O acaso é um elemento importante em nossas vidas, ao contrário de maktub, “estava escrito”, o acaso acontece. Aconteceu comigo. Antes de livreiro, fui banqueiro, quer dizer, sócio de uma banca de jornais e revistas. A experiência valeu. Por isso, vamos começar por ela. O grupo de jovens que ocupava duas mesas e oito cadeiras no café Rio Branco, com um cafezinho ficavam ali quatro, cinco horas papeando, sem serem cobrados por seu Quidoca, ou pelos garçons Emanoel e João Carradine, discutiam tudo e nada. Certo entardecer um dos componentes do grupo se virou e me disse: nós estamos aqui no lado direito, estás vendo que no lado esquerdo tem um espaço sem nada? Estou, respondi, e ele: em Florianópolis só temos uma banca de jornais e revistas, a do Beck, porque não abrimos outra? Retruquei, pra quê? Pra quê? Estamos mais ou menos desempregados, e isso pode dar uns trocadinhos. E como vamos pagar pelo espaço? Acredito que seu Quidoca vai aceitar a proposta que lhe faremos: a gente vai e diz pra ele que botando uma banca de jornais e de revistas o local vai ser mais freqüentado; não temos como pagar, mas todo dia ele pode escolher um jornal de qualquer parte do país e toda semana uma revista O Cruzeiro. Fomos, e não é que o homem aceitou? Colocamos uma estante, um balcão, e durante uns dois ou três anos funcionou a banca. Seu Quidoca pegava a revista mas raramente se interessava por um jornal. Na verdade, mais do que jornais e revistas, o que nos dava um retorno razoável era nas proximidades do Carnaval emendar dia e noite vendendo confete, serpentina e lança-perfume, até que em determinado momento, me virei para o Armando Carreirão e lhe disse: está na hora de abrirmos uma livraria que continuará vendendo jornais e revistas. Foi a vez de ele retrucar, pra quê? E eu: temos duas livrarias, a Moderna e a Rosa, que trabalham com livros, e outra que se aproveita de isenções fiscais para vender mais brinquedos e quinquilharias. Tanto a Rosa quanto a Moderna fazem um bom trabalho, mas nós vamos partir para outra linha, vender livros de editoras que eles não aceitam comerciar, como a Vitória, e livros estrangeiros: inovação na Ilha. Carreirão retrucou: só que, nesse caso, temos que procurar um ponto, esse pedacinho do café não serve, e lá certamente teremos de pagar aluguel. De novo eu: não custa arriscar.
Arriscamos. Conseguimos um pequeno espaço em um ponto bem central, na praça XV, quase esquina com a rua Conselheiro Mafra. Deu certo: logo a livraria se tornou conhecida, e um ponto de referência, onde circulavam no fim de tarde pessoas de todas as categorias e tendências, especialmente estudantes e gentes ligadas às letras e às artes. Perto da livraria Anita Garibaldi ficava o Miramar, onde, com ou sem um livro, ia se tomar uma cervejinha.
Não sei por que são raros os livros onde os próprios donos relatam suas experiências de livreiro. Devem existir por essas bandas, alguns, porém só conheço dois: Balcão de livraria, de Herbert Caro, que foi um excelente tradutor na editora do Globo de Porto Alegre, e Memorias de un librero, de Héctor Yánover, que foi também poeta, organizou algumas antologias de poesias, e durante anos foi referência no mercado editorial e literário de Buenos Aires. Há nesses dois livros, de leitura sumamente instigante, episódios curiosíssimos, não apenas para os viciados em livro mas para todo tipo de leitor. Cito apenas uma historinha de cada um deles: a primeira, do Herbert Caro: certo dia duas jovens entram, ficam percorrendo as estantes, retiram um livro, retiram outro, não se decidem, até que uma se vira para a outra e diz, por que insistes em dar de presente para teu namorado um livro, se ele já tem um? Vamos ali na loja ao lado e tu compra pra ele outra gravata. Agora o Héctor Yánover: uma senhora chega até o balcão onde ele estava e diz: vim aqui em busca de uma antologia de contos, e ele, de que autor, e ela, existe mais do que um?
Existem livros que falam de livreiros, escritos por pessoas que com eles conviveram, mas pouquíssimos como o Pequeno guia histórico das livrarias brasileiras, de Ubiratan Machado, lançado pela Ateliê Editorial, onde ele recua tentando resgatar a primeira livraria existente no Brasil e avança até os dias de hoje, conseguindo, através de 100 livrarias, abarcar todos os estados brasileiros. De cada uma, Ubiratan traça um rápido perfil. Minhas breves anotações são enriquecidas com o que diz Ubiratan Machado sobre a livraria Anita Garibaldi:
“Pela sua filosofia de trabalho, espírito novidadeiro e, sobretudo, a simpatia e cordialidade do sócio-proprietário, o escritor Salim Miguel, a Anita Garibaldi não teve similar na história das livrarias catarinenses e na vida literária de Florianópolis. Fundada em 1950, na Praça XV de Novembro, 27, foi a primeira livraria do Estado a importar livros. Vendia obras editadas na Argentina, México, França, Portugal, e até China e União Soviética. Foi pioneira também, dessa vez em termos nacionais, no estabelecimento de intercâmbio com uma livraria estrangeira, a Monteiro Lobato, de Montevidéu. Apesar do tamanho minúsculo, cerca de 30m², onde se exibiam livros, revistas e jornais, tornou-se um vibrante centro de reunião de escritores, artistas plásticos, políticos, operários de tendência esquerdista. Ficavam uns três ou quatro no interior da loja e os demais na porta, com as reuniões terminando sempre no Bar Miramar, espécie de prolongamento da livraria. Dois fatos dão idéia do espírito reinante na loja. Jorge Lacerda, quando governador do Estado, duas vezes por semana saía do palácio direto para a Anita Garibaldi, buquinava e conversava apenas sobre literatura. Em certa época, Miro Moraes passou a ler Kant, dentro da loja, pois não tinha dinheiro para comprar o livro. O próprio livreiro se incumbia de “esconder” o volume, até a leitura terminar. Como uma atração, a livraria era visitada por todo intelectual de fora que chegasse a Florianópolis. Por lá passaram o espalha-brasas Marques Rebelo, o mineiríssimo Ciro dos Anjos, e artistas plásticos como Carlos Scliar e Bruno Giorgi. Em 1964, com a paranóia que tomou conta do país, a livraria foi arrombada, saqueada e queimada. Foi o fim da Anita Garibaldi, mas sobretudo o fim de uma época”.
Acrescento:
1. O contista e tradutor Silveira de Souza, por então apenas João Paulo, ficava namorando um grosso exemplar da obra completa de Shakespeare, pois não tinha dinheiro para comprá-la. Então, o sócio e responsável pela livraria lhe fez a seguinte proposta: leva, porque, pelo jeito, ninguém mais está interessado, e vai pagando aos poucos, quando puderes; deve ter levado uns oito meses para pagar o livro.
2. Alguns amigos muito próximos tinham o hábito de sub-repticiamente enfiar um livro dentro da camisa e sair. O dono da livraria, embora notasse, nunca teve coragem de lhes pedir que devolvessem.
3. A livraria Anita Garibaldi trabalhou muito com uma importadora chamada mestre Jou.
A experiência de livreiro me ajudou a ser editor.
Agora encerrando para valer:
Em 1964, embora já não fosse de Armando Carreirão e Salim Miguel, a Anita Garibaldi continuava conhecida como a livraria do Salim.