Aquarela carioca

Crônicas de Na dobra do dia quebram estereótipos e imagens pré-concebidas para mostrar outra cara do subúrbio carioca
Marcelo Moutinho Foto: Leo Aversa
26/08/2015

Há um fascínio amedrontado que paira sobre o subúrbio carioca. Poucos são aqueles que, ao desembarcar no Aeroporto do Galeão, olhando a igreja da Penha perdida numa montanha longínqua e cercada pelo Complexo do Alemão, não tenha um sentimento de comoção. É como se a paisagem com seu horizonte de montanhas tivesse a capacidade de transmitir tranquilidades, mas logo surge o medo medonho, a lembrança dos jornais a noticiar as tantas guerras que circulam por aqueles becos inatingíveis.

Estamos na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, com seu misto de terror e êxtase, enfim, como definiu o cronista José Carlos Oliveira.

O novo livro de Marcelo Moutinho, a reunião de crônicas Na dobra do dia, no entanto, quebra estereótipos e imagens pré-concebidas para mostrar uma outra cara do subúrbio carioca, onde ele foi criado. Ali vicejam as rodas de samba e as amizades sinceras. Com o tempo, o cronista mudou para a Barra, no outro lado da cidade, e aprendeu a circular pela elegância da Zona Sul — Ipanema e Copacabana. E antes de enxergar uma cidade partida, como viu Zuenir Ventura, abraçou uma comunidade unificada pelos mesmos dramas cotidianos, pelas mesmas paixões eternas e fugazes.

Como João do Rio, Moutinho vasculha todos os cantos do Rio de Janeiro. Como Rubem Braga, sabe catar a poesia desenhada em cada uma de suas calçadas, e como Nelson Rodrigues, arranca os dramas gregos de cada cidadão comum e os conta com lirismo e graça, como fez Fernando Sabino. Em outras palavras, Marcelo Moutinho retoma uma das mais sólidas tradições de nossa crônica, o texto feito para falar de uma cidade e não apenas o olhar individualista e petulante que tanta grassa nos cronistas de plantão.

Aliás, as crônicas de Na dobra do dia, involuntariamente, levam o leitor a se perguntar pelos caminhos ora seguidos pelos cronistas em atividade. Em geral esta gente se prende ao espaço para falar de suas preferências políticas, de suas queixas com o espaço urbano onde vivem, dos incômodos que atropelam suas vidas nem sempre interessantes. Já aquele ponto de respiro que merece o leitor em meio às notícias terrificantes dos jornais está cada vez mais negligenciado. Não que tudo esteja perdido, afinal Luis Fernando Verissimo e Ignácio de Loyola Brandão, entre outros, ainda estão aí para nos alentar.

Humor e placidez
Voltando ao texto de Marcelo Moutinho e ao Rio de Janeiro, o cronista desenha uma cidade idealizada, com seus problemas e suas mazelas, sim, mas tudo edulcorado pelas tintas do humor e da placidez. Até mesmo as perdas, como as mortes do pai e de alguns amigos, não são maculadas pela dor extrema. Das tragédias pessoais ficam a saudade e as impossibilidades determinadas pela ausência. Este otimismo, por sua vez, não lhe tira o senso crítico. Somente estamos diante de uma aquarela, não tão ufanista como aquela de Ari Barroso, mas tão vibrante e contente quanto.

E neste caleidoscópio vamos conhecendo um pouco do samba, das escolas onde passistas derramam emoções, da formação de um gosto musical. Foi no toca-fitas do carro do pai que o menino Marcelo ouviu, até com certo desgosto, grandes nomes da música popular. Altemar Dutra e Herivelto Martins aos poucos terminaram por educar seus ouvidos, levaram os sentidos do moço a apreender o apuro poético que havia nas letras que cantavam. Também deste ambiente que resguardava uma alegria atávica, o cronista trouxe o gosto pela boêmia, pelos chopes, pelos bares nostálgicos, os filhos diletos de uma cidade ainda ingênua. Sim, estes ambientes ainda sobrevivem, pelo menos é o que nos assegura o cronista.

Mas Moutinho estaria preso ao apenas folclórico se não conseguisse falar de algo além do “Rio de sambas e batucadas, de malandros e mulatas de requebros febris”, como no samba de Silas de Oliveira, da Império Serrano, como o cronista. Assim sua cidade, além de solar e sonora, se presta à reflexão.

As crônicas tecem os fios das letras e dos livros. A aventura de descobrir um texto perfeito, um autor requintado, a formação de um leitor compulsivo. E aí nos deparamos com algo que vai além do mero cotidiano, da mera euforia para cair numa reflexão embasada nos sentimentos oferecidos pelas leituras, as múltiplas leituras que possibilita a própria vida.

Com este cabedal é que Marcelo Moutinho trabalha o refinamento de uma linguagem própria das ruas, mas sem cair na facilidade da gíria passageira, armadilha tão antiga. Desde antes de 1912, quando o genial Elysio de Carvalho escreveu A gíria dos gatunos cariocas, que as expressões populares são um ponto de interesse dos intelectuais. Por isso, talvez, Moutinho as use com parcimônia, sem tirar qualquer entendimento do leitor comum, sem datar seu texto.

No mais são mesmo os panoramas de uma cidade viva, marcada pelos prazeres e as dores, e as agruras de um cronista. Ele sofre com a falta de assunto, ou com o excesso dele. O certo é que deita sua escrita pelos caminhos do deleite.

Um cronista de fato, com todos os requisitos de uma tradição já tão longa quanto fértil.

Na dobra do dia

Marcelo Moutinho
Rocco
225 págs.
Marcelo Moutinho
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1972. É autor dos livros A palavra ausente, Somos todos iguais nesta noite e Memória dos barcos, além do infantil A menina que perdeu as cores. Organizou a seleta de ensaios Canções do Rio e as antologias Dicionário amoroso da língua portuguesa e Prosas cariocas. Seus textos foram traduzidos para a França, Alemanha e Estados Unidos. Escreve crônicas no site Vida Breve.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

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