O romance brasileiro da atualidade passa por um período de transição. Cada vez mais os autores esquecem os dramas coletivos, marcas fortemente presentes nas obras modernistas e na literatura social das décadas de 1970 e 1980. Agora a norma é o individualismo, e sequer se carece de um discurso acadêmico e formal para se chegar a esta percepção. Os dramas pessoais e íntimos domam a narrativa contemporânea, a narrativa de um tempo por si só individualista, como muito bem observam os sociólogos de agora.
Luciana Pessanha apanha bem o espírito do momento em seu romance Que tipo de homem escreve uma história de amor?. É um romance ágil, mas também reflexivo. Tem um humor cínico e sutil. E, sobretudo, brinca com as recorrências da atualidade, com os personagens óbvios, com as gentes de hoje que lidam com uma linguagem espremida entre a informalidade e a necessidade de se mostrar sábia. Enfim, um texto contraditório e contemporâneo, como nosso tempo, que também é de leitura divertida e, por vezes, bem interessante.
Verônica ama Daniel que ama Ana que não ama ninguém. Verônica se veste de advogada frígida em sites de relacionamento, Daniel se deixa demitir para se tornar escritor e Ana corre o mundo em viagens aparentemente inventadas. E o enredo é mesmo esta espécie de quadrilha drummondiana, onde cada um vai viver sua vida, impondo suas vontades e desejos indiferente a quem lhe cerca. Este jogo faz do livro um retrato perfeito de um mundo onde tudo se lança para que o próximo sirva apenas de ponto de apoio e prazer, e nunca detenha em si o protagonismo. E aí os conflitos explodem.
Toda esta salada pode parecer mais um clichê dos tempos modernos, e Luciana parece que trabalhou exatamente com isso, os clichês. Eles se espalham por toda trama. Vão desde o chefe prepotente que exige que seu subordinado, caso queira o emprego de volta, vista a camisa de seu time do coração, até às paisagens melancólicas, frias e sombrias de estranhos países.
“Quando você começar a ler este livro, eu já estarei morto. (…) Minha morte acontecerá pouco antes do lançamento. A mulher que mais amo no mundo, a única que amei de verdade, a musa que habitou meus sonhos a vida toda, vai me matar.” Anuncia de início o protagonista narrador, num indiscutível clichê que ele próprio classifica de rodrigueano. E é esta linguagem moderna, rápida e coloquial, mas também de pontuação constante, quase tatibitate que dá mais um colorido contemporâneo ao livro.
Até mesmo as profissões dos personagens foram escolhidas, parece, como espelho do modismo atual. Verônica é a chef de cozinha que ganha a vida com a glamorosa condição de inventar cardápios mirabolantes; Daniel, o jornalista esportivo que provoca a própria demissão para se tornar escritor; e Ana, a vagabunda, a que não tem ocupação certa e que vai seguindo a vida em viagens que são fugas permanentes de seus próprios traumas. Aos poucos todos vão seguindo caminhos de ajustes, embora tais caminhos nem sempre levem à paz e ao sucesso, desejo de todos.
Ambiente de sombras
São todos, enfim, sobreviventes de um tempo de descrenças. Não é possível acreditar em nada, como não há qualquer possibilidade de se tirar uma flor de todo este lamaçal, para mais uma vez recorrer ao velho Drummond. Os três sobrevivem em cidades solares — Verônica e Daniel moram no Rio de Janeiro e Ana é resgatada em uma praia de litoral baiano. Mesmo assim criam para si um ambiente de sombras permanentes.
Neste ponto certamente se mostra uma maestria da prosa de Luciana Pessanha. Que tipo de homem escreveria uma história de amor? é um romance de entretenimento, pelo menos aparentemente. No entanto, suas raízes descem para aquilo que um dia se chamou romance psicológico. Embora superficiais em sua construção, os personagens se formalizam como um perfil sintético do mundo atual. São em si prepotentes, indiferentes e orgulhosos, embora não tenham poder nem motivos de orgulho. Num determinado momento chegaram ao sucesso, sonho de cem em cada cem viventes da atualidade, mas o fracasso subsequente é quem na verdade dita a condição de suas vidas.
É interessante, destarte, observar como Luciana, abusando dos clichês, consegue mapear e fotografar os dias do presente. Tudo parece recorrente e igual a tantas outras épocas vividas. Mesmo a história dos anos 1970, ponteada pela cultura das comunidades, revela que já então olhar o próprio umbigo era uma condicionante do tempo. Hoje o sentimento explodiu. Os homens atuais são semelhantes por preservarem suas diferenças. E é desta estranha gente que fala Luciana Pessanha.
Mas Que tipo de homem escreve uma história de amor? é um romance, não um tratado de sociologia. Daí a liberdade de divertir o leitor, embora também traga em seu bojo a capacidade de dirigi-lo à reflexão.
O livro de uma época, enfim.