À literatura não cabe qualquer tipo de missão. Caso se queira atribuir-lhe alguma funcionalidade, esta se caracterizaria pelo ato de levantar questões, ação essencial para o ser humano exercer a reflexão. É bom dizer que mesmo fazendo o inventário das questões humanas, a literatura não tem o dever de respondê-las. Se a literatura exercita a reflexão, está consequentemente estimulando a imaginação, direito essencial do homem à liberdade. Privar o ser humano da imaginação seria privá-lo da liberdade. Talvez, por isso, sempre será muito difícil substituir a literatura por qualquer narrativa que privilegie o audiovisual.
O outro lado da sombra, de Mariana Portella, é um romance que envereda pela reflexão ao narrar parte da vida do personagem Soren, um italiano em constante crise familiar e existencial. O nome do protagonista não nega a vinculação do livro ao filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855). Filho de pai bem-sucedido financeiramente, que desaparece num acidente aéreo, ele herda a sociedade de uma empresa, na qual não consegue adaptar-se, resolvendo então viajar por alguns países, entre eles a Irlanda e a França.
O livro também traça, até certo ponto, a trajetória de Carlo, irmão mais novo do protagonista. Este mergulhado numa vida errante, ligada à criminalidade. Ambas as trajetórias cruzam-se em diversos momentos da narrativa, o que não deixa de causar prejuízo a Soren.
Narrado em primeira pessoa, o romance é ambientado na Europa, atestando a desterritorialização da atual literatura, inclusive da brasileira. Todo autor relata, na verdade, a própria experiência, e muitas vezes ela se encontra distante de seu país de origem, talvez este seja o caso da autora. Tal tipo de narrativa pode soar um pouco artificial apenas no princípio, pouco a pouco entramos na trama e constatamos que a literatura não possui nacionalidades. O mais importante neste livro, no entanto, é o duplo criado em função da relação entre estes dois irmãos em perene conflito. Na literatura de língua portuguesa, há exemplos muito pertinentes, entre eles, Esaú e Jacó, de Machado de Assis e, mais recentemente, Dois irmãos, de Milton Hatoum. A partir do duplo Soren e Carlo, desenrola-se o conflito existente no romance. Outro ponto digno de ser ressaltado é a família contemporânea, sempre dilacerada, com seus integrantes mergulhados na mais profunda solidão. Talvez a solução seja recorrer aos amigos, muitas vezes mais próximos do que os parentes sanguíneos. Isso também ocorre no romance. Há também Laura, uma ex-namorada de Soren. Ela faz de tudo para conquistá-lo; ele, porém, a todo momento tenta afastar-se dela.
A discussão sobre a morte e sobre o suicídio não escapa a Mariana Portella, deixando sequelas não só no protagonista, mas também nos outros personagens, e também no leitor. O que faz o ser humano perder a vontade de viver? A existência é inviável, sem sentido algum? Qual a postura necessária em relação à morte e à certeza de que somos finitos?
Fracasso existencial
O livro de Mariana Portella constata o fracasso do projeto existencial empreendido pela pós-modernidade. Apesar dos bens materiais e espirituais, da arte e do consumo possível à classe alta e à parte da classe média, o ser humano sente-se vazio, sem esperança, temeroso. A saída seria o amor, mas até este não se apresenta, ou quando surge mostra-se vazio de significado. O ser humano acaba por não mais possuir qualquer sentimento de culpa, tornando-se, entretanto, a maior vítima de si mesmo. A história flerta em algum momento com a religiosidade. Soren narra uma conversa que, na infância, travou com um padre:
Quando pequeno, durante o catecismo, perguntei ao padre se ele realmente acreditava na Bíblia, respondeu-me como nunca teria imaginado. “Respondo com outra pergunta, caro Soren, por que motivo você deveria não acreditar?” Olhei-o sem responder e ele prosseguiu: “Você vê, Soren, a esta pergunta ninguém encontra jamais a resposta, e sabe por quê? Porque não há! […] Crer é sinônimo de pensar, refletir, e daquilo de que mais gosto: imaginar. Você imagina que na sua vida, quando acabar as baterias, o depois não será escuro, mais luz, menos não preto, mais branco. E não descuide disso, pois pode imaginar o Éden”.
Talvez aqui a autora inclua a arte e por extensão a literatura como possibilidades para o ser humano. Se a imaginação é uma das razões para se crer, nada melhor do que contar histórias que nos apontem alguma saída.
O livro também entra pela via do realismo fantástico quando Soren, tal qual Ulisses (o de Homero), vai dar no aparente mundo dos mortos. Não quero dizer com isso que adianto o desfecho da narrativa, muito pelo contrário, apenas próximo ao final o leitor descobrirá a função desta parte do livro. Quem procura nacionalismos na literatura talvez, neste momento, identifique o caráter latino-americano desta novela de ambiência europeia. O que há de mais positivo, acima de tudo, é o domínio da linguagem, seguido pela construção das personagens.
“‘Meu amigo, você não está morto. Por isso pode ter sentimentos e aproveitar os seus sentidos’. Ouvir aquelas palavras fez-me esquecer tudo por um momento, senti-me leve, além do quarto escuro e da parede suja na qual apoiava as costas.” O trecho, além de exemplificar a viagem mencionada no parágrafo anterior, atesta a filosofia existencialista. Ao ser humano é possível todas as experiências, inclusive a de experimentar a morte. A passagem revela a vinculação da narrativa a um universo que poderia ser o do delírio ou o de um vislumbre espiritual. Mas a autora não nos dá a resposta, cabe ao leitor decifrar este enigma, se é que ele permite tal empreitada.
Mas, enfim, o que vale ao se falar de literatura é a linguagem, é ela que carrega todas as possibilidades de enredamento, e a autora sabe trabalhá-la como uma esmerada artífice. Na apresentação, Nélida Piñon diz que Soren, este “Kierkegaard moderno […] encara as angústias de seu tempo. Todos partícipes de um cenário perturbador e ilusionista, que oscila entre a magia civilizatória e um voluntarioso niilismo”. Ousaria dizer que Soren (o do romance) tende mais para o niilismo do que pela magia civilizatória, e o que faz sobressair o talento da autora é a linguagem, que nos chega no tom exato, incluindo as soluções encontradas em passagens que se afiguram como becos sem saída. O personagem de índole europeia acaba por perder-se num caricato niilismo. No final, há uma tentativa de salvá-lo, o que poderia parecer uma mancha romântica, ou, quem sabe, a tentativa de encontrar um lugar que se sabe inexistente. Não por vivermos num período de crise ou de superação das utopias, mas por ser característica da condição humana. Mais uma vez é a construção linguística que sai ganhando, como diz a autora pela voz de Soren: “rasguei-a [a carta] e joguei-a no meio dos trilhos. Quando o trem partiu, alguns pedaços levantaram e voaram pelo ar caindo perto de mim. Dei um chute, afastando-os dali. E de repente o mal-estar havia sumido. Estava em paz comigo mesmo”. Na verdade, não é um chute que afastará a dor de existir. Toda prenúncio de solução também não passará de ilusório. O outro lado da sombra permanecerá mais sombrio do que nunca, e o bem-estar de Soren é passageiro. A linguagem — e por extensão a literatura — é que leva à possibilidade de reflexão sobre a existência. Apenas isso faz o ato de existir perene.