Segundo o filósofo francês Paul Ricouer, são as narrativas que dão sentido ao tempo. Tempo que, no mais recente romance de Leticia Wierzchowski, é um elemento fundamental para a construção narrativa. O cenário principal é uma casa de praia onde duas histórias de vida se entrelaçam. Para dar sentido ao tempo, e conseguir lidar com as dores do passado, são as histórias — e a literatura — que auxiliam a narradora a superar os obstáculos que encontra frente às dificuldades da vida. Outros espaços aparecem na narrativa, já que alguns personagens se deslocam em viagens à Europa e ao Brasil, mas são as duas casas, no Uruguai e no Brasil, os espaços principais do livro.
O romance é narrado em primeira pessoa por Heloísa, uma editora de quase sessenta anos que, na juventude, conheceu, por meio do trabalho de revisão em uma grande casa editorial, uma consagrada escritora chamada Laura Berman, por quem ficou obcecada. Algumas coincidências entre a vida da editora e da escritora, mesmo depois de terem perdido o breve contato inicial nessa época, reforçam o interesse de Heloísa no passado da escritora. Após anos sem ter notícias de Laura, durante um período de luto em que necessitava urgentemente mudar de ambiente, surge a oportunidade de comprar a casa onde a escritora vivera com a sua família.
A casa é corpo
O espaço da casa, em um balneário idílico do Uruguai, surge como um elemento constitutivo do enredo, pois parece conter momentos e lembranças de um caso de amor e da construção de uma família que passam a interferir na vida de Heloísa. A casa de praia não é apenas um mero cenário, mas um espaço de registros, onde aqueles que por ela passaram — e onde foram felizes — deixam “pedaços” seus e de suas histórias pessoais. Passado e presente se reencontram, o que pode ser entendido como um delírio da personagem ou como uma amostra das infinitas possibilidades da ficção. Pelas lembranças de Laura, que feito pegadas habitam a casa de praia, Heloísa reconstrói, por meio de suas palavras e sua imaginação, as recordações de uma história de amor até os desencontros que se seguem, frutos do desgaste do tempo. São esses elementos que, ao longo do romance, ajudam Heloísa a finalmente narrar a sua própria história, pois só através do outro — e das narrativas — que a editora finalmente consegue se apropriar de suas lembranças, vivenciar o luto, enfrentar a sua solidão e reencontrar o seu lugar no mundo.
Assim, o romance intercala o passado de Laura, reconstruído por Heloísa a partir dessas marcas, objetos e fotografias deixados na casa pela família antes de partir, e a própria história de Heloísa, o seu divórcio e a redescoberta do amor anos mais tarde, seguidos de uma perda significativa em sua vida. Apesar de não ser escritora, Heloísa sente o impulso de escrever ao se deparar com imagens dos antigos moradores da casa que aparecem diariamente no seu presente habitado por taças de vinho e solidão. “Escrever é também uma forma de esperar”, diz a narradora, que começa então a escrever de forma a intercalar o passado de Laura que imagina estar vendo, seja por conta da bebida, seja pela imaginação, e todas as lembranças que silenciosamente a acompanham em seus dias de luto.
A leitura e os livros
Assim como os objetos carregam histórias, as fotografias e os livros no romance também têm o papel de eternizar momentos e ressuscitar lembranças sempre que são acessados. Para as personagens, a literatura, a fotografia e a arte fazem parte do cotidiano, cercam os seus mais rotineiros atos e são, por isso, elementos que com elas dialogam. São elementos formadores, mas também passam a levar consigo um pouco daqueles que com eles conviveram. Dessa forma, é importante observar o papel que os livros e a literatura assumem no romance, pois marcam momentos distintos da narrativa.
Leon se apaixona por Laura quando lê um de seus romances e sente o desejo incontrolável de conhecê-la pessoalmente. A história de amor dos dois sempre foi perpassada por outros textos, sejam os escritos por Laura, sejam outros livros lidos por Leon ao longo do tempo. O livro traz várias referências a outras obras, de poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen a Wislawa Szymborska, dos romances de Fitzgerald, Ford Madox Ford a Sándor Márai e Tolstói. É importante observar que os autores citados fazem parte do cânone, de forma que a simples menção aos seus nomes, aos quais já há um valor atribuído, confere também aos personagens algum valor e status social.
Nesse sentido, o romance abre espaço para reflexões sobre o lugar do escritor como sendo de prestígio a partir da interação entre Heloísa e a empregada doméstica, Eve, descrita como alguém que falava demais, que sempre queria conversar e de quem Heloísa sempre fugia com a desculpa de que estava tentando escrever. O trabalho do escritor é apresentado como uma tarefa refinada, que não é compreendida por aquela que realiza os serviços domésticos da casa.
Sempre que Heloísa precisa se aproximar do passado de Laura e sentir a presença dos antigos moradores na casa para enfrentar a sua solidão e conseguir continuar escrevendo a sua história, é por meio da leitura dos livros de Laura que essa aproximação acontece, reforçando, desse modo, a relação entre leitura e escrita, entre vida real e ficção:
Gosto de ler os seus livros, gosto mesmo. Gosto de buscar, no meio da sua ficção, as pistas da vida real que as páginas escondem. Ora, sei perfeitamente bem, pois sou uma leitora voraz, que a literatura é invenção, é criação, mas sempre há o pó da vida nos cantos da literatura, como pegadas, como marcas sutis da humanidade e do passo do autor.
O luto
O cerne do romance, contudo, é o processo de luto que as personagens vivenciam. Para Heloísa, o relacionamento com o jovem artista, Lucas, contribui para que ela recupere o gosto pela vida após o divórcio. Mas a doença súbita de Lucas e o doloroso processo de tratamento, embora breve, transformam completamente a vida da narradora. A escrita do romance, a partir das memórias sobre Laura, ajuda a personagem a narrar a sua própria dor, vivenciando o processo de luto que silenciou desde a morte do amante, e que só parece acabar quando a escrita dessa história chega ao fim.
Já Laura vivencia o luto simbólico pela separação do marido, que parte para a Europa, de onde só retorna anos depois. Em um estado de profunda tristeza, ela se isola do mundo e passa a viver em uma casa na Serra no sul do Brasil. Uma casa de vidro, uma metáfora da fragilidade emocional em que se encontra. Depois da separação, mesmo sendo uma escritora consagrada, Laura não consegue mais escrever, ou seja, sua escrita se associa inteiramente ao seu relacionamento com Leon. Antes disso, quando ainda era casada, o único livro que escreveu e recusado pela editora não foi lido por ele.
Assim, apesar de ter protagonistas femininas, e de narrar os pontos de interseção entre suas histórias de forma por vezes poética, as vidas das duas mulheres em Navegue a lágrima são voltadas para o relacionamento afetivo que possuem, o que pode reafirmar o discurso romântico de que só se pode ser feliz e completo em uma relação. Além disso, a própria escrita das personagens femininas só parece existir a partir de um relacionamento amoroso ou do processo de luto pela ausência dele.