Alma e lama

Reedição de "Últimos sonetos" comprova a constante preocupação de Cruz e Sousa com a unidade e a síntese
João da Cruz e Sousa, autor de “Últimos sonetos”
01/10/2011

Cruz e Sousa é poeta obcecado pelo desprendimento. A crítica apontou-lhe, por exemplo, o desejo de embranquecer, o que o teria afastado de suas raízes negras. A aceitação irrestrita desse juízo levou a graves equívocos críticos, como o de atrelar a presença do branco em sua poesia a uma espécie de recalque étnico; todavia, não podemos negar que o Cisne Negro ostentava atributos da aristocracia branca, talvez como escudo contra os inúmeros preconceitos que sofria. Apesar de filho de escravos, recebeu educação então oferecida a brancos, já que, privilegiadamente, dela cuidaram os ex-senhores de seus pais. O desapossamento também se reflete na fortuna editorial de suas obras. Viu publicados quatro livros seus, dois em verso (Julieta dos Santos, de 1883, e Broquéis, dez anos depois) e dois em prosa (Tropos e fantasias, de 1885, em parceria com Virgílio Várzea, e Missal, de 1893). A produção remanescente só seria editada após sua morte (1898), por iniciativa de amigos como Nestor Vítor e Saturnino de Meireles. É assim que apareceram Evocações (1898, poemas em prosa), Faróis (1900, versos) e Últimos sonetos (1905).

Neste título, ora reeditado pela UFSC, enfeixam-se alguns de seus poemas fundamentais, como Livre!, Cárcere das almas, O assinalado e Longe de tudo, textos em que o corpo retém a alma sedenta de evasão. Como paliativos, há o sonho, a solidão, a arte, a morte ou a natureza, tendências simbolistas suficientemente estudadas. Pouco se investigou, entretanto, a forma que sustenta esse leque temático, lacuna que, no nosso entender, decorre de dois problemas recorrentes na crítica de poesia: a leitura isolada dos poemas, descolando-os dos livros, e o desprezo ou, sua contrapartida, a exacerbação dos aspectos técnicos.

A reduzida atenção aos significantes compromete sobremaneira a leitura dos Últimos sonetos, pois, a rigor, eles praticamente reincidem sobre os motivos mais ostensivos da obra cruzsousiana, o que, a princípio, não despertaria maior interesse. A temática do desapego, por exemplo, estampa-se já no primeiro poema, Piedade: “Sim! Que não ter um coração profundo/ É os olhos fechar à dor do mundo,/ Ficar inútil nos amargos trilhos” (nesta edição, lê-se “mudo” em vez de “mundo”…). No sonetário, muito freqüentemente, o assunto aparece no título, no primeiro verso ou, quando muito, no quarteto inicial, importando verificar como as demais estrofes e poemas modelam essas matrizes reincidentes. Caminhemos da micro para a macroestrutura do livro.

No âmbito textual, aferimos o déficit de marcações de primeira pessoa do discurso e a inflação da segunda e da terceira. O quadro acusa um projeto de despersonalização, em que o poeta se vai desbastando dos atributos individuais para, metafisicamente, alcançar uma essência pura e irredutível, comum a todos os seres; como se, para ser tudo, ele antes devesse ser ninguém. Em geral, o vate se situa em esfera supraterrena, de onde serenamente compartilha sua sabedoria. Algumas vezes, os ensinamentos são transmitidos por interlocução direta: “Mas sei que de alma em alma andas perdido/ Atrás de um belo mundo indefinido/ De Silêncio, de Amor, de Maravilha”; “As asas da minh’alma estão abertas!/ Podes te agasalhar no meu Carinho”. Noutras, predomina a terceira pessoa, empregada para desvendar verdades universais: “A Perfeição é a celeste ciência/ Da cristalização de almos encantos,/ De abandonar os mórbidos quebrantos/ E viver de uma oculta florescência.”; “Junto da Morte é que floresce a Vida!/ Andamos rindo junto à sepultura./ A boca aberta, escancarada, escura/ Da cova é como flor apodrecida”. Em ambos os casos, o do diálogo ou o da conceituação, o poeta parece desbotar seus rastros (daí a escassez de primeira pessoa), insinuando que a verdade do seu discurso independe de qualquer intervenção subjetiva.

No esforço de apagar-se, o sujeito sonda a personalidade alheia, para nela apreender o que houver de elementar e de revelador, convertendo a alteridade em experiência de autoconhecimento. Em Inefável, por exemplo, o poeta assume-se polifônico: “Todas as vozes que procuro e chamo/ Ouço-as dentro de mim, porque eu as amo/ Na minh’alma volteando arrebatas!”. Nessa pluralidade interior ele almeja encontrar o Ser dos Seres”, não por acaso, título do poema subseqüente.

O exame detido dos textos, bem como o de sua disposição no livro, demonstra que a ostensiva musicalidade e o encadeamento imagético algo redundante não configuram necessariamente um exagero formalista. Tais procedimentos, ao contrário, buscam flagrar no significante as fugidias evanescências perseguidas pelo significado. Leia-se Fogos-fátuos, em que se lamenta pelas almas que só provisoriamente atingem a plenitude: “É que no fundo, na secreta essência,/ Essas almas de triste decadência/ São lama sempre e sempre serão lama”. A repetição das sibilantes /s/ e do advérbio “sempre” faz paralelo com o ensimesmamento abordado, igualmente referido pela substituição do presente (“são”) pelo profético e aterrador futuro do indicativo (“serão”). Ademais, a similaridade entre “alma” e “lama” projeta na fonética o dilema entre a transcendência redentora e a materialidade aviltante. Essa isomorfia é recorrente na obra de Cruz e Sousa: Paulo Leminski, por exemplo, observou que, em Faz que tu’alma suplicando gema, verso de O assinalado, os vocábulos “alma” e “gema” forjam possível anagrama com “algema”, signo máximo do aprisionamento tratado no poema.

Mencionemos ainda o antológico soneto Livre!. De início, o pronome “nos” explicita o enunciador, que, aos poucos, será obnubilado pela atmosfera crescentemente genérica e indefinida:

Livre! Ser livre da matéria escrava,
Arrancar os grilhões que nos flagelam
E livre, penetrar nos Dons que selam
A alma e lhe emprestam toda a etérea lava.

(…)

Livre! para sentir a Natureza,
Para gozar, na universal Grandeza,
Fecundas e arcangélicas preguiças.

A gradual predominância de verbos no infinitivo (“sentir”, “gozar”) e a eliminação de formas conjugadas (“flagelam”, “selam”) confirmam a tendência impessoal do livro, enfatizada no poema contíguo, Cárcere das almas. A sonoridade cortante de /r/, herdada de Livre!, imita o rompimento do corpo e a superação da matéria, processos coroados pela ausência de primeira pessoa e pela abundância da terceira (“Toda alma num cárcere anda presa”; “Tudo se veste de uma igual grandeza”) e da segunda (“Ó almas presas, mudas e fechadas (…) Que chaveiro do Céu possui as chaves/ Para abrir-vos as portas do Mistério?!”). Como se vê, os sonetos modulam-se uns aos outros, como variações sobre o mesmo tema: se Livre! acenava a eliminação do eu, Cárcere das almas consuma a empresa. Ainda na hipótese de não ter sido estabelecida por Cruz e Sousa, a disposição dos poemas merece análise, já que, em último caso, ela terá ficado sob responsabilidade de Nestor Vítor, amigo íntimo e profundo conhecedor da obra do Cisne Negro. Conforme consta do prólogo à primeira edição de Últimos sonetos, infelizmente descartado do atual volume, Cruz e Sousa confiou a Nestor seus manuscritos inéditos, de cuja publicação póstuma o amigo zelosamente cuidou, podendo ter interferido na ordem dos textos, o que de modo algum desautoriza o estudo da organização da obra.

Vale também indagar sobre as possíveis razões de, neste livro, Cruz e Sousa optar apenas por sonetos. Aparentemente, haveria conflito entre a efusão libertária dos simbolistas e a rigidez de quartetos e tercetos metrificados. No entanto, a composição proliferou no período. Cruz e Sousa, por exemplo, escreveu sonetos do primeiro ao último livro, tendo também praticado poemas mais longos, especialmente em Faróis (aliás, em nota à primeira deste livro, Nestor Vítor informa que, embora sem título definitivo, os Últimos sonetos, então inéditos, lhe chegaram separados dos demais manuscritos, o que demonstra o apreço do Cisne Negro por eles).

Para avaliar a questão, remetemos o leitor ao poema O soneto, reproduzido nesta página. Com sonoridade fluida, a primeira estrofe enaltece a elegância sintética do soneto, comparando sua concisão à de um “extravagante e mórbido esqueleto”. A segunda insiste no potencial sumarizador da forma (“graça nobre e grave do quarteto”, “sutil, secreta extravagância”), capaz de amoldar a caudalosidade do poeta (“original intolerância”), ordenando-a numa fluidez que “transborda de terceto em terceto”. Especularmente, a continuidade elogiada espraia-se na localização das palavras “quarteto” e “terceto”: se aquela recupera a primeira estrofe, esta anuncia a terceira, indicando que a segunda é o elo entre ambas. No penúltimo bloco, as laterais /l/ e as nasais /on/ (presentes no vocábulo “soneto”) suavizam a camada fônica, tornando-a condizente com a graciosidade do soneto. A última estância confere força iluminadora às rimas: como a música das procissões, elas detêm poder transformador, desentranhando dos fonemas e das imagens o “Sonho das almas dolorosas”. Enquanto o soneto parnasiano, convicto de sua sobriedade, queria-se acabado como um templo grego, o poema simbolista vive de seu devir, daquilo que ele, conscientemente ou não, poderá despertar. O livro é, por isso, um grande canto à Transfiguração, entendida como o dom de superar o provisório e atingir a eternidade (daí a valorização da arte): “O ser que é ser transfigura tudo em flores…”.

Acrescente-se que a natureza sintética do soneto faz dele o suporte mais apto a expressar a procura do essencial. Forma fixa, com regras pré-estabelecidas, ele demanda contenção subjetiva, ajustando-se ao propósito de supressão de toda particularidade. E Cruz e Sousa de fato se esmerou no requinte formal: os 14 versos de todos os poemas são decassílabos, na maioria heróicos (cesura na sexta sílaba), como se nessa rigorosa obediência o artista servisse antes à Arte do que a si.

Ultimando a vocação ascensional, o livro encerra-se com Pacto das almas, poema tripartido nos sonetos Para sempre!, Longe de tudo e Alma das Almas. O primeiro consagra a comunhão espiritual dos seres: “Ah! para sempre! para sempre! Agora/ Não nos separaremos nem um dia…”; “Minh’alma com a tu’alma goza e chora.// Para sempre está feito o augusto pacto!”. Aí se respira utopia, pontuada nas reticências finais: “Hão de enfim saciar esta sede…”. A seguir, vem a peça mais famosa da trinca, Longe de tudo, em que, tombando na realidade abjeta, o sujeito modera a euforia anterior:

(…)

Cá nesta humana e trágica miséria,
Nestes surdos abismos assassinos
Teremos de colher os atros destinos
A flor apodrecida e deletéria.


O baixo mundo que troveja e brama
Só nos mostra a caveira e só a lama,
Ah! só a lama e movimentos lassos…

Mas as almas irmãs, almas perfeitas,
Hão de trocar, nas Regiões eleitas,
Largos, profundos, imortais abraços!

O poeta não descrê da futura harmonia espiritual, mas já não a projeta tão entusiasmadamente: à linguagem pletórica do poema anterior (“Ah! para sempre! para sempre”; “Nunca mais, nunca mais”) sucede um discurso mais ponderado, que prevê a felicidade para algumas almas eleitas. Os Últimos sonetos abastecem-se, portanto, do dilema do poeta que, querendo-se assinalado, constata-se emparedado. Após verificar, involuntariamente, que sua alma é também lama, o vate se interroga quando encontrará a Alma das Almas, último poema do livro: “Quando te abraçarei na Eternidade?!”. Passa-se da utopia desbragada à meditação e daí à inquietude, indicada pela justaposição dos sinais “?!”.

Assim, a reedição encetada pela UFSC constitui excelente oportunidade para devolvermos os poemas a seus livros, sobretudo porque a unidade e a síntese foram duas preocupações constantes de Cruz e Sousa. Com projeto gráfico simpático e convidativo, Últimos sonetos é o primeiro título da coleção Repertório, constituída de “obras que ajudarão o leitor a compor uma biblioteca essencial”, conforme se lê na quarta capa. Dado o perfil do projeto, talvez seja conveniente, em futuras empreitadas, oferecer informações básicas sobre o autor ou livro editado, de modo a orientar minimamente os interessados.

Últimos sonetos
Cruz e Sousa
Editora da UFSC
104 págs.
João da Cruz e Sousa
Nasceu em Nossa Senhora do Desterro, hoje Florianópolis, em 1861, filho de negros alforriados. Poeta, colaborou em diversos jornais e revistas e foi um ativista que combateu a escravidão e o preconceito racial. Em 1893, com as obras Missal e Broquéis, consagra-se como fundador do Simbolismo brasileiro. Faleceu de tuberculose, em 1898. Postumamente, foram lançados Evocações, Faróis e Últimos sonetos e mais alguns inéditos.
Gilberto Araújo

Professor adjunto de literatura brasileira na UFRJ. Autor de Literatura brasileira: pontos de fuga (2014), dentre outros.

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