O sumiço

Um esboço de La disparition, de Georges Perec
Ilustração: Hallina Beltrão
27/08/2015

Tradução: Vinícius Gonçalves Carneiro

2[1]

Tônio Voguel

Que, no começo, tem o jeito de um livro conhecido de um homem que vive dormindo.

Insone, Tônio Voguel, com um toque no interruptor, enche de luz o dormitório. No relógio de Bolso de Zurique: cinco e quinze. Depois dum profundo suspiro, ergue-se do leito e estende-se sobre um coxim. Escolhe um livro, percorre, lê, só compreendendo um imbróglio confuso, sempre colidindo num termo desconhecido.

Põe o livro sobre o edredom. Dirige-se pro box, embebe um lenço no chuveiro e umedece o rosto, o pescoço, os ombros.

Seu pulso deve ser de cento e vinte por minuto. Ferve. Entre o chuveiro e o espelho, um postigo por onde com zelo entrevê o céu escuro, sente um frescor. Um rumor indiscernível vem do subúrbio. Sons tipo bordões, tensos como um sino, profundos como um gongo, doloridos como um estribilho, bem perto, por três vezes. Do porto, o ruído do movimento de um bote.

Sobre o peitoril, um bichinho de peito índigo e pelugem ocre, nem um percevejo, nem um gorgulho, e sim um tipo de grilo, provido de um filete de folhelho. Tônio se move, tendo em mente destruí-lo com um forte peteleco, porém, em voo ligeiro, o bicho some no céu escuro.

Restou-lhe repetir com o dedo o ritmo dum hino sobre o molde oblongo do postigo.

Escolhe um copo do escorredor, enche-o de leite fresco e bebe um longo gole. Menos tenso, no pufe e sem muito interesse, lê um periódico. Consome um crivo por inteiro, mesmo com o cheiro incômodo. Tosse.

Sem muito critério, percorre diferentes emissões de Fm: ouve um bolero típico seguindo-se um swing, e um twist, e um foxtrote e um xote de sucesso. Toquinho revê um choro de Vinícius, Chico um prelúdio de Debussy[2], os três tenores um solo de Rigoletto.

Deve ter dormido por um segundo, pois despertou de repente com os “Últimos Informes”. Nenhum de enorme relevo: no Chile, um túnel recém-construído fez vinte e cinco mortos; em Zurique, o rei Norodom excluiu-se do próximo encontro de líderes do mundo em Berlim[3]; em 10 Downing Street, o primeiro ministro prometeu correções no seguro desemprego — espécie de white lie, em bom inglês. No Kosovo, conflitos étnicos; em Freetown, zunzunzum dum golpe. Tufões em solo nipônico, e foi previsto o ingresso do ciclone de belo nome Mercedes no Território do Reino Unido no Índico, o que fez com que os residentes do perímetro em perigo fossem proscritos por helicópteros do tipo rotor gêmeo. Por fim, em Wimbledon, McEnroe vence Boris Becker em jogo decisivo por seis-três, um-seis, dez-oito, oito-seis.

Ele diminui o volume. Estende-se no solo, enche os pulmões e conclui cinco ou seis flexões, porém logo perde o fôlego e sucumbe de joelhos, murcho, com os olhos perdidos num misterioso croqui que, conforme o foco, surge ou some dos motivos déco em gesso do teto:

Por vezes vê um isósceles imperfeito, com um dos riscos pouco visível, bem pro centro: pode-se dizer um enorme V invertido.

Ou, níveo como neve, emergindo de um límpido nevoeiro, o espectro de um bispo de indumentos puros, com um cibório cônico de vidro, meio que cheio de leite.

Ou, por segundos, de três troncos estreitos, o surgimento de um esboço insuficiente: contornos espúrios que podem ser, num inútil exercício do intelecto, o Pico Cilindro, do Monte Perdido, quinto ou sexto cume dos Pireneus.

Ou, se impondo de repente, em voo sem jeito, o vulto de um grilo que tem sobre o peito negro um polígono de três segmentos, lívido como um lírio.

Ele foi longe. Perdido em reflexões, escrutinou o teto e viu surgir cinco, seis, vinte, vinte e seis composições, esboços incríveis, porém tênues, desvios inconsistentes, desenhos obscuros que ficou pondo e repondo em ordem, perseguindo o surgimento de um signo preciso, de um signo inteligível cujo sentido logo pudesse compreender; um signo que preenchesse seu desejo cognitivo em vez desse circuito de riscos incongruentes, um monte de esboços imperfeitos, em que todos, deve-se dizer, contribuem em urdir, em construir o molde de um primeiro esboço que quer fingir, reproduzir, convergir, porém que sempre diverge:

um torcedor, tiete ou tribo;

um girino, som do choque dos corpos ou Deus grego dos pegureiros;

o Deus do Sol do Egito;

um pelo de ovino;

ou o gesso dos dentes perversos, engolindo o servo rebelde de Deus, prendendo o primeiro criminoso, seduzindo o dono do Pequod: descendentes divinos detentores de um segredo proibido, substitutos dúbios revolvendo-se sem fim em torno de um conhecimento, de um poder perdido que, mesmo sumido, Voguel quer ver ressurgir.

Ele pirou. Os olhos fixos no teto produzem um tormento sem precedentes. Submerso por um monte de ilusões que seu cérebro lhe sugere de modo ininterrupto, crê discernir um nó, um núcleo desconhecido que segue com o dedo, e só com o dedo, pois sempre longe no momento do toque.

Birrento, prossegue. É impossível vencer o feitiço. Pode-se dizer que, num dos vértices do teto, um encontro de fios tece um ponto obscuro X enciclopédico, espelho do Imenso Todo que, de modo copioso, fornece o Infinito Cosmos, origem de onde comumente surge um horizonte irrestrito, poço sem fundo zero, terreno desconhecido em que Voguel circunscreve limites incríveis, confins sinuosos, turbilhões, muros enormes, presídio, cerco que ele nem por um segundo rompe…

Oito noites preso nesse universo, esmorecendo, embrutecendo, decompondo-se sob o teto oblongo, corpo e mente perdendo-se no empreendimento, no zelo dispendido. Com esforço, distingue um contorno, confere-lhe um nome, o veste, o constrói, ergue tudo o que envolve o enredo dum conto, olhos tristonhos, sem rumo, perseguindo o delírio dum momento divino em que tudo se expõe, em que tudo se dispõe.

Ele perde o fôlego. Nem esteio, nem leme, nem luz, somente vinte composições que restringem seus movimentos, que o impedem de fugir, mesmo que se considere perto dum desfecho, de bulir o fim do enredo: por vezes isso o fez se mover, pressentindo o desconhecido, querendo entendê-lo (e entende, sempre entendeu, pois tudo tem um jeito simples, comum, corriqueiro…), porém viu tudo se obscurecer, sumir: sobrou um murmúrio discreto, um fuzuê furtivo, um discurso prolixo. Um eclipse oculto. Um imbróglio.

Nem dormir ele pôde.

Por um longo tempo, deitou cedo, tendo bebido infusões com ópio, hipérico, sonífero ou outro tipo de entorpecente; tentou cobrir o rosto, listou bichinhos, pensou no zunido do grilo.

Depois de um momento dormiu, ou cochilou, pois nem deu vinte minutos e se pirulitou do leito, trêmulo. É o surgimento, o envolvendo, se inserindo, do espectro que persegue de modo obsessivo e, por um momento, por um breve momento, entende, vê, prende.

Ou empreende, pois nem tem como, sempre nem tem como: olhos fixos no teto, tudo some, exceto o ódio dum gozo interrompido, exceto o desgosto dum conhecimento incompreendido.

Com o vigor de um homem que dormiu o sono dos deuses, corre do dormitório, move-se, bebe, distingue os pormenores do céu, lê, ouve um pouco de Fm. Tem vezes em que se veste, foge, se perde, submerge num boteco, num puteiro ou no ronco do motor do seu veículo, que dirige (terrivelmente, é bom dizer) sem rumo preciso, por todos os sentidos, seguindo seus impulsos: em Neuilly ou Courbevoie, Limours ou Clichy, Montrouge, Orly. Esteve mesmo em Cerisy, onde ficou por três noites, insone.

Querendo dormir, fez tudo que pode. Pôs um robe com sinos, e um colete, e um lenço com nó no pescoço, e um pulôver fininho, e um short preso com um tope, e ficou nu em pelo. Trocou os lençóis pelo menos vinte vezes. Locou, por um preço obsceno, um dormitório; tentou dormir em leitos de feno, leitos de morte, leitos de pregos, leitos com mosquiteiro, beliches, colchonetes, redes, berços.

Tremendo sem cobertor, ferve com lençol, de linho ou nylon. Estende-se todo, depois como feto, depois como bebê com bumbum erguido; vê um hindu que oferece seu leito de pregos, e um iogue que lhe sugere erguer-se, pés um metro longe um do outro, tronco pendido e dedos dos membros superiores prendendo os dos inferiores.

É inútil. É impossível. Crê que pode conseguir e, pronto, vem tudo de novo, cobrindo-o, consumindo-o por dentro, zunindo por tudo. Oprimindo-o. Suprimindo o oxigênio.

Um vizinho compreensivo segue com ele direto pro Centro Clínico de Cochin. Voguel diz seu nome e o número do seguro. O médico confere o fundo dos seus olhos, mede o pulso e pede tomos do cérebro. Ele consente, e logo ouve do doutor:

— Você sente dor?[4]

— Um pouco — diz ele.

— O que você tem? Sem sono? Você tomou infusões? Tônicos?

— Sim, sem surtir efeito.

— Teve conjuntivite recentemente?

— De modo nenhum.

— Tosse?

— Isso sim.

— Sente dores no pescoço ou fronte?

— Sim

— Dor de ouvido?

— Nem é bem isso. Só posso dizer que de noite ouço o zum-zum-zum dum zumbido.

— Você ouve o zumbido dum grilo ou um zum-zum-zum fortuito?

Sem compreender, Voguel se omite.

É conduzido prum otorrino, um jovem risonho, de corte curto, rente, com um bigode longo e ruivo, óculos redondos, um lenço cinzento com pontinhos níveos e, entre os dedos, um crivo com cheiro de vinho. O otorrino vê o pulso, sente o fluxo, introduz um espelhinho redondo entre os dentes, mexe no pescoço, revolve o septo, conferindo se pode ser sinusite ou rinite ou bronquite. O procedimento clínico é um primor, porém seu silvo ininterrupto é um estorvo.

— Ui, ui, ui! —diz Voguel. Isso dói…

— Silêncio — responde o otorrino. É preciso que investiguemos melhor os pulmões.

Ele põe Voguel de peito pro teto num leito níveo e brilhoso, bule os dedos em três botões, mexe num interruptor, escurece tudo, obtém três fotos e enche de novo de luz o recinto. Voguel quer se mover no leito.

— Quietinho! — repreende o otorrino. Eu nem terminei, espere, pode ser que o senhor se intoxicou, e tenho que descobrir se existem indícios disso.

Põe um plugue num circuito e inflige no occipício punções de irídio com um instrumento que é como um tipo de bic, depois conclui o check-up com um tensiômetro, perquirindo o movimento do rotor de um relógio preso no bíceps.

— O ponteiro sobe muito — diz o otorrino desferindo petelecos no instrumento e mordendo o filtro do crivo. É sinusite que o constringe. Isso requer um procedimento cirúrgico.

— Cirúrgico! — interrompe Voguel inquieto.

— Sim, cirúrgico! — subscreve o doutor. Sem isso, o senhor pode ter pseudo-crupe.

Disse isso em tom jocoso. Sem entender bem se o médico zoou com ele ou foi somente objetivo, Voguel teve medo do seu humor negro. Pegou um lenço, cuspiu nele um pus vermelho e espumou de ódio:

— Bendito veredito, letrudo impostor! — conclui. Por que nem pensei em ver um neuro!?

— Ok, ok — responde cortês o otorrino. Depois de cinco ou seis doses de soro de vinte e cinco centilitros, veremos com melhor nitidez, porém primeiro verifiquemos o que temos.

Mexe no interfone, e logo surge o enfermeiro com um suéter violetoso:

— Sorel — diz o otorrino —, busque urgentemente nos centros clínicos de St-Louis, Croix St-Simon ou Courbervoie um remédio inibidor de trombos venosos.

Depois o doutor descreve o prospecto pro médico residente:

— Nome: Tonio Voguel. Check-up de oito de fevereiro: gripe leve, comprometimento dos cornetos, risco de extinguir o sentido odorífico, estenose do septo superior direito e infecções do epitélio que se estendem pelo tecido conjuntivo por onde corre o oxigênio; bloqueio de glote e epiglote pode ser um tipo de crupe. Remover o muco do septo deve impedir o mutismo.

Depois contém o desconforto de Voguel: remover o muco é um procedimento longo, minucioso, porém seguro. É conhecido desde Luís XVIII. Voguel nem deve esmorecer: menos de um mês e o incômodo some.

Em outro centro clínico, Voguel é disposto num dormitório onde tem vinte e seis leitos, sendo vinte e cinco com indivíduos meio que moribundos. Deve ingerir um sonífero poderoso (Clorprotixeno, Sibelium ou Nolotil). De noite, vem o Glorioso Preceptor com um séquito de futuros doutores, embebidos no seu discurso leitoso, rindo-se dos seus sorrisos. Por vezes interrompe o périplo num enfermo em crise, por um fio, produzindo no moribundo, com um toque no pulso, um ricto contorcido, gemente. Porém sempre vem com um consolo ou um dito jocoso; oferece bombons prum pequerrucho dodói, sorri pros progenitores. Nos cinco ou seis doentes crônicos, profere pros residentes um conjunto de conclusões e os porquês: Convulsões, Herpes, Enterocolite, Meningite, Torcicolo, Esclerose, Sífilis, Neurosífilis, Tuberculose.

Três noites depois, Voguel é conduzido num leito pro núcleo cirúrgico. O clorofórmio o entorpece, e otorrino introduz um tubo no seu focinho, depois vem o corte no furúnculo. Um feixe de pus escorre, permitindo que o médico limpe o septo. Segue-se o expurgo dos dejetos com um buril e, sem tremer, o bloqueio do fluxo, servindo-se dum tipo de torniquete prescrito por um inglês tem só três meses. Prossegue com punções no seio do septo, de onde é removido com um bisturi um fungo funesto, e depois o último ponto do procedimento: cozer com fogo o tumor modorrento.

— Muito bem — diz no fim pro enfermeiro embebido em suor —, o ferimento ficou bom. Sem infecções.

Ele pole com cotonete, cose com vicryl, cobre com mercúrio. O enfermeiro temeu por choques ou crises. O ferimento, sem imprevistos, fechou de vez.

Oito noites depois, Voguel pode ir: e foi mesmo. Temos que dizer que dormir continuou difícil; porém com menos sofrimento.

O TRADUTOR
Vinícius Gonçalves Carneiro

Nasceu em Porto Alegre (RS), em 1982. É mestre em Literatura Francesa e Lusófona pela UFRGS e doutor em Teoria Literária pela PUCRS com tese sobre a OuLIPO, para a qual começou a tradução de La disparition. Faz parte do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da UnB. No momento, vive na França onde traduz o romance de Alfred Jarry inédito no Brasil, Gestos e opiniões do doutor Faustroll, Patafísico, com bolsa da Fabrique Des Traducteurs, do Collège International des Traducteurs littéraires.

[1] No romance, diversos elementos estão conectados à ausência do “e”. Exemplo: o livro possui vinte e seis capítulos (número de letras do alfabeto francês), divididos em cinco partes (o número de vogais), sendo que não há nem o quinto capítulo (o “e” na série alfabética) nem a segunda parte (o “e” na série de vogais). Seguindo essa lógica, em português excluiu-se o primeiro capítulo (a posição do “a” no alfabeto e entre as vogais). Ou seja, após o Prólogo temos o capítulo dois. Além disso, em alguns momentos introduziu-se o artigo indefinido “um” para sinalizar, mesmo discretamente, o elemento ausente. Diversos outros jogos ocorrem no livro e desafiam a tradução. Apenas como exemplo, o nome “Tônio”, que abre este capítulo em português, vem de Antônio, sem “a”, e Voguel vem de vogal, assim como Voyl, no francês vem de voyelle. Ao longo da tradução, muitas escolhas assim tiveram que ser feitas. As mais marcantes estão assinaladas em breves notas ao longo deste capítulo.

[2] “Toquinho revê um choro de Vinícius”, “Chico um prelúdio de Debussy” e “Barbara un madrigal d’Aragon” são escolhas perfeitamente coerentes, tendo em vista o universo da canção popular do trecho original, conservando-se um jogo entre músicos e escritores.

[3] Há aqui uma correspondência sutil que foi conservada na tradução: se Washington do original é a capital de um país que começa por “e” (EUA), Berlim é a de um que começa por “a” (Alemanha).

[4] Tal como a tradução em espanhol, preferiu-se aqui montar um diálogo com travessões.

Georges Perec

Nasceu em 1936 e foi um dos grandes inovadores da literatura no século 20. Filho de judeus poloneses que imigraram para a França, perdeu o pai na frente de batalha, durante a Segunda Guerra, e a mãe num campo de concentração. Em 1965, recebeu o prestigioso prêmio Renaudot por As coisas, seu primeiro romance, e, em 1967, passou a integrar o centro de literatura experimental OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potencielle), fundado por Raymond Queneau. Sua prosa extremamente lúdica recorre à lógica e à matemática para lançar uma luz surpreendente sobre os detalhes mais repetitivos das sociedades de consumo. Perec morreu em 1982.

Rascunho