Talvez, se perguntarmos aos generais, às grandes figuras históricas como Churchill, Napoleão, Roosevelt e outros líderes, obteremos como resposta que a guerra, qualquer uma, é um mal necessário quando a diplomacia falha. Em nossos livros de história, vemos todos os fatos que antecederam qualquer conflito e aparentemente temos a mesma conclusão — a de que o combate era inevitável. Os campos de batalha subsequentes produzirão heróis, medalhas e uma nova geografia.
Mas fica uma pergunta: o que será que pensam de todas essas razões os soldados, aqueles que realmente põem a vida em risco na frente de batalha? Será que eles estão tão de acordo assim com os motivos que levaram ao conflito? Será que todas as ordens que saem de gabinetes, de barracas de campanha montadas bem longe do front, são lógicas e produzirão bons resultados? Do outro lado, serão os inimigos filhos do demônio ou homens que nem nós?
Siegfried Sassoon foi um homem que se fez essas perguntas. Poeta e escritor inglês, nascido em 1886, Sassoon foi atraído para o exército ainda jovem, embalado pelos sonhos de glória que o império britânico criara após a Guerra dos Bôeres, ocorrida no fim do século 19. Sassoon entrou no exército em agosto de 1914, logo após o início da Primeira Guerra Mundial, como voluntário. Ele e milhares de outros jovens tinham o ideal romântico de lutar pela pátria e salvar o mundo da tirania. Sassoon chegou às trincheiras da França no fim de 1915, e viu que a realidade era bem diferente.
Memórias de um oficial de infantaria é seu segundo romance. Nele, Sassoon narra a trajetória de seu alter ego George Sherston e de como toda a inocência que o levou a se alistar para a guerra desaba a cada chuva nas trincheiras, a cada amigo que perde, vítima de um ataque mal planejado, a cada ordem do comando central que não faz o menor sentido. Pouco a pouco, Sherston/Sassoon se dá conta de que os motivos que deram início à guerra já não existem mais e que ela continua sabe-se lá por qual motivo. As trincheiras marcam territórios em que os avanços de aliados ou inimigos são praticamente nulos, e parece-se que há um desejo de que nada mude.
O livro cobre o período entre a primavera de 1916 e o fim de 1917. Durante esse tempo, Sherston/Sassoon é ferido duas vezes, e recebe a permissão de retornar à Inglaterra para completar o seu tratamento. A cada retorno, aumenta a angústia do oficial, ao perceber que há pessoas completamente alheias ao sofrimento dos soldados nas trincheiras, pessoas que continuam se empanturrando nos clubes londrinos, homens de negócio que enriquecem com a venda de material ao exército e o povo comum, que parece iludido com a propaganda governamental e continua achando que a guerra é um gesto nobre. Para Sherston/Sassoon, há um conluio de governantes, executivos e até mesmo do clero — a igreja anglicana que apoiou os conflitos — em detrimento do ser humano.
Memórias de um oficial de infantaria é, assim, uma jornada da inocência à realidade, narrada de forma direta. As duas primeiras frases do romance resumem o que iremos encontrar pela frente:
Que a primavera chegou atrasada em 1916, e que lá nas trincheiras em frente a Mametz era como se o inverno fosse durar para sempre, isso eu já disse. Também afirmei que, quanto a mim, havia mais ou menos decidido morrer, porque nas circunstâncias não parecia haver outra coisa a fazer. (trecho em destaque no original)
Estamos falando com alguém sem esperança de dias melhores. E a rotina em combate não traz esperanças mesmo. As mortes sucedem-se até se tornarem rotina. Os corpos vão sendo empilhados seja na terra de ninguém — a área entre duas trincheiras inimigas — seja ao lado das enfermarias que não conseguem salvar vidas. Morrer parece ser a melhor alternativa, na comparação com o sofrimento e a falta de sentido de cada ação.
Ao contrário do que poderia se esperar de um livro que trata de uma guerra, a narrativa de Sassoon é devagar. Não há grandes lances de ação, mesmo naqueles em que Sassoon explica como Sherston conquistou as suas medalhas por bravura há mais lirismo e poesia que uma narrativa acelerada. O autor repete o cenário do conflito, em que os fronts eram bem definidos e apresentavam poucas variações ao longo do tempo. A guerra de movimento seria uma novidade trazida pelos alemães em 1939.
Outra característica do texto é dar novos nomes a personagens reais daquela época. Mas Sassoon não tenta disfarçar muito a inspiração. Sabemos que Markington, o editor do jornal Unconservative Weekly, é Bertrand Russell, uma das poucas vozes que se opôs à guerra. Todos os colegas de farda têm nomes fictícios, mas são facilmente reconhecíveis. Assim, longe de ser uma ficção, Memórias é um relato quase pessoal das experiências do autor no conflito. Mesmo assim, o autor revisitou suas lembranças, dessa vez em livros autobiográficos: The Old Century, The Weald of Youth e Siegfried’s Journey.
Até certo ponto, pode-se ler Memórias como um diário. Há trechos transcritos do diário verdadeiro que Sherston/Sassoon manteve durante os dias em luta, que servem apenas para dar mais intensidade ao fluxo de lembranças que o autor vai descrevendo. E o autor também não glorifica o seu papel, nem de soldado destemido (ou insensato mas com muita sorte, como mostra o trecho em que ele captura uma trincheira alemã munido de uma granada apenas) nem de pacifista recém-convertido. Sassoon segue um fluxo de emoções. Sua única lealdade é com os homens que lutaram com ele, nada mais.
Trilogia
Memórias foi publicado em 1930 e faz parte de uma trilogia que compreende um livro sobre o período anterior à guerra, Memoirs of a Fox-Hunting Man, (1928), e Sherston’s Progress (1936), sobre o seu retorno ao front após o hospital psiquiátrico e o imediato pós-guerra. Sassoon é um dos 16 poetas da Grande Guerra homenageados no Poet’s Corner da Abadia de Westminster, em Londres, e é considerado, ao lado de Robert Graves (Good-Bye to All That, 1929) e Edmund Blunden (Undertones of War, 1928), o mais importante memorialista inglês da Primeira Guerra.