Apagar os vestígios

Chega ao Brasil A amiga genial, primeiro volume da série napolitana da excêntrica autora italiana Elena Ferrante
Ilustração: Theo Szczepanski
25/08/2015

1. Morre o autor
Em 1968 (não foi em um ano qualquer), Roland Barthes, num pequeno ensaio de cinco ou seis páginas, deu a notícia de que o Autor tinha morrido. Não era precisamente uma novidade. Desde que algumas cabeças reais rolaram na Bastilha a verdade deixara de ser anunciada por uma só criatura inspirada por Deus — o qual, aliás, também havia um tempo estava sendo substituído pelos elementos naturais, pelas máquinas a vapor e pelas dissecações.

No entanto, e paradoxalmente, para Roland Barthes é justo no fim na Idade Média que a figura, ou melhor, “a personagem do autor”, surgiu. Essa entidade seria, portanto, um fruto do pensamento racionalista e empírico que acreditava na inteireza das coisas (no indivíduo) e não por acaso contemporâneo ao nascimento do capitalismo. Se a literatura já não era mais o resultado dos sussurros de Deus ou das musas, agora ela vinha do gênio dos pensamentos conscientes de uma só pessoa, específica e inteira, de um só indivíduo genial, como se fosse possível que cada texto originasse do nada a si mesmo.

Mas sem milagre nada pode ser a origem de si mesmo, de modo que uma escritura sempre é, relembra Barthes, a mescla de outras escrituras, e o que um escritor faz é sempre imitar os mesmos gestos daqueles que o precederam. “Eu sou a verdade” é um tipo de enunciação que demanda uma fé um tanto démodé. “A literatura (seria melhor passar a dizer escritura)”, diz Barthes, “recusando-se a designar ao texto (e ao mundo como texto) um ‘segredo’, isto é, um sentido último, libera uma atividade que se poderia chamar contrateológica, propriamente revolucionária, pois a recusa de deter o sentido é recusar Deus e suas hipóteses, a razão, a ciência e a lei”.

E quem ocupou esse vazio que antes era Deus?

2. Espaço vazio
Mas na nossa velha conhecida sociedade do espetáculo essa não é uma perspectiva muito óbvia. Escrevo este ensaio há uns dias de começar a Flip deste ano. E não há nada mais poderoso para rebater a argumentação da morte do Autor que uma festa literária feita especificamente da presença material de Autores. Vivos — pelo menos em sua maioria. Nada contrariaria mais a notícia barthesiana que uma fila de autógrafos.

E talvez seja por isso, quer dizer, pela importância que até hoje é dada à imagem e à presença física, real e um tanto espetacular dos escritores, que o caso como o de Elena Ferrante seja mais noticiado pelo mistério que o envolve do que apenas pelas questões estritamente literárias.

Elena Ferrante é o pseudônimo de uma escritora italiana, provavelmente napolitana, cuja fama tem se espalhado pelo mundo desde que seus livros começaram a ganhar o mercado literário americano. Recebeu críticas de fôlego e muito elogiosas do poderoso crítico literário da The New Yorker, James Wood, muitos escritores americanos e de outros países citaram seu nome e o entusiasmo pela leitura dessas traduções e até John Waters publicou um vídeo indicando um de seus livros. Sem contar que, segundo uma resenha italiana (mais desconfiada que as internacionais), os romances de Ferrante foram citados por aí como acessórios indispensáveis para todos os que pretendessem parecer cool pelas ruas do Brooklin — um latte do Starbucks numa mão e o último da Ferrante na outra.

E apesar de toda essa excitação ao redor dela, não sabemos seu rosto. Não podemos curtir suas fotos no Instagram nem retuitar suas considerações sobre as polêmicas diárias. Elena Ferrante não só renuncia contatos pessoais com leitores e interessados, como nem chega a ser propriamente uma pessoa. Ela nada mais é que aquela que escreve e só existe durante a leitura. É a criação da artista que a sustenta. Não se trata apenas de mais um caso de autor recluso, não é um tipo italiano de Dalton Trevisan. Elena Ferrante talvez seja um adequado exemplo do “escriptor moderno” de Barthes, aquele que “nasce ao mesmo tempo que seu texto”.

Em uma carta ao crítico Goffredo Fofi, Elena, justificando sua escolha de jamais aparecer, nem em lançamentos, nem em qualquer evento, nem mesmo em fotografias, diz crer que o mercado editorial, para tornar o escritor vendável, precisa inventar um personagem, um ser cativante, presente. E nessa condição de vendável, ele é incluído no pacote em que se comercializa o livro que leva seu nome.

No entanto, Elena (mas aqui seria melhor dizer a pessoa que está por trás desse nome) acabou criando ela mesma uma personagem-ausente de si. E impossível que é de se separar da época em que se vive, é claro que sua ausência é explorada comercialmente. Boa parte da #FerranteFever é sustentada por esse mistério. O mistério desse corpo que ninguém vê, a não ser os seus editores, é por si só uma interessante (vendável) notícia. Mas como as tentativas de decifrações não persistem por muito tempo, chega uma hora em que é preciso olhar para a escritura, esta indubitavelmente presente.

3. A amiga genial
Amiga genial é o primeiro volume da série napolitana em quatro partes de Elena Ferrante, publicado pela primeira vez na Itália em 2011 e que chegou neste ano ao Brasil pela Biblioteca Azul, em tradução de Maurício Santana Dias. O romance conta a história da infância e da adolescência das amigas Elena Greco e Rafaella (ou Lila) Cerullo, e é como que um simultâneo plano e resultado do relato de Elena Greco, que começa a ser escrito quando ela descobre que Lila, a essa altura já uma senhora, sumiu de casa sem deixar vestígios. Motivada por esse acontecimento, por esse desaparecimento, ela escreve (mas ao mesmo tempo escreveu e escreverá) o texto que lemos.

Ou seja, o livro é todo virtualidade. Apesar das descrições das cenas, dos diálogos em citação direta, não é uma abertura àquilo que acontece, não são palavras que magicamente nos transportam para um presente, mas um relato daquilo de que Elena Greco se lembra ter acontecido. Em alguns trechos, descobrimos certos aspectos do passado junto com a narradora. “De fato esta é a primeira vez que busco palavras para aquele meu inesperado fim de férias”, escreve a certa altura.

A matéria do livro são as palavras. É para palavras escritas que apontam as palavras escritas ali. Eram as palavras que matavam (“crupe, tétano, tifo exantemático, gás, guerra, torno, escombros, trabalho, bombardeio, bomba, tuberculose, supuração”), eram as palavras que, ordenadas, indicavam quando a vida de Elena ia bem.

De novo me senti capaz, como se algo tivesse atingindo minha cabeça fazendo irromper imagens e palavras.

Lila desde sempre fascinou Elena. Lila era a primeira aluna da escola primária, tinha coragem de se enfiar por umas frestas no escuro porão da casa de Dom Achille (ele mesmo um tipo de encarnação do mal) e de enfrentar a professora. Seu rosto não era o mesmo rosto massudo das outras pessoas daquele bairro, e suas pernas finas eram ágeis, o oposto das roliças e claudicantes pernas da senhora Greco, a mãe por quem Elena sentia quase uma repugnância.

Era um grande privilégio. Oliviero sempre tinha a seu lado uma cadeira vazia, para onde convidava as melhores, como prêmio. Nos primeiros tempos, eu sentava a seu lado continuamente. Ela me exortava com muitas palavras encorajadoras, elogiava meus cachinhos louros e assim reforçava minha vontade de fazer bem feito, bem ao contrário de minha mãe, que, quando eu estava em casa, me cobria de críticas e até de insultos, que eu só queria era me meter num canto escuro e esperar que não me achasse nunca mais. Depois aconteceu que Dona Cerullo veio até nossa classe e a professora Oliviero nos revelou que Lila estava muito à frente de nós. Não só: chamou mais vezes a ela que a mim para sentar ao seu lado. Não sei dizer o que aquele rebaixamento causava dentro de mim, acho difícil, hoje, dizer com fidelidade e clareza o que senti. De início, talvez não tenha sentido nada, só um pouco de ciúme, como todas nós. Mas o certo é que justo naquele período me surgiu uma preocupação. Pensei que, embora minhas pernas funcionassem bem, eu corria o risco permanente de me tornar manca. Acordava com essa ideia na cabeça e me levantava logo da cama para ver se minhas pernas ainda estavam em ordem. Talvez por isso me tenha fixado em Lila, que tinha pernas magérrimas, ligeiras, sempre em movimento, balançando-as mesmo quando se sentava ao lado da professora, tanto que esta se irritava despachando-a para seu lugar. Algo me convenceu, então, de que se eu caminhasse sempre atrás dela, seguindo sua marcha, o passo de minha mãe, que entrara em minha mente e não saía mais, por fim, deixaria de me ameaçar. Decidi que deveria regular-me de acordo com aquela menina e nunca mais perdê-la de vista, ainda que ela se aborrecesse e me escorraçasse.

E foi assim, numa mistura de competição e inveja que Elena começou a seguir os passos seguros de Lila. E por muitos anos esta seria para aquela a esperança de escapar daquele bairro barulhento, mesquinho e cheio de violência. Para tentar acompanhar Lila, Elena estudava cada vez mais, tentava, sem muito sucesso, ler tantos livros quanto Lila e nada nunca parecia o suficiente. “Acho que estudava não tanto para a escola, mas para ela.”

Lila parecia saber de tudo, em tudo ela chegava primeiro, e mesmo na época em que Elena a ultrapassou nos anos de estudo, mesmo quando o assunto eram as lições do ginásio, que Lila nunca chegou a cursar, mesmo assim era sempre Lila que parecia a mais apta a ensinar.

E por muitas vezes Elena achou que os conhecimentos dos livros não eram suficientes. Não apenas para diminuir sua distância de Lila, sempre à frente de tudo, quanto para escapar do seu bairro, para definitivamente se distanciar de ser o que sua mãe era. Porque Lila, “por seu rosto anômalo ao bairro e talvez para toda a cidade de Nápoles”, não pareceria ser feita da mesma natureza que ela, Elena, porque o segredo do escape, se não estavam nos livros difíceis do ginásio nem nas lições de latim, só poderia vir de sua amiga genial.

Tanto em português quanto italiano, “gênio” tem um sentido antigo que remete a anjos que perderam a graça, a espíritos maus. É justamente a um gênio da natureza que Doutor Fausto, fazendo uso dos mistérios que aprendera com seu pai, evoca quando o pavor de não encontrar um sentido para sua vida, apesar daquele apinhado de livros que o sufoca em seu laboratório, o apavora. E é um outro tipo de gênio que aparece para oferecer ajuda. Mefistófeles, o gênio que tudo nega, o ser maligno do outro mundo, que aposta com Deus a corrupção de Fausto, parece sugerir que as respostas às suas angústias eles encontrariam em um passeio fora daquele lugar cheio de livros e instrumentos da ciência. O conhecimento verdadeiro seria, portanto, alcançado lado a lado com a maldade. Vinha de “recusar Deus e suas hipóteses, a razão, a ciência e a lei”.

E também Lila era má. “Faço as pessoas fazerem coisas erradas”, diz a certa altura do romance. E também sabia exercer seu poder. Nos momentos bons, quando Elena se sentia finalmente dona de um conhecimento só dela, sabia que bastava uma palavra, bastava qualquer palavra de reprovação para desfazer essa sutil segurança e seus temores da infância retornavam.

Por minha livre escolha resolvi a ajudar minha mãe a limpar a casa, a cozinhar, a arrumar a desordem deixada por meus irmãos, a cuidar da pequena Elisa. […] e eu pouco a pouco sentiria que os romances que leio são inúteis e que minha vida é esquálida, e em que me tornaria no futuro: uma vendedora gorda cheia de espinhas na papelaria em frente à paróquia, uma empregada solteirona da prefeitura, mais cedo ou mais tarde estrábica e claudicante.

Pois até o romance em si só existe por causa de Lila. Não apenas porque foi seu sumiço a motivação para Elena se relembrar da época em que se conheceram. Foi Lila, justamente nesses anos de formação, que ensinou a Elena como escrever, que a motivou a se “libertar dos tons artificiosos, das frases muito rígidas; experimentar uma escrita fluida e envolvente como a de Lila na carta de Ischia”. Foi Lila que retocou o texto que Elena enviaria a uma certa revista, foi a versão escrita com as letras de Lila que Elena enviou aos editores. “Decidi deixar o texto na grafia de Lila.”

E talvez seja por isso que maior que o temor de perder Lila de sua vida ou de continuar a ser eternamente a segunda em tudo foi a decepção de Elena quando começou a perceber que Lila pouco a pouco tinha desistido de ser quem sempre fora e se emaranhava nos jogos esperados às meninas com quatorze ou quinze anos daquela época. Ficou noiva de um homem rico, passou a frequentar mesas mais elegantes, a ter preocupações mais mundanas e a se emaranhar cada vez mais à vida regular do bairro. “Nela, em seus passos, eu me mirava desde pequena, para escapar de minha mãe. Tinha fracassado.”

Lila ia mesmo casar. Faria de fato uma festa enorme, chamaria todos os vizinhos. Lila estaria lá, ao lado da família do noivo, Stefano, filho do Dom Achille.

“Você acha que estou cometendo um erro?”

“Em quê?”

“Em me casar.”

[…]

[Lila] Ficou um tempo calada, mirando a água que brilhava na bacia, e então disse:

“Qualquer coisa que aconteça continue estudando.”

“Mais dois anos: depois pego meu diploma e terminou.”

“Não, não termine nunca: eu lhe dou o dinheiro, você precisa estudar sempre.”

Dei um risinho nervoso e disse:

“Obrigada, mas a certa altura a escola termina.”

“Não para você: você é minha amiga genial, precisa se tornar a melhor de todos, homens e mulheres.”

E então Lila casou. E naquela festa todos agiam como se tivessem um papel. Inclusive, principalmente, Lila. E por alguns poucos instantes o vazio que Lila deixou quase foi preenchido por Nino, o filho do poeta, por quem Elena tinha se apaixonado e cuja inteligência ela também admirava. “Nino, sim, podia tudo.” Ele era o responsável por ter indicado o texto de Elena àquela revista, mas que no fim não foi escolhido. Mas ele deixou a festa antes do fim. “Quando foi embora, tive a impressão de que desaparecera a única pessoa que tinha energia suficiente para me tirar daquele salão.”

Mas a violência, um tanto esperada mas nem por isso inconveniente, irrompeu na festa, calçada com os sapatos a que Lila tinha se dedicado por anos — logo depois de ter perdido o interesse em estudar, Lila desejou com muita força produzir sapatos elegantes na oficina de seu pai. E foi por causa dessa violência que Lila, como que saindo do transe em que tinha vivido nos últimos meses, voltou a contrair os olhos em fissura, como antes, quando ela indicava sem saber a Elena os caminhos para fora daquele bairro, fora daquela vida, e se tornou, súbito, indecifrável, como sempre tinha sido. Foi a violência que ali, no final do romance, nas últimas linhas do romance, deu uma mesma notícia dada por Mefistófeles a Fausto, logo depois de terem firmado a aposta.

No fim sereis sempre o que sois.
Por mais que os pés sobre altas solas coloqueis,
E useis perucas de milhões de anéis,
Haveis de ser sempre o que sois.

Vanessa C. Rodrigues

É escritora, pesquisadora de literatura e editora.

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