Porter é um estilo de cerveja que nasceu na Inglaterra e cuja história está diretamente ligada à Revolução Industrial. O líquido escuro, normalmente com entre 4% e 6% de álcool, levemente amargo, com sabores e aromas que lembram chocolate ou, quem sabe, café, estava presente no dia a dia dos funcionários das fábricas, nos portos e, claro, nos pubs ingleses. A história dessa cerveja se inicia no século 17, mas ela se tornou realmente popular, extrapolando as fronteiras inglesas e britânicas, no século 19.
Tão popular, aliás, que ganhou seu espaço inclusive em outros países de grande tradição com a bebida. Na Alemanha, por exemplo, mestres-cervejeiros criaram a variedade que ficou conhecida como German Porter — pouco original, né!? —, que seguia os padrões da cerveja inglesa, mas levava ingredientes alemães em sua receita, mudando, assim, seu perfil sensorial.
No entanto, no século 20, após a primeira guerra mundial e com a exacerbação do nacionalismo alemão, tudo que vinha da Inglaterra perdeu seu espaço na terra que se transformava na de Hitler. Com isso, a German Porter se tornou uma variedade praticamente extinta do estilo. Até hoje, com cervejeiros comumente recriando receitas antigas, não é fácil achar uma nova interpretação da variedade. No entanto, isso não é suficiente para apagar sua história, evidentemente.
E o que tudo isso tem a ver com literatura? Pois respondo. O que me despertou atenção para o estilo foi, ao ler A montanha mágica, monumento escrito pelo alemão Thomas Mann, perceber que em diversos momentos Hans Castorp, o protagonista, dizia que gostaria de tomar uma Porter, isso na Alemanha pré-guerra. Ou seja, a cerveja estava tão em evidência que chegou às páginas de uma das maiores obras literárias do século 20 — obra da qual a citação que abre este texto foi tirada, aliás.
Também é interessante notar como em algumas oportunidades a história da cerveja é alterada drasticamente por conta da guerra. Essas amarelinhas, levinhas, insossas que tomamos estupidamente geladas em qualquer boteco, sabe? Então, crias da junção do entreguerras com o pós-lei seca nos Estados Unidos mais o pós-Segunda Guerra. Em um período com escassez de malte e uma população com paladar infantilizado por conta de uma calamidade autoritária do governo, a cerveja com um monte de milho em sua composição e sem personalidade alguma veio muito bem a calhar para a indústria. O resultado daquele momento está aí até hoje.
Além das fronteiras
Konrad Petersen, um dos principais personagens de Malditas fronteiras — a obra que tenho de resenhar, finalmente! — é outro exemplo de como a guerra revira drasticamente histórias. No caso dele, mais a pessoal, mas também a cervejeira. Escrito por João Batista Melo, o livro foca em alemães que, por conta da ascensão do nazismo ao poder, precisaram mudar o rumo de suas vidas e, quase que ao acaso, vieram parar no Brasil.
Com isso, evidentemente, o autor mostra o conturbado momento que o próprio país vivia, enquanto ainda havia dúvida se politicamente e economicamente era melhor apoiar o Eixo ou os Aliados — algo do qual Miguel Sanches Neto também se aproveitou em seu mais recente livro, A segunda pátria. Um dos grandes trunfos do livro, que se desenrola com calma e paciência, é mostrar como os alemães criaram seu espaço no Brasil e, depois, como essas pessoas passaram a ser perseguidas pelos “cordiais” brasileiros por conta de suas origens após a nação se posicionar contrária aos nazistas e fascistas.
Dessa forma, Melo mostra uma cultura adentrando outra, a transição dessas culturas, como se mesclam e, evidentemente, as resistências que surgem do movimento. Apesar de utilizar um momento histórico já bastante desgastado na arte — quantas obras sobre a Segunda Guerra existem por aí? —, a discussão permanece atual e de suma importância. As fronteiras ainda hoje são malditas, como podemos ver a cada dias nos noticiários, que falam de pessoas que tentam entrar na Europa para escapar das calamidades que vivem no Oriente Médio ou na Ásia. Aqui mesmo, no Brasil, vemos a cada dia aumentar os casos de ódio contra imigrantes haitianos, bolivianos ou a gente de qualquer outro país mais pobre que o nosso. Brasileiro só aceita bem imigrante rico ou supostamente rico. O povo cordial é, na verdade, extremamente xenófobo.
Um busca da cerveja histórica
Mas enquanto essas tretas continuam aí, voltemos à cerveja. O livro de Melo está cheio dela, até descrições detalhadas — e quase que completamente precisas — do processo de produção da bebida estão nele. Em muitos trechos, a narrativa se torna praticamente uma veneração à bebida. Um deles: “Os hieróglifos egípcios falam sobre cerveja. O livro dos mortos também. E havia cerveja no mito de Gilgamesh, no Código de Hamurabi e nas histórias de Valhala e dos deuses nórdicos”. O autor sabe que a cerveja está em tudo, nos acompanha desde que deixamos de ser nômades — justamente para cultivar os grãos que originam a bebida, apontam algumas pesquisas, não para ficar fazendo pão —, sabe que ela salvou a humanidade em diversos momentos decisivos. E sabe também que ela está bastante presente na literatura. Disse que o trecho que abre esse texto é de Mann, mas não falei que ele também abre uma das divisões de Malditas fronteiras. Toda abertura de capítulo, aliás, traz uma referência à cerveja escrita por algum grande autor: Tolkien, Goethe, Dostoievski, Chesterton, Joyce, Ray Bradbury e Thomas Hardy, que inclusive dá nome a uma cervejaria cuja Barley Wine é uma espécie de fetiche de qualquer cervejeiro que se preze.
Enquanto toda a calamidade se desenrola, o mestre-cervejeiro da obra tem uma meta bastante clara: conseguir reproduzir uma antiga receita medieval que era feita por monges que tanto ajudaram a aprimorar a qualidade da bebida. Isso me lembrou de Sam Calagione, que encabeça a cervejaria Dogfish Head, dos Estados Unidos. Junto com Patrick McGovern, uma espécie de arqueólogo cervejeiro, eles criaram a Midas Touch, cerveja inspirada nos resquícios cervejeiros encontrados na tumba do Rei Mídas. Quem sabe Konrad não conseguisse algo parecido — conceitualmente, não sensorialmente, porque a cerveja da Idade Média já era muito diferente daquela do século 8 a.C. — se tivesse sucesso em sua empreitada.
Ao cabo, além do retrato da grande tragédia humana provocada pelo momento histórico, o livro de Melo deixa uma outra importante mensagem. “Mais tarde, encontrou-se com o monge cervejeiro e o reconheceu de uma juventude distante. Ele já estava ali, orando e produzindo barris de cerveja, quando Konrad saíra da adolescência.” É que, apesar da guerra, por mais que praticamente não tenhamos mais Porters alemãs, a cerveja sempre continua.