Um bom passeio pela livraria, ao menos segundo os padrões que estabeleci, não dispensa a visita ao seu setor mais colorido: o de literatura infantil. Observar o que foi exposto em destaque, os livros em maior quantidade, como se dividem as seções — é por editora, autor, título ou tema? — é ação que provoca uma infinidade de questionamentos e descobertas. O que se passa pela cabeça das crianças de hoje — e de quem tem se dedicado a escrever para elas? Não tendo filhos ou crianças próximas a quem presentear, não são muitas as oportunidade que tenho de pedir uma indicação ao livreiro mais próximo; daí o autodidatismo que caracteriza minhas investigações.
Isso até começar a trabalhar em uma livraria. Duas semanas no novo emprego e alguns dos novos colegas se sentiram à vontade o suficiente para compartilhar comigo algumas de suas preferências, as que sempre enchem os olhos dos clientes — e de seus pais. Foi assim que me foram apresentados autores e ilustradores como Shaun Tan (com seu universo desmontado e reconstruído e suas reflexões melancólicas), Ian Falconer (sua protagonista mais famosa, Olivia, é uma porquinha erudita) e Stephen Michael King (bastante diferente de seu quase homônimo, ele se destaca pela sua visão doce dos relacionamentos humanos).
Foi nesse espírito que um vendedor me mostrou algo do Oliver Jeffers. O estilo não me era estranho — constatei que ele ilustrou a capa de alguns livros juvenis do momento, de John Boyne (A coisa horrível que aconteceu com Barnaby Brecket, Noah foge de casa e Fique onde está e então corra) a David Almond (O menino que nadava com piranhas). O sorrisão na cara do moço me convenceu: voltei para casa acompanhado de cinco títulos curtíssimos do autor.
O primeiro deles foi Achados e perdidos. Um menino encontra um pinguim de expressão atônita. Inicia-se assim a busca incessante pelo lar do animal perdido. O balanço entre a dificuldade de comunicação entre as personagens e a comunhão dos dois na etapa final da jornada dá espaço a uma importante lição sobre como lidar com encontros e perdas.
De um tipo diferente de perda fala O coração e a garrafa. A protagonista é uma menina curiosa pelo mundo cujas indagações e pesquisas são supervisionadas por um adulto, seu fiel escudeiro — pai ou avô, não sabemos — sendo os balões de diálogo preenchidos com ilustrações que retratam os temas alvo de sua atenção. Isso dura até o dia da morte deste, o que leva a garota à decisão de guardar o coração — fonte de sua curiosidade — numa garrafa, fora do peito: pelo menos assim não sofreria mais. Já adulta, no entanto, ela enfrenta as consequências dessa escolha ao encontrar uma criança muito parecida com a que ela mesma costumava ser.
O incrível menino devorador de livros foi escrito para mexer com os leitores vorazes, aqueles que tudo leem, o tempo inteiro. De modo semelhante ao que ocorre em O Sr. Raposo adora livros!, de Franziska Biermann, o protagonista do livro — Henrique — devora livros. Literalmente. Comendo-os, absorve o seu conhecimento, tornando-se o menino mais inteligente do mundo. Prefácios amarelados, páginas aleatórias em diversas línguas, cartões de biblioteca, tudo isso serve de plano de fundo para as colagens nas ilustrações. Até que surge a indigestão, fenômeno bastante parecido com a “ressaca literária” — incapacidade de ler qualquer coisa durante um tempo, especialmente após um livro muito bom. Como ele a superará?
Presos, por sua vez, começa como quem não quer nada. Felipe quer apenas soltar sua pipa, presa numa árvore. Primeiro tenta jogando um pé do sapato, que fica preso; depois arremessa o outro, que tem o mesmo destino. O que vem a seguir é uma sucessão nonsense de objetos jogados nessa empreitada, aliada a uma boa quantidade de quebras de expectativa.
Por fim, o recém-lançado A revolta dos gizes de cera parece potencializar uma das maiores qualidades desse ilustrador: sua capacidade de desenhar letras como uma criança faria. O texto, escrito por Drew Daywalt, narra a greve dos crayons de Diego, cada cor queixosa por um motivo diferente: o amarelo e o laranja querem o título exclusivo de “cor do sol”, o rosa deseja ser mais requisitado (e não apenas pela irmã do protagonista), o preto detesta ser relegado a contornos e o verde… bem, o verde não tem muito do que reclamar, está apenas preocupado com seus colegas.
A seguir, uma das cartas recebidas pelo menino após notar que a caixa de gizes de cera estava vazia:
Diego,
Aqui é o giz de cera CINZA.
Você está ACABANDO COMIGO!!!
Eu sei que você adora elefantes. E também sei que os elefantes são cinza… Mas eles são grandes DEMAIS para eu colorir tudo sozinho! Sem falar nos rinocerontes, nos hipopótamos, nas BALEIAS-JUBARTE… Eu fico tão cansado depois de colorir esses bichos ENORMES… Eles ocupam a folha inteirinha! Os filhotes de pinguim também são cinza, sabia? Assim como algumas pedrinhas minúsculas. Por que você não faz um desenho desses de vez em quando para me dar um descanso?
Seu amigo para lá de cansado,
Giz de cera Cinza.
Uma carta é mais surpreendente que a anterior e todas se acumulam em direção a um final colorido. E, aparentemente, uma continuação está a caminho.
Noto que, ao ler livros infantis, é como se encontrassem dois leitores: o adulto que capta nuances, pesca referências, faz comparações e pensa na sorte (ou não) que teria sido ler certa obra quando mais jovem; e a criança que restou em mim e se deslumbra e ri bobo e chora facinho, praticamente desprovida de ironia. Para unir as duas pontas da vida, bem casmurrianamente, não tenho dúvidas de que Oliver Jeffers é uma excelente indicação. Palavra de livreiro.