A pátria que te traiu

A segunda pátria parte da hipótese do que aconteceria se Getúlio Vargas tivesse apoiado Hitler
Miguel Sanches Neto, autor de “A segunda pátria”
07/06/2015

“O pesadelo é o momento em que se vive com extrema intensidade o real.” A frase, quase ao final do romance A segunda pátria, é a que melhor define a força literária de uma história inteiramente construída a partir de uma suposição: “e se?”. Trata-se de uma realidade paralela, que bem poderia ter acontecido, assim como os pesadelos. Quando a gente acorda, parece que viveu, de fato, o que era apenas uma narrativa mirabolante elaborada pelo sono. A frase é, ainda, uma ótima definição para a ficção com referências históricas: quando o real de longe fica tão perto a ponto de fazer o leitor sentir que uma bomba pode explodir dentro do quarto — a qualquer momento. A ficção-pesadelo.

Foi mais ou menos o que fez Miguel Sanches Neto neste seu romance ambientando na Segunda Guerra, mas com o eixo voltado para o Brasil, a partir da pergunta: e se Getúlio Vargas tivesse apoiado Hitler, e os estados do Sul do país tivessem abraçado a herança germânica a ponto de virarem soldados/lobos do extermínio contra negros, índios e mestiços?

As respostas surgem de diversas formas. Na imaginação de Miguel Sanches Neto, veio a partir da criação da pequena história de personagens soterrados na grande história, que o autor pesquisou com dedicação. Escrever sobre como teria sido o Brasil caso o flerte de Getúlio Vargas com o nazismo tivesse virado casamento é uma aventura de pensamento que poderia ter sido repetitiva e massacrante. A opção acertada foi a de não enveredar por enredos de painel, deixando esfarelados os protagonistas em detrimento do cenário político. O autor estudou o cenário real e, dentro dele, pinçou personagens imaginários fortes e trabalhou os dramas de forma assustadora.

Ventura, Hertha (esta, em especial) e até o Führer passam a girar nos pesadelos ambulantes do quarto da leitura, que se transforma tridimensionalmente, com cores e cheiros, no mundo dos soldados urgentes: aquelas pessoas que antes não representavam perigo algum, mas que, de um dia para o outro, viram soldados violentos, delatores, perversos opressores e criminosos — máquinas de matar.

O que pensar, como agir, para onde fugir?

O primeiro personagem desenrola o fio de toda a meada; as pontas se juntam ao final de maneira surpreendente. O cenário é a cidade de Blumenau, onde o pesadelo começa. Adolpho (não à toa, claro) Ventura é um engenheiro culto, que tem o alemão como primeira língua (a pátria perto/distante). Mulato, pai de uma criança mestiça, ele assiste à ascensão do nazismo que rapidamente o transforma em prisioneiro a partir do momento em que recebe a intimação de comparecer à delegacia para depoimento. Não havia crime, apenas ódio pela miscigenação. Aos poucos, ele vai sendo ignorado, desprezado por seus empregados amigos, que se negam a servi-lo. Perde tudo, até mesmo os livros. É conduzido a uma lavoura como punição, para que suas mãos lisas e macias sejam adestradas ao trabalho pesado. As sequências em que ele se vê devastado pelo ódio são de uma verdade assustadora. O nazismo não queria homens cultos e talhados; queria, sim, transformar homens em lobos.

Silêncio
A partir daí, a língua alemã, que Adolpho tanto amara em sua vida inteira, e que costumava ser uma pátria para ele, pois na juventude fora protegido de uma família ariana, tendo estudado em escolas germânicas, foi transformada à força em silêncio. No campo, ele é obrigado a se calar para sobreviver. Percebe, aos solavancos, que havia escolhido para si uma identidade equivocada, uma vez que em toda a sua existência ele tentou ser o que jamais seria, ou o que jamais o deixariam ser.

O próprio corpo criava a sua proteção contra o mundo. Não precisava de invólucros. O trabalho e as andanças fizeram surgir outro homem, seus músculos enrijeceram, ele se sentia maior, já não sofria tanto nas tarefas agrícolas. Como estavam sempre no campo, no sol e na chuva, voltou a ter a vida tribal de seus antepassados. A África da qual fugira desde sempre estava em todo lugar. Aprendeu a se alimentar de frutas silvestres, encontradas no campo, a trabalhar poupando energia sem diminuir rendimento. Nunca imaginara que poderia ter essa outra vida. Errara quando, em seus anos de estudo, se sentia pertencer à Alemanha.

Outra personagem, a quem Adolpho está diretamente ligado, mas disso só se saberá mais adiante, é Hertha, a jovem sedutora, nazista mais bonita da história: descendente de alemães, ela vive em plena liberdade sexual. É tão poderosa fisicamente, que o corpo se torna a moeda de comunicação com o mundo; sua famosa “atuação” acaba a levando para um encontro com o próprio lobo/Füher: Hertha conhece a Alemanha de Hitler em sua intimidade. É a missão secreta que precisa realizar com espírito de obediência à pátria.

Com o tempo, porém, ela vivencia uma profunda transformação interna a partir do momento em que passa a refletir sobre o caos ao redor — as consequências do ódio arruinando tudo e todos, inclusive sua própria história: ela precisa se separar de seu grande amor e também de seu filho. Com o sofrimento, começa a se identificar não mais com seus pares nazistas, mas com aquele outro lado — o das ruínas dos massacrados, já que ela mesma está também massacrada, inteiramente em ruínas como as construções; seu vestido de estimação em retalhos (relíquia de um amor perdido, como logo se verá) é o símbolo de um tecido (pele) irrecuperável. Hertha não consegue se reerguer.

Os últimos meses revelaram a ânsia destruidora dos nazistas. E Hertha se sentia culpada por ter colaborado. Havia desenvolvido uma teoria na qual acreditava de forma absoluta. A história pode ser modificada com um pequeno gesto pessoal. Pode ser alterada ao se dormir ou não com alguém. Se você saiu com um homem bondoso, dando a ele uma alegria nova, a de poder ter como companhia uma mulher jovem e bela, esse homem tomará decisões acertadas e essas decisões desencadearão outras com energia semelhante.

Quase ao final da trama, além de não ter o filho perdido, Hertha se vê despojada de sua vontade de viver; já não tinha nem a beleza do corpo que durante a vida a tornara tão especial, nem tão pouco (e principalmente) seu grande amor. Não tinha sequer um país. Em ambos os casos, tanto com Ventura quanto com Hertha, as identidades se rompem a partir do desenvolvimento da guerra e dos seus assombros.

Uma das melhores qualidades do romance, além da construção complexa de seus personagens, é a forma. A maneira como surgem os dramas e suas apresentações cria um ótimo suspense; só aos poucos, os elos que conduzem um destino ao outro se justapõem, o que faz quebrar a linearidade e uma possível, recusada, previsibilidade de enredo. As cenas finais, das quais não se falará aqui, são uma brecha no pesadelo, como se a mudança de cenário significasse uma forma de (novo) amanhecer.

A segunda pátria

Miguel Sanches Neto
Intrínseca
314 págs.
Miguel Sanches Neto
É autor de seis romances, entre eles Chove na minha infância, além de livros infantojuvenis, contos e ensaios. Doutor em Teoria Literária pela Unicamp, crítico literário, foi finalista de importantes prêmios literários do país. Recebeu o Cruz e Sousa (2002) e o Binacional das Artes e da Cultura Brasil-Argentina (2005). Atua no momento como professor do curso de Letras da Universidade Estadual de Ponta Grossa.
Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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