Em defesa da igualdade

"O sol é para todos", de Harper Lee, denuncia o racismo e a hipocrisia da sociedade
Harper Lee, autora de “O sol é para todos”
27/09/2015

Cinquenta e cinco anos depois da publicação de O sol é para todos, de Harper Lee, a discriminação racial ainda é um tema sempre em pauta e que merece ser discutido. Apesar dos avanços democráticos arduamente conquistados ao longo do tempo, ainda nos deparamos diariamente com fatos e notícias que revelam o quanto ainda não aprendemos a entender e a respeitar o outro, exercendo a tolerância diante das diferenças. Diferenças que deveriam ampliar a nossa visão de mundo, e não ser o motivo de violência e de injustiças. Talvez seja esse um dos motivos de O sol é para todos continuar sendo sucesso em todo o mundo, mesmo tantos anos depois. Ou talvez seja a identificação que sentimos diante do olhar de impotência e de decepção que as crianças protagonistas do romance sentem quando constatam as injustiças que ocorrem ao redor, sem nada poder fazer, cientes de que o caminho para a igualdade ainda é longo.

Ao retratar a sociedade estadunidense dos anos 1930 através do olhar inocente de uma menina de nove anos, Harper Lee conseguiu conquistar milhões de leitores no mundo inteiro. E ao narrar a vida de uma família que se distingue das demais pela possibilidade plena de diálogo e compreensão, a autora nos mostra a importância da comunicação honesta entre os membros de uma família para formar pessoas melhores. Pessoas capazes de conviver com as diferenças, aceitando opiniões e visões de mundo diferentes das suas e respeitando o direito que cada um tem de pensar de acordo com seus próprios valores e experiências.

Você só consegue entender uma pessoa de verdade quando vê as coisas do ponto de vista dela.

Ambientado no Alabama, sudeste dos Estados Unidos, nos anos 1930, o romance é narrado por Scout, uma menina de nove anos que vive com o pai, Atticus, um advogado viúvo, e o irmão de treze anos, Jem, em uma pequena cidade no interior do estado. O livro tem como eixo central um caso judicial que retrata o racismo no sul dos Estados Unidos, caso para o qual Atticus foi escalado como advogado de defesa. Paralelamente, somos transportados para a época da infância, quando as fantasias, as brincadeiras e os sonhos compõem os dias, mas não sem pequenos acontecimentos que aos poucos trazem a realidade dessa cidade do interior em atrito com o universo infantil das crianças. Durante toda a leitura somos levados a pensar a alteridade, pois a forma como vemos e imaginamos os outros diz muito de nós mesmos, de nossa formação, de nossa história de vida, de nosso caráter. Se na pequena cidade onde Scout e Jem vivem há fofocas, maledicência e julgamentos antecipados sobre o que se passa com os outros, sem ao menos conhecê-los, há também espaço para a bondade.

Olhar infantil
Na primeira parte do romance, acompanhamos as lembranças de infância de Scout, que pouco a pouco retrata o cotidiano na pequena cidade de Maycomb, que não difere muito das pequenas cidades do interior. O olhar infantil, ainda não corrompido pelas coisas do mundo, revela um lar repleto de compreensão e também uma criança muito madura para a sua idade. Órfã de mãe desde os dois anos, Scout pouco se lembra da presença materna e tem em Calpúrnia o afeto que supre essa ausência. Scout e o irmão encontram no pai, Atticus, um apoio sempre discreto, mas carinhoso e sincero. O diálogo que existe entre os três, somado ao carinho de Calpúrnia, uma empregada negra que cuida das crianças desde que nasceram, é fundamental para a construção das personagens e para o caminho de amadurecimento que percorrem durante o romance. São crianças que ainda estão descobrindo a vida, e que possuem a liberdade de perguntar ao pai sobre as suas dúvidas com a certeza de que terão uma resposta honesta.

Atticus é um homem solitário, que adora ler. O amor pelos livros tem grande influência na vida das crianças que desde pequenas acompanham o pai todas as noites na leitura dos jornais e dos livros. Quando Scout vai para a escola, o fato de já saber ler causa um desconforto na professora, que não sabe lidar com os conhecimentos aprendidos com o pai e também com Calpúrnia. Com isso, a autora provoca a pensar que, às vezes, a escola, com algumas fórmulas prontas, não consegue se adequar e também compreender os alunos como deveria, valorizando o conhecimento de mundo que cada aluno traz consigo.

Entre as brincadeiras da infância, compartilhadas por Scout, Jem e o amigo Dill, é possível perceber muitas das desigualdades que permeiam a sociedade. Há um colega que não leva o lanche para a escola porque a família não tem dinheiro; outro que só aparece no primeiro dia de aula para despistar a assistente social. O que parece já não ter muita importância para os adultos que se convenceram de que “a vida é assim” volta a ser questionado através do olhar das crianças, que não conseguem compreender a aceitação dessas desigualdades tampouco entender a hipocrisia daqueles que eram capazes de criticar Hitler, e, ao mesmo tempo, tratavam os negros como seres inferiores.

O sol é para todos defende a ideia de que todos somos iguais sob o sol; de que as diferenças que fazem de nós seres únicos não devem ser usadas para estabelecer uma hierarquia social. Em inglês, o título To kill a mockingbird (matar um rouxinol) é uma referência a um dos trechos mais bonitos do romance, quando Scout e Jem ganham uma espingarda de presente para caçar passarinhos. Atticus, mesmo tendo sido um excelente atirador no passado, avisa aos filhos para jamais machucarem um rouxinol, pois um rouxinol não faz mal a ninguém. É um lembrete de que devemos preservar a inocência, respeitando os que nos cercam, sem agir (ou reagir) com violência, sem ultrapassar aqueles limites que definem o nosso espaço e o espaço do outro. Uma lição sobre o que significa conviver.

Diante de uma acusação de estupro, ainda que sem provas, um jovem negro é preso e levado a julgamento. Cabe a Atticus defendê-lo na Corte, mesmo sabendo que uma acusação de um branco contra um negro naquela cidade em 1935 dificilmente seria contestada por conta de todo o preconceito enraizado na sociedade e no coração das pessoas. Por se posicionar em defesa do jovem acusado, tanto Atticus quanto seus filhos começam a ser constantemente hostilizados e até mesmo ameaçados.

Todo o processo do julgamento retratado na segunda parte do romance revela mais sobre os habitantes da cidade de Maycomb do que se esperava. Cada novo acontecimento demonstra a hipocrisia dos que julgam fazer o bem, quando na verdade ocultam suas verdadeiras ações e seu caráter por meio do discurso. Com isso, Harper Lee nos mostra o valor das nossas ações e da forma como vemos o outro: não a partir de nossa zona de conforto, mas tendo a humildade de nos imaginar em seu lugar, um passo essencial para compreender aquele ou aquela que é diferente de nós, mas não inferior.

Com uma narrativa extremamente envolvente, Harper Lee nos lembra de que diferença não deve ser sinônimo de inferioridade. E de que, às vezes, precisamos do olhar de uma criança para nos lembrar que “só existe um tipo de gente: gente”.

O sol é para todos

Harper Lee
Trad.: Beatriz Horta
José Olympio
350 págs.
Harper Lee
Nasceu em 28 de abril de 1926, no Alabama, Estados Unidos. Em 1961, ganhou o Prêmio Pulitzer por O sol é para todos, considerado um dos 100 melhores romances em língua inglesa desde 1900 e eleito pelos bibliotecários dos Estados Unidos em 2006 o livro que todos deveriam ler antes de morrer. O romance foi adaptado para o cinema em 1962 pelo diretor Robert Mulligan.
Paula Dutra

É professora, tradutora e doutora em Literatura pela UnB.

Rascunho