Ao lermos livros que abordam a vida dos militantes de organizações de esquerda, que viveram as ditaduras da América Latina, temos a falsa impressão de que o tempo passou e que suas histórias tornaram-se anacrônicas. No entanto, nada mais atual do que narrativas que recuperam este passado tão vilipendiado, impossível de ser destroçado por aqueles que negam a luta política e asseveram o fim das utopias. Para que exista humanidade, sempre será necessária alguma utopia. Por isso, é importante que a memória continue viva. Os dias de crise nas democracias da América Latina não podem servir de motivo para se jogar no lixo a história dos movimentos revolucionários. Muitos tombaram na luta pelos direitos democráticos, como liberdade de expressão e de organização; outros deram o sangue para manterem esta chama viva. Se a democracia ainda não nos é suficiente, se a justiça social tarda, não se pode dar razão a quem oprimiu todo um povo não faz muito tempo. Talvez seja hora de aprendermos um pouco mais e termos consciência de que, por mais que tenhamos feito, ainda vivemos a infância do modelo de governo que conhecemos como democracia. Aqueles que pensam em chamar as forças armadas para solucionar o que chamam de crise, que leiam o livro de Maria Pilla. Não se pode mudar o passado, é certo, mas que ele sirva para dar aos incautos uma mínima clarividência.
Volto semana que vem, no entanto, não é apenas luta política, ou melhor, isto é o que há de menor no livro. Ele recupera, antes de tudo, a memória de uma família, a memória dos amigos, dos que pereceram e, depois, a memória política de pelo menos dois países, Brasil e Argentina. Há inúmeros exemplos. A narrativa não obedece a cronologias. Não seria isto, porém, a memória? Como nos sonhos, o passado não nos chega ao pensamento com rigor cronológico, mas aos pedaços. As lembranças não obedecem a algum tipo de ordenamento; são elas, de certa forma, inconscientes. É assim que marcha a narrativa.
Do ponto de vista do gênero de texto, o livro assume-se como ficção, viés explorado por muitos autores nos dias de hoje, que transformam em narrativa de romance a memória pessoal. Todos seríamos heróis, e nossas vidas valeriam ser contadas num livro. Ou melhor, seremos heróis caso saibamos narrar com arte nossas histórias pessoais. Outro argumento, que endossa a afirmação sobre a validade de as memórias pessoais serem nomeadas ficção, vai a seguir. Nossas vidas só são possíveis quando colocadas como narrativas. E se estas não prescindem das palavras, e se estas mesmas palavras são sempre polifônicas, então é possível que nos constituamos como seres apenas no universo ficcional. Digo isto sem querer negar a veracidade do que cada um tenha vivido. A própria noção de verdade acaba por se tornar dúbia, porque verdade é ponto de vista de cada ser humano. Enfim, somos seres que se constituem por intermédios das palavras. E palavras não são um terreno tão seguro.
Diversidade
O livro de Maria Pilla tem 94 páginas, o que pode parecer pouco. Mas não é o que acontece quando nos propomos a lê-lo. A diversidade e a riqueza dos assuntos ultrapassam quantidades de tinta e de papel. Em capítulos pequenos e com um índice onde é possível, através dos títulos, ler a história de modo diverso da sequência de páginas, o fluxo é descontinuo e desconcertante, o que torna a narrativa surpreendente: 24 de Agosto; Verão portenho em Montmartre; Carlos Marighella, Alameda Casa Branca, São Paulo; O telefone de Devoto, etc. Há desde a morte de Getúlio Vargas e os consequentes distúrbios ocorridos na Porto Alegre de outrora, passando pelas lutas estudantis dos anos 1960, o golpe militar no Brasil, as ditaduras brasileira e argentina, o governo chileno de Salvador Allende, até a vida de uma militante em dois presídios argentinos, depois o exílio na França e a volta ao Brasil, esta talvez um pouco tarde demais. Além dos acontecimentos políticos, há pequenos casos na vida da protagonista, no universo de sua família e na vida de seus companheiros de lutas, além das divergências entre as esquerdas. Há muitos episódios interessantes, transcrevo alguns, com alterações devido ao espaço que me cabe nesta resenha.
Em 1970, quando o Brasil foi jogar um amistoso no estádio mais famoso da França, o Parc de Princes, militantes de esquerda abriram uma bandeira denunciando a tortura no Brasil. Mas os radialistas brasileiros não tiveram coragem de tocar no assunto. Há estações do ano solitárias pelas ruas e parques de Paris, como no outono, quando o vento que anuncia o inverno varre as folhas deixando vazios os nossos corações. Onde os amigos? Como vive a senhora que mora ao lado?, para quem o mundo é seu pequeno apartamento e o pedaço de rua por onde circula todas as manhãs.
Outro episódio, que aparece logo no início do livro. Uma mãe é presa em Buenos Aires. As forças de segurança acreditam que ela vai confessar onde o filho se encontra, mas o que escutam da mulher é o seguinte: “O senhor pode, por favor, guardar minha dentadura?”. E por que eu faria isso?”, pergunta o policial. “Vocês fazem as pessoas sofrerem… Neste caso eu vou gritar, e a dentadura pode cair no chão e quebrar, os senhores com certeza não vão me pagar outra nova, não é?” O policial a olha estupefato. A seguir, a narradora nos informa: “O filho foi morto num enfrentamento com a polícia. Permitiram que ela fosse, escoltada, ao velório dele. Cachita [a mãe] faleceu em Buenos Aires ao voltar do exílio. Tinha noventa anos”.
Um episódio acontecido logo após a assinatura do AI 5 mescla política e lembranças familiares, vem no capítulo que dá título ao livro Volto semana que vem:
Ué, guria, pra onde tu vai? O pai vestia um pijama claro, estava em pé na cozinha. Eu deveria sair por uns dias. Quis exagerar para não assustar, se demorasse mais que o previsto. Uma semana e estaria de volta. Poxa, tanto tempo assim? É. Mando notícias. Mais de dez anos se passam até eu voltar àquela cozinha.
Não falta a história sobre um morto que sempre retorna, no capítulo Verão portenho em Montmartre, mescla luta política e memórias sentimentais. Uma ação armada, um grupo revolucionário da zona sul de Buenos Aires desarma um policial em pleno ônibus, mas viaja um policial clandestino, que atira e mata um dos guerrilheiros. Anos após, em Paris, a narradora relembra a história junto com a companheira do militante falecido: “Não houve velório, não houve oração nem flores. A vítima precisava sumir. Júlia não enterrara seu morto, que retornava de vez em quando”.
Para encerrar, reproduzo aqui o capítulo Torre Eiffel, que transmite bem o espírito deste livro:
Para a mãe, minha militância é que tinha matado o pai de estresse. Fiquei aturdida. Não sabia como ordenar os argumentos para tirar de sua cabeça ideia tão bárbara. Era um dia de passeio pela Torre Eiffel. O bairro ao redor era vistoso, com suas casas burguesas, árvores grandes e frondosas, grama crescendo pelos espaços livres.
Quase em silêncio, tomamos o elevador para subir ao topo da torre. Naquele momento não havia turistas. Sozinha com ela no elevador, o diálogo veio difícil. Falei que pensar o que ela pensava criava discórdia entre nós, uma atmosfera de culpa, e que isso era o que a ditadura queria: dividir, separar do convívio os diferentes. Disse que o pai tinha morrido porque estava doente e que a medicina não conseguira mudar esse fato. Aos 58 anos, ele dava a impressão de já não querer viver. Par a mãe, foi uma perda tão devastadora que ela necessitava de uma explicação. Eu olhava para ela impotente. Ela baixou a cabeça, fungou, passou um lenço pelos olhos. O elevador parou e as portas se abriram para uma paisagem incrível. Naquele andar havia uma parede de vidro. Sobre a mão que apoiei instintivamente no parapeito, senti a mão dela. Pequenina, quente. Olhei de esguelha para ela. O belo sorriso, marca da mãe estava lá estampado. Então ela disse que eu tinha razão e iniciamos a descida de volta ao solo.