Sade publicou os seis volumes de Histoire de Juliette ou les Prosperités du vice nos primeiros meses de 1801 — mais precisamente entre o fim de fevereiro e o início de março —, embora da publicação conste a data de 1797, expediente utilizado para ludibriar a censura. O Louis Sade em que se transformara o Marquês viveria ainda por pouco mais de uma década, e já havia passado pela experiência que, como destacam diversos intelectuais que se debruçaram sobre sua trajetória, determinaria o nascimento do escritor: o longo período encarcerado. Aprisionado aos trinta e poucos anos por violação dos costumes — essencialmente religiosos: fizera Jeanne Testard masturbar-se com um crucifixo e, num domingo de páscoa, flagelara Rose Keller, isso numa época em que atos sacrílegos podiam ensejar condenações à morte — e uma imprudência que quase tivera consequências fatais — durante uma orgia, servira a prostitutas uma dose excessiva de balas de anis com cantáridas, afrodisíaco tóxico comum na época —, Sade conseguira fugir, permanecendo períodos no estrangeiro, principalmente na Itália. Contudo, em 1777 fora finalmente capturado, com base em uma lettre de cachet fornecida pelo rei a pedido da Madame de Montreuil, a sogra que via os escândalos como uma ameaça à reputação familiar. Encarcerado por mais de uma década, primeiro em Vincennes, depois na Bastilha e em Charenton, Sade foi libertado em 2 de abril de 1790, graças ao decreto que abolia as lettres de cachet.
Se a prisão arruinara sua saúde — aos cinquenta anos, contava entre os problemas que o acometiam gastrite, reumatismo e enxaqueca —, Sade tinha em mãos milhares de páginas e a disposição para reconstruir a vida, não mais como marquês, mas como o cidadão e escritor Louis; teria consigo Marie-Constance Quesnet, ex-atriz que permaneceria ao seu lado até a morte. Os quatro volumes da Nouvelle Justine ou Les Malheurs de la vertu são publicados em meados de 1799; no início do ano seguinte, vêm à luz os seis da Histoire de Juliette. O jovem aristocrata fora aprisionado por concretizar as blasfemas fantasias, e o cidadão pagará o preço de materializar em palavras o que concebia na imaginação: por ordem de Napoleão, Sade é preso, acusado de ser o autor das obras publicadas anonimamente — e, principalmente, de ter assinado um panfleto que atacava diretamente o primeiro cônsul, que não nascera de sua pena. Levado para Saint-Pelágie, é outra vez levado para Charenton, de onde não mais sairá.
O que torna, afinal, a narrativa sadiana perniciosa a ponto de possibilitar a condenação do autor ao cárcere pelo resto de seus dias? A Histoire de Juliette encerra a trajetória da irmã mais velha de Justine, cujo percurso biográfico, além de mais longo, é inteiramente diverso: se, ao ver-se órfã e desprezada pela família, a piedosa caçula se esforça para preservar a virtude e resguardar os preceitos cristãos, Juliette desde cedo decide entregar-se ao crime, vivendo consoante os princípios materialistas e sensualistas que aprendera da abadessa Delbène — quando, em pleno convento, a jovem conhecera uma rotina em que se alternavam orgias e preleções filosóficas. Se a decisão de manter a conduta cristã ensejará, para Justine, uma vida de constantes infortúnios, e se a persistência com a qual procura manter-se virtuosa será recompensada com incessantes sofrimentos e humilhações, sua irmã terá um destino consideravelmente mais venturoso. Com notável perspicácia, Juliette será capaz de construir uma rede de relações que lhe permitirá superar os obstáculos e amealhar uma fortuna pessoal, migrando desde a margem da sociedade, quando trabalha como prostituta, e dos subterrâneos da criminalidade, quando se torna ladra e homicida, até a posição respeitável de viúva do Conde de Lorsange, por cuja morte é ela mesma a responsável. Eis, portanto, uma narrativa que figura um mundo no qual a virtude é punida e o vício é recompensado, o que explica a rejeição que enfrentou ao longo da história.
Construção dos personagens
A obra de Sade tem recebido as mais diversas leituras, e o livro de Clara Castro, Os libertinos de Sade, vem participar desse complexo debate. Originalmente concebido como tese de doutorado defendida no departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, o volume é prefaciado por Michel Delon, professor de literatura francesa do século 18 na Universidade Paris IV-Sorbonne e autoridade incontestável na obra de Sade, e tem ainda uma bela capa de Eder Cardoso, elaborada a partir de gravuras de edições setecentistas de títulos do marquês. A autora parte do pressuposto segundo o qual o pensamento exposto por Sade em suas narrativas não configura um sistema, constituindo antes a exposição fragmentária de uma mundivisão que se organiza mediante parâmetros romanescos; não cabe, portanto, atribuir os discursos de personagens — que encerram perspectivas diversas e, muitas vezes, contraditórias — a uma presença autoral que supostamente os unificaria, mas compreendê-los como expressões de figuras literárias que adotam posições particulares de acordo com suas características e seus lugares na trama ficcional. Os libertinos de Sade constitui, desse modo, um escrutínio dos procedimentos empregados para a construção dos personagens sadianos, explorando a multiplicidade de perspectivas libertinas presentes na Histoire de Juliette em articulação com a tradição filosófica e o contexto histórico e político em que floresceu o pensamento iluminista. Na visão de Clara, “a ficção sadiana não propõe um único estilo de vida, mas um banquete de opções para trabalhar o desejo, justificá-lo, satisfazê-lo. […] Cabe ao leitor ser filósofo e escolher o prato que mais lhe agrada, sem declamar contra o resto”.
Com efeito, basta acompanhar o modo como os escritos de Sade vêm sendo recebidos ao longo do tempo para constatar como sua obra permanece aberta às mais plurais interpretações; visto ora como apóstolo, ora como apóstata da liberdade, os discursos que o marquês entrega a seus personagens são lidos tanto como ataques à repressão quanto como encômios à tirania. Contudo, se Sade investe contra convenções morais, questiona a ordem política e examina a condição humana ao paroxismo, não pode deixar de ser um homem de seu tempo. Timo Airaksinen observou que o discurso do marquês preserva uma “essência feminina” tradicionalmente concebida; assim, mesmo Juliette, figura singular em seu vasto elenco ficcional, é concebida no âmbito de determinações precisas. Isso nada subtrai da densidade do pensamento sadiano; de fato, torna-o ainda mais desafiador, na medida em que demanda uma rigorosa contextualização da multiplicidade de discursos presentes em suas obras, a fim de que não se cometam anacronismos. A obra do marquês suscita, afinal, leituras que não abram mão da suspeita — sobretudo quando se trata de nós, dele separados por um abismo de dois séculos.