantes de uma crisálida (‘Não me coma — já fui esmagada, experimentada e rejeitada’)”. Mais adiante, ele conclui: “Descobri na natureza as delícias não utilitárias que eu procurava na arte. Ambas eram uma forma de magia, ambas eram um jogo de intricados encantamento e engano”.
Em sua autobiografia, Fala, memória, não é sem uma pontinha de decepção (mas também um indisfarçado orgulho) que Nabokov diz achar “assombroso como as pessoas comuns notam pouco as borboletas”.
3.
Em Fala, memória, Nabokov escreve sobre o período de sua formação, desde a infância em São Petersburgo, passando pelas várias mudanças de países que as condições geopolíticas exigiram e a boa posição financeira de sua família lhe permitiram, até 1940, quando foi morar definitivamente nos Estados Unidos. É curioso perceber que o mesmo distanciamento encantado como Nabokov olhava as borboletas e os romances aparece nessa autobiografia, como quem consegue a proeza de colocar a própria memória numa bandeja de análise, mas sem desconsiderar a impossibilidade desse movimento. O quanto é possível se afastar de si mesmo?
Os episódios da infância e juventude não foram narrados em linha, há certa dança no tempo assim como também há certas brechas preenchidas, confessadamente, com pequenas mentiras (ficções). Mas o que impressiona é o controle de Nabokov dessa narrativa, a maneira como ele consegue nos levar ali, desde muito perto, por detrás de seus olhos, por essas lembranças. Lemos as peripécias de um garoto russo do começo do século 20 e apesar dessa distância de vida, pela força da magia de sua literatura, de seu “encantamento e engano”, me aproximo dessa terceira pessoa, me mascaro do rosto dele, como as mariposas que, por se parecerem com determinado tipo de vespa, começam a mover as antenas de um jeito muito diferente do esperado para a sua espécie.
A memória de sua juventude como as borboletas que foram espetadas nos mostruários depois das análises. Em diversos momentos um narrador, que parece se deslocar do narrador principal, do memorialista, intervém para apontar os momentos incertos, para corroborar os exageros, para confessar as distorções feitas em prol da narrativa. Ele nos conta seu passos, como se desse lado ouvíssemos o solilóquio do cientista em sua bancada de trabalho, ou as instruções de um coreógrafo paciente, mas, reforço, sem deixar de se espantar, a todo tempo a importância da inteligência dos nervos.
Como é pequeno o cosmos (a bolsa de um canguru podia contê-lo), como é insignificante e irrisório comparado à consciência humana, a uma única lembrança individual e sua expressão em palavras!
4.
Aprendemos muito com Fala, memória. Não apenas sobre a crise da Europa moderna desde um ponto de vista lúcido, não apenas sobre a formação e o caminho intelectual e afetivo de um grande autor. É também pela própria forma que o livro ensina. Gosto particularmente dos termos técnicos dos quais o narrador não abre mão, gosto quando ele especifica uma borboleta sabendo que os olhos comuns não saberiam diferenciá-la. E também da noção de que é impossível que um olho se encante da mesma maneira por todas as coisas do mundo.
Em certa altura, Nabokov apresenta Yuri, um primo, mas também uma espécie de contraponto do narrador: magro, pálido, filho de pais separados, menino da cidade. Era um destemido, um amante das artes da guerra, mas tinha pavor de tocar em qualquer bicho. E também, lembra Nabokov, “colecionava soldadinhos de chumbo pintado, que não queriam dizer nada pra mim, mas cujos uniformes ele conhecia tão bem quanto eu conhecia diferentes borboletas”. É como se Nabokov nos dissesse com isso que é uma pena que tanta gente não consiga ver as borboletas como ele as vê, mas que tudo bem, porque ele também não consegue se interessar por todas as coisas. A lição talvez seja: encontre as suas borboletas, os seus soldadinhos de chumbo, as suas palavras preferidas e aprenda com isso a olhar o mundo com interesse. Não há outra maneira de se fazer arte. Yuri, por fim, teve um fim trágico, morreu em combate na Crimeia e parafrasear essa belíssima cena descrita por Nabokov não seria nada apropriado:
Havia um balanço no centro de um pequeno parque infantil circular cercado por jasmins no fundo de nosso jardim. Ajustamos as cordas de tal forma que o assento verde do balanço passasse a poucos centímetros da testa e do nariz de quem ficasse deitado de costas na areia embaixo. Um de nós começava a brincadeira em pé no assento, balançando com um impulso cada vez maior; o outro ficava deitado com a nuca num lugar marcado e, de uma altura que parecia enorme, o assento do balanço descia ventando sobre o rosto deitado. E três anos depois como oficial da cavalaria no exército de Denikin, ele foi morto combatendo os vermelhos no norte da Crimeia. Eu o vi morto em Yalta, toda a parte da frente do crânio afundada pelo impacto das balas, que o haviam atingido como o assento de ferro num balanço monstruoso […].
5.
Fala, memória teve um processo curioso. No prefácio, Nabokov explica que ele passou o verão de 1953 traduzindo para o russo esse livro que foi primeiramente escrito em inglês e que, depois desse processo, ele voltou ao original em inglês, percebendo pelo simultâneo envolvimento e distância que o trabalho em uma tradução proporciona, para aplicar as correções necessárias.
Esse re-inglesamento de uma re-versão russa que havia sido de início um re-contar em inglês de memórias russas, mostrou-se uma tarefa diabólica, mas o que me deu alguma consolação foi a ideia de que tais metamorfoses múltiplas, familiares às borboletas, não haviam sido tentadas por nenhum humano antes.
É bonito perceber que, no limite, as condições peculiares de sua biografia transformaram Nabokov num tipo muito raro de inseto.
E é claro, não podia ser diferente, em muitas camadas isso me lembrou da aula que Nabokov deu sobre A metamorfose, de Franz Kafka. Era de se esperar que para alguém ao mesmo tempo escritor e entomólogo, um livro cujo herói se transforma em um inseto renderia grandes descobertas. O capítulo sobre o Kafka é o meu preferido de Lições de literatura e acho que seja porque me imaginei saindo da sala depois dessa aula empolgadíssima, ansiosa por contar o segredo da novela mais famosa do Kafka.
Como sempre, mesmo considerando Kafka um dos grandes escritores de todos os tempos, chegando a afirmar que comparados a ele “Rilke e romancistas como Thomas Mann são anões ou ídolos dos pés de barro”, Nabokov posiciona-se diante desse livro de maneira a conseguir a distância necessária para vê-lo primeiro panoramicamente, como quem ajeita os instrumentos numa bancada. De onde veio Franz Kafka? De que material peculiar é feita sua literatura que nunca encontrou a maternidade de nenhuma língua? Como usa os adjetivos, como constrói os personagens?
Depois há uma constante aproximação, em que se esclarecem as estruturas repetidas ritmicamente pelo romance; a separação das partes (cenas); a análise de cada pedaço considerando o todo; até que ali, evidente na descrição do romance, pelo menos a um apaixonado por insetos, Nabokov descobre umas asas, das quais eu nunca tinha ouvido falar, umas asas que o besouro (é tão evidente que se trata de um besouro depois que ouvimos seus argumentos) Gregor Samsa não chegou a usar, mas sempre estiveram ali, como potência de leveza e liberdade.