Os contos do livro De repente, uma batida na porta, publicado no Brasil em 2014, apresentam uma das especialidades do escritor israelense Etgar Keret: usar a fantasia para colocar humor e sensibilidade em situações tristes vividas pelos personagens. Em Sete anos bons, o livro mais recente, ele se mostra capaz de dar o mesmo tempero para acontecimentos reais.
O autobiográfico Sete anos bons está divido em sete partes. Cada uma representa um ano do filho do escritor, Lev. As 36 histórias percorrem desde o nascimento de Lev, em 2006, até a morte do pai de Keret, vítima de um câncer, em 2012.
A experiência de ser pai e filho ao mesmo tempo é repleta de incertezas e recordações. Os principais dramas vivenciados por Keret nesse período dão uma prévia no texto de abertura, De repente, o mesmo, um relato sobre o dia do nascimento de Lev. A esposa Shira, já em trabalho de parto, divide espaço no hospital com pessoas feridas em um ataque terrorista. Nesse cenário, Keret demonstra a primeira preocupação paterna: como explicar ao filho aquele mundo conturbado, e incentivar que o menino tenha alguma esperança com ele?
Parte da resposta aparece ali mesmo. Enquanto aguarda o atendimento no hospital, o autor é abordado por um repórter que lhe pede um depoimento sobre o atentado que acaba de acontecer. Ao saber que Keret está ali não pelo bombardeio, mas pelo nascimento do filho, o jornalista fica decepcionado. Queria a entrevista de alguém com um olhar original, como um escritor, para relatar o caso. “Depois de cada ataque, só consigo as mesmas reações: ‘De repente ouvi uma explosão’; ‘Não sei o que aconteceu’; ‘Ficou tudo coberto de sangue’. Até que ponto se pode aguentar isso?”, lamenta o homem.
Na sala de parto, quando ouve o choro do filho ao nascer, o escritor tenta acalmá-lo dizendo que ele sempre terá esse alguém original, “com um pouco de visão”, para lhe descrever tudo que acontece. E no decorrer do livro, é esse homem que encontramos: um pai preocupado em dar ao filho alguma explicação para as coisas do mundo, mesmo que precise simplificá-las usando a fantasia. Em Pastrami, ele, a esposa e Lev estão na estrada quando começa um ataque aéreo. Então Keret sugere que os três saiam do carro e façam uma brincadeira. Nela, Keret e Shira são fatias de pão, enquanto Lev é uma fatia de pastrami. Assim, ele consegue convencer o filho a deitar-se no chão com os dois, formando um sanduíche — na verdade, um posicionamento para proteção recomendado pelo Comando da Frente Interna nesses casos.
Mas ele não tem resposta para tudo. O Etgar que conhecemos em Sete anos bons tem segurança sobre suas ideias até que alguém, seja um amigo, o pai, o filho, a esposa — particularmente sagaz — o coloca em dúvida sobre algo que acredita. Até ser questionado, ele nunca havia pensado, por exemplo, se ia incentivar o filho a servir o exército de Israel quando crescer, como discute em Exército de fraldas. Em meio a esses questionamentos, é como se o escritor analisasse Lev, um ser humano em formação, para entender as pessoas.
Sete anos bons é feito de relatos autobiográficos, mas a impressão é de que cada situação, sob o olhar irônico e sensível do autor, tem o peso de um romance, contando uma história de Israel e da humanidade. E ele parece ter aprendido que é possível ser feliz nas circunstâncias mais cruéis.
Religião
O título do livro vem de uma passagem bíblica em Gênesis. Ao interpretar os sonhos do Faraó, com sete vacas gordas e sete belas espigas de milho, José explica que elas representam sete anos de fartura e prosperidade no Egito. No livro, esses anos bons representam o período em que, ao mesmo tempo, Keret consegue conviver com o filho e com o pai, duas pessoas influentes na sua vida. Além de inspirar o título, a religião aparece em alguns textos. Em Minha pranteada irmã, o autor nos apresenta a irmã judia ultraortodoxa, e ao mesmo tempo aproveita para refletir sobre a própria religiosidade.
Eu, quando se trata de religião, não tenho Deus. Quando estou bem, não preciso de ninguém, e quando estou me sentindo uma merda e aquele grande buraco vazio se abre dentro de mim, simplesmente sei que nunca houve um deus que pudesse preenchê-lo e que jamais haverá.
Tudo o que a irmã consome precisa da aprovação do rabino, precisa estar de acordo com suas crenças. Assim, ela jamais leu um conto de Keret. Ele relata que, uma vez, escreveu um livro infantil e dedicou aos sobrinhos. No contrato, a editora concordou em fazer um exemplar especial para eles. O ilustrador desenhou todos os homens com solidéus e cachinhos e as mulheres em vestimentas “recatadas”, conforme a tradição religiosa. Mas nem mesmo essa versão do livro ganhou a aprovação do rabino da irmã.
Viajar para se conhecer
Outro tema frequente em Sete anos bons são as viagens do autor, principalmente para eventos literários. Filho de poloneses sobreviventes do Holocausto, Keret se desloca com uma certa desconfiança em alguns lugares. Nesses relatos entendemos como ele se sente e se comporta, sendo judeu, quando está fora de seu país. Em Estranhos colegas de quarto, ele fica feliz ao dar uma palestra em Bali, na Indonésia, e notar simpatia nos olhos da plateia depois das suas primeiras palavras — ele era o primeiro escritor israelense a visitar Bali. Na Alemanha, um comportamento na defensiva. E é como se a exposição a essas situações o fizessem pertencem ainda mais a Tel Aviv.
Publicação
Alguns textos presentes em Sete anos bons já foram publicados em jornais. A decisão de transformar as histórias em livro foi motivada pela morte do pai do autor em 2012. Mas o livro não foi lançado em Israel. Em entrevistas, Keret explicou que não se sentiria confortável em expor esses relatos no país natal, pois o livro tem histórias que só se conta para desconhecidos, para pessoas que não vai mais encontrar.
A escrita e a vida
Entre os casos familiares, Keret encontra espaço para discutir a atividade da escrita. Algumas vezes com um tom cômico — como no excelente Meu primeiro conto, e outras vezes reflexivo, como em Apenas outro pecador, em que descreve o escritor como alguém que chafurda na lama com o leitor, e só assim consegue ser compreendido por ele.
O escritor não é nem santo, nem tzadik, nem profeta parado no portão; é apenas outro pecador com uma consciência um pouco mais aguda e uma linguagem ligeiramente mais precisa para usar na descrição da realidade inconcebível do nosso mundo. Ele não inventa um único sentimento ou pensamento — todos existiam muito antes dele. Ele não é nem um pouco melhor do que seus leitores — às vezes é muito pior — e assim deve ser. Se o escritor fosse um anjo, o abismo que o separa de nós seria tão grande que seu texto não se aproximaria o suficiente para nos tocar.
Com essa descrição, enxergamos novamente aquele pai preocupado no hospital no dia do nascimento do filho. Com o desafio de descrever a “realidade inconcebível do mundo”, para Lev, como filho, e para nós, como leitores distantes de Israel que, com o poder de empatia do autor, nos sentimos próximos e sensibilizados.