Desenterrando coisas

Aqui na Dinamarca, visita a Peter Poulsen — tradutor de Guimarães Rosa. Muito simpático. Vibeke, sua esposa, gentilíssima. Belo jantar.
Peter Poulsen
07/07/2015

16.10.1993
Aqui na Dinamarca, visita a Peter Poulsen — tradutor de Guimarães Rosa. Muito simpático. Vibeke, sua esposa, gentilíssima. Belo jantar.

Poulsen contando estórias sobre sua peripécia de traduzir Guimarães Rosa. Ganhou uma bolsa de estudos e veio ao Brasil sentir o cheiro e o sabor do sertão, para poder traduzir bem o Rosa. Brincava com as dificuldades que encontrou: “A palavra nonada até que era fácil. Difícil era traduzir, por exemplo, coisíssima nenhuma”.

16.10.1999
Jantamos dia 14 na casa de Affonso Arinos de Mello Franco, homenagem a Monique Le Moing, da revista Sigila. Presentes: D. Cleo, Marina, eu, Chico, e mulher, Naum, Afonsinho e sua esposa Bia.

Affonso contou-nos o caso de João Cabral no Itamaraty em 1952. Ele, João, havia mandado uma carta pessoal a outro diplomata, onde mencionava “o nosso Luiz Carlos”. Um certo diplomata desviou a carta para Lacerda, que começou um clima de Guerra Fria falando que o Itamaraty era um ninho de comunistas. (Houaiss entrou nisso, porque votou na ONU a favor de Angola, dizendo que tinha “orgulho” de votar pelo fim do colonialismo. O embaixador português no Brasil foi pedir a sua cabeça. Acho que isso foi já em 1964).

O que eu não sabia é que Affonso levou João à casa de Lacerda. João estava afastado do Itamaraty há uns dois anos, sem salário. Ao ser reintegrado, foi indicado discretamente para trabalhar no “Arquivo de las Indias, em Sevilha. Como temia novos ataques, Affonso levou João ao Carlos, que o recebeu. João, aflitíssimo, dizendo a cada três palavras “compreendo”, ouviu de Lacerda que este não faria mais nada contra ele. Contou que tinha sido comunista e achava que João era apenas um “inocente útil”, como se dizia.

31.08.2006
Venho do Festival do Café que se realiza em 23 fazendas da velha região cafeeira do Estado do Rio. Era por ali que a corte tinha seus barões e viscondes instalados nas grandes fazendas escravagistas.

Minha apresentação ao lado de Turíbio Santos, por causa da chuva, foi transferida para a sede da fazenda. Uns 100/200 pessoas distribuídas pelos salões nos ouviam atentamente. Revezamos música e poesia. Foi bom. As pessoas diziam que haviam descoberto a poesia ali. É como se houvessem descoberto a quarta dimensão da linguagem.

E na manhã seguinte uma senhora me revelando no café que seu marido morreu enquanto ela lia para ele uma crônica minha.

05.05.2011
Enterrando e desenterrando textos. Recebi de uma mineradora, em Minas, o pedido para escrever um texto que deve ser enterrado nesses dias e desenterrado daqui a uns 15 ou 20 anos. Junto com o texto serão enterrados vários documentos e objetos que retratam os dias de hoje.

Claro que fiz o texto.

O mais espantoso: eu havia me esquecido que havia feito para a mesma mineradora, há alguns anos, outro texto para o mesmo tipo de evento.

Tive que desenterrar coisas da memória e elaborar, com certo prazer arqueológico, um texto novo.

Advertência: se eu quisesse ganhar dinheiro & fama, inclusive na Bienal de Kassel, eu diria que isso é uma “instalação”.

10.01.2011
Meu inconsciente guiou-me para outra coisa depois. Só agora me dei conta: localizei o Manifesto Comunista na internet. Fui atrás do Manifesto com um álibi, estou fazendo um curso para o Cláudio Moura Castro (lá no Positivo/Curitiba) e pensei que esse texto poderia ser lido pelos alunos. Acho que nunca o havia lido inteiramente. Fiquei horrorizado. Como foi possível essa alucinação e tanta gente embarcando nessa ficção?

O curioso, já que é internet, já que é um site, no meio do manifesto tinha propaganda de uns produtos.

É demais, publicidade capitalista no meio do texto comunista.

25.07.2011
Recebo, dedicado a mim e à Marina, O vento do mar, belo livro em papel couchê, fotos coloridas, antologia no final, dando conta da trajetória literária de Ledo Ivo. Começo a ler num final de tarde com curiosidade. É um balanço de sua vida, mas ele preferiu, além de alguma coisa biográfica esparsa, fazer o perfil de algumas pessoas que lhe eram próximas: Graciliano, José Lins, Bandeira, Vicente do Rego Monteiro, A. Athayde, Rachel e outros.

Boa estratégia. Mas me chama a atenção algumas anotações que ele fez sobre esses personagens. Têm alguma indiscrição, mas contribuem para entender esses autores e até o próprio Ledo. Aliás, é interessante que ele não tenha feito o perfil de João Cabral a quem foi tão ligado. O qual, nas cartas ao Bandeira, quando era diplomata na Espanha, faz uma menção pejorativa ao Ledo, dizendo que lá havia uma porção de Ledo Ivo. Bandeira também nessas cartas diz algumas coisas pouco amenas sobre Ledo.

Percebe-se que Ledo fez o que muitos faziam: aproximava-se dos mais famosos. Foi assim naquela foto em que ele tem 14 anos mas já está posando entre os intelectuais de Alagoas. E no Rio procurou os que admirava.

Coisas curiosas do livro:

1. Ledo como um intelectual malsinando. No fundo livraria José Olympio:

— Você não vai conseguir nada, meu filho (lhe diz um escritor).

2. Bandeira e outros diziam: “Ledo Ivo, de quê?”: achavam que devia ter sobrenome e o chamavam de Araújo, etc.

3. Sobre Graciliano: “Respeitava Machado de Assis mas em certas horas o chamava de ‘negro metido a inglês’”.

Por outro lado Graciliano era muito cioso de sua branquidade, e tinha preconceitos raciais. São numerosas, em sua obra, as alusões depreciativas a mulatos ou nordestinos amarelinhos. “Graciliano chegou até a perguntar ao antropólogo Artur Ramos se Heloisa, sua segunda mulher, era branca. E obteve dele a informação pouco tranquilizadora de que se casara com uma mestiça”.

“Considerava a arte moderna uma perversão infame- colocando-se na linha estalinista do realismo soviético”.

Graciliano elogiava José Lins como o maior de todos e sobre J. Amado exilado na Argentina: “Muito talento, mas escreve muito mal”.

“Considerava os trotskistas uma canalha tão odiosa quanto a dos nazistas, e que deveria ser varrida da face da terra”.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

Rascunho