A arte de roubar

Em Sujeito oculto, Cristiane Costa derruba fronteiras entre ficção, biografia e ensaio e questiona a noção de autoria
Cristiane Costa, autora de “Sujeito oculto”
07/06/2015

Publicado em versão impressa pela Aeroplano e pela E-Galáxia em formato digital, Sujeito oculto é o primeiro romance de Cristiane Costa, narrativa que embaralha e coloca em dúvida conceitos como autenticidade e originalidade e questiona a noção de autoria por meio de um habilidoso trabalho de apropriação e recriação literária.

O romance é tecido a partir de citações, frases feitas e colagens. Assim, em meio à trama temos intervenções várias, apontamentos de agenda, recortes de jornal, horóscopos, trechos sublinhados de livros e páginas de anotações — material vário que, sob a moldura colocada pela autora, assume conotação expressiva no interior da obra.

Esse experimentalismo é acompanhado de um projeto gráfico arrojado, que incorpora à obra os trechos de outros autores — e, antes que a autora seja acusada de plágio, deve-se ressaltar que as apropriações estão claramente demarcadas no livro.

Em entrevista recente, Cristiane afirmou “Artes como a pintura, a fotografia, o cinema e a música já incorporaram a apropriação por meio da colagem, da montagem, do sampler e do deslocamento há muito tempo. A literatura tem mais pudor. Plágio seria assinar como sua uma obra criada por outra pessoa, ou que contenha trechos significativos de uma obra de outro autor, sem que isso seja declarado”.

O romance é estruturado em três partes que instauram um instigante jogo de espelhos entre si, na medida em que o autor nunca é quem parece ser.

Na primeira parte, temos a narrativa principal, constituída pelo monólogo de Carlos, médico atormentado com a morte da mulher, com quem arrastou durante sete anos uma vida insípida de classe média assolada por dívidas em meio ao eterno retorno do mesmo, os alicerces da casa calcinados pelo marasmo. Ele tenta apagar da memória os vestígios desse inferno:

Uma a uma, tirei as fotos dela dos porta-retratos espalhados pela casa. Sumi com os álbuns e as fitas de vídeo em que seu rosto aparecia. Escondi tudo no alto de um armário no quarto de empregada, sem ao menos dirigir um último olhar, caso um dia nossos meus filhos queiram rever seu sorriso. Lá, na última prateleira, estão as fotos que mostram aquele olhar petulante da juventude, quando ela achava que faria grandes coisas, e que se transformou lentamente, foto a foto, no sorriso amargurado da última viagem.

Alice, a ex-mulher, era leitora compulsiva e gostava de colecionar citações, espalhadas em meio aos livros de sua biblioteca, em folhas soltas e em um caderno. Ela abandona o emprego para dedicar-se à leitura e à escrita, mantendo-se como tradutora. Sem conseguir romper o bloqueio criativo, ela morre pouco tempo depois de ter feito um seguro de vida.

Carlos começa a ler as anotações deixadas pela mulher e se dirige a um interlocutor que não sabemos muito bem se se trata de um analista ou de um advogado — interlocutor que no jogo metalinguístico presente na obra é também o próprio leitor. Ao contrário da mulher, Carlos nunca teve paciência para ler: chega em casa quase sempre extenuado e vê com angústia a biblioteca sendo tomada por cupins.

O médico entrevê nas anotações compulsivas de Alice possíveis amantes e desejos inconfessáveis. A certa altura da narrativa, tenta descobrir por meio das anotações e dos trechos sublinhados em livros indícios da vida secreta da mulher: se foi traído, se era amado, onde a vida a dois começou a malograr.

O livro poderia acabar aqui e essa primeira parte valeria por si só. Mas tem muito mais — e o que se segue desmonta completamente a nossa segurança (coisa que não será possível resenhar para não roubar aos leitores o prazer da descoberta).

A segunda parte é constituída por páginas rasuradas — que, no contexto ficcional da obra, foram suprimidas por acusação de plágio. Já a terceira parte é um posfácio escrito por um crítico literário, personagem que instaura outro olhar sobre a obra ao procurar situar o leitor em um labirinto de referências literárias e também pelo envolvimento com Catarina, filha de Carlos.

Reconstrução
Urdido com extrema habilidade, Sujeito oculto é um romance que no momento mesmo em que se afirma se desfaz diante do leitor, obrigando-o a um constante trabalho de reconstrução, como se estivéssemos diante de um palimpsesto.

Na contracapa do livro, Heloisa Buarque de Hollanda observa: “Usando a maestria de ser uma das mais conhecidas pesquisadoras dos horizontes que a mídia digital vem abrindo para a criação de novos formatos narrativos, Cristiane Costa vai fundo nas possibilidades do visual writing, do remix e do sampling, da pirataria criativa, da autoria indefinida e, ainda, da mistura deliberada de gêneros”.

O mosaico de citações que a autora manipula e esconde do leitor não desemboca em uma narrativa fragmentária ou em uma colcha de retalhos, com material inserido ao acaso e de forma aleatória, como se poderia esperar. Talvez resida aí o maior mérito do romance, que consegue se manter como uma narrativa fluente e que prende o leitor (cativar é tornar cativo, como diz Ricardo Piglia).

Em Sujeito oculto temos vários livros, pois o espelhamento criado pela autora faz com que a própria noção de autoria se dilua tanto pelo conteúdo como pela estrutura do romance, cujo sentido se fragmenta e se multiplica ao infinito (até mesmo pela ausência da segunda narrativa, reconstituída parcialmente pelo crítico que figura como personagem na obra).

Não fosse por tudo o que se diz acima, ainda assim a autora estaria em bons lençóis por exercitar a arte de roubar com tanta maestria. Afinal de contas, o que é um autor? Borges, Roland Barthes e Foucault teriam muito a dizer sobre isso. Mas fiquemos com a sabedoria popular: “Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão”.

Sujeito oculto

Cristiane Costa
Aeroplano
156 págs.
Cristiane Costa
Passou a vida em meio a aspas e referências, como jornalista, crítica literária, editora, pesquisadora e professora universitária. Todo cuidado para ser fiel às declarações e identificar as citações dos outros gerou um surto tardio de cleptomania, cujo resultado é Sujeito oculto. Professora e coordenadora do curso de Jornalismo na UFRJ, é pesquisadora de pós-doutorado do Programa Avançado de Cultura Contemporânea. Foi editora do caderno Ideias (suplemento literário do Jornal do Brasil), do Portal Literal e da revista eletrônica Overmundo. É autora de cinco livros, entre eles Pena de aluguel: escritores jornalistas no Brasil.
Ovídio Poli Junior

É escritor e doutor em literatura brasileira pela USP. Ministra oficinas de criação literária. É curador da Off Flip das Letras e editor do Selo Off Flip.

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